June 4, 2023

Como se deu o suporte dos militares ao golpismo de 8 de janeiro

 


 

Sem o apoio das Forças Armadas, a intentona golpista que depredou a Praça dos Três Poderes não teria acontecido

ANA CLARA COSTA

Um telão fora instalado na bi-
blioteca do Palácio da Alvora-
da no dia 29 de outubro do
ano passado. No dia seguinte,
a partir das 17 horas, começou
a se projetar ali a apuração de votos do
segundo turno pelo Tribunal Superior
Eleitoral (tse). Sentado numa poltrona
de couro modelo Barcelona, do arquite-
to alemão naturalizado norte-americano
Mies van der Rohe, Jair Bolsonaro to-
mava nota das oscilações na contagem.
A cada atualização do gráfico em que
seu desempenho recuava e o de Lula
avançava, Bolsonaro escrevia o número
numa folha branca – e franzia a testa.
– Tá vendo! Tá vendo! Eu falei! Isso
aí é golpe!

Desde a volta da democracia ao país,
pela primeira vez um presidente acom-
panhava a apuração na companhia de
dois generais: Paulo Sérgio Nogueira
de Oliveira, ministro da Defesa, e Mar-
co Antônio Freire Gomes, comandante
do Exército. Naquela noite, ambos as-
sentiam a cada afirmação do presidente
de que a apuração não era uma coisa
séria. Às 18h44, quando Lula passou à
liderança, um incômodo tomou conta
do ambiente. Bolsonaro parecia intuir
que o jogo havia acabado. Nos 72 minu-
tos decorridos entre a virada do petista
e o anúncio oficial do resultado, às
19h56, o ar se tornou irrespirável na bi-
blioteca. E Bolsonaro estava incrédulo.
.
Com a derrota já decretada, chega-
ram seus filhos, Flávio e Eduardo, que
assistiram à apuração em suas casas e
vieram com suas mulheres. Carlos esta-
va rompido com o pai. Michelle perma-
necia no Palácio com as duas filhas,
mas não acompanhou a contagem ao
lado do marido. O telefone não parava
de tocar, com ligações de ex-ministros,
aliados e do presidente do pl, Valdemar
Costa Neto. A maior parte esbarrava no
coronel Mauro Cid, o ajudante de or-
dens. Bolsonaro não queria falar com
ninguém. Ficava irritado com o tom de
lamento das conversas. Recolheu-se por
volta de meia-noite.
.
A derrota não estava nos planos de
Bolsonaro. Sempre esteve convicto de que
seria reeleito mesmo com as “fraudes”.
No último tracking do pl, feito na véspe-
ra da eleição, ele aparecia à frente de
Lula, embora dentro da margem de erro.
A pesquisa, feita pelo Instituto Paraná,
era um unicórnio – todos os demais ins-
titutos apontavam vitória de Lula, por
uma margem estreita. Bolsonaro ficara
especialmente animado com um tra-
cking do dia anterior, encomendado pelo
psd, de Gilberto Kassab. Mostrava que
ele abrira 20 pontos sobre Lula no estado
de São Paulo. Nas contas do partido, bas-
tavam 15 pontos de dianteira no eleitora-
do paulista para que Bolsonaro fosse
reeleito. No fim, teve 10 pontos.
.
Na campanha, Bolsonaro media a
temperatura de acordo com sua recep-
ção nos aeroportos. “Mesmo com frau-
de, vou ganhar. Em 2018, eu botava
mil pessoas no aeroporto. Hoje, estou
botando 20 mil”, dizia a aliados. Por
um lado, imperava a autoconfiança.
.
Por outro, a máquina pública se movia
para garantir a vitória. No abuso da má-
quina, Bolsonaro atingiu um novo pa-
tamar, com uma gastança bilionária,
que chegou perto dos 300 bilhões de
reais. No abuso de poder, adotou uma
estratégia jamais vista no regime demo-
crático: cooptou grande parte das for-
ças policiais, aparelhou as Forças
Armadas e encilhou um partido polí-
tico. Tudo às claras, incluindo até
reunião com o corpo de diplomatas
estrangeiros no Brasil, sempre com a
intenção de tumultuar o processo elei-
toral e insuflar apoiadores para uma
virada de mesa – uma crônica cujos
detalhes a piauí reconstituiu durante
três meses de apuração.
.
No dia 4 de outubro, dois dias de-
pois do primeiro turno em que
Lula chegou na frente, o diretor-
geral da Polícia Federal, Márcio Nunes
de Oliveira, fez uma reunião virtual
com os superintendentes da corpora-
ção. Pediu foco total para coibir crimes
eleitorais. A ordem produziu um certo
estranhamento – afinal de contas, com-
bater esse tipo de crime era a principal
função da pf em qualquer eleição. Duas
semanas depois, em 19 de outubro, o
tema motivou outra reunião, desta vez
com a Polícia Rodoviária Federal (prf).
Convocado com apenas dois dias de
antecedência, o encontro tinha de ser
presencial, em Brasília. Celulares e re-
lógios, ou qualquer aparelho capaz de
fazer registros, estavam proibidos.
.
Na reunião, reconstituída pela piauí
a partir de entrevistas com duas teste-
munhas, o então diretor da prf, Silvinei
Vasques, foi direto: pediu fiscalização
rigorosa no Nordeste e em eleitores do
pt. Ponderou que Bolsonaro fora ge-
neroso com a prf e deveria se reeleger.
Os agentes precisariam ficar de olho
em qualquer ilegalidade de trânsito,
atentando para veículos com documen-
tação irregular, falta de capacetes ou
equipamentos de segurança vencidos.
.

Numa indicação de que todos sabiam
que a conversa era imprópria, nada dis-
so foi colocado na ata do encontro, se-
gundo apurou o jornal O Globo.
Enquanto a pf e a prf eram aciona-
das, a então diretora de inteligência do
Ministério da Justiça, Marília Ferreira
de Alencar, fez dois boletins de inteli-
gência a pedido do então ministro da
Justiça, Anderson Torres. O primeiro
listava os municípios em que Lula e
Bolsonaro tiveram mais de 75% dos vo-
tos, divididos por estado. Para Lula, a
maioria estava no Nordeste. Para Bolso-
naro, no Sul. O segundo boletim ma-
peava a localização dos efetivos
.

nos estados. Conjugadas, as duas plani-
lhas continham dados úteis. Torres po-
dia saber quantos agentes da prf era
possível deslocar para as regiões onde
cada candidato era mais forte – e calcu-
lar o custo à pasta em viagens e horas
extras. Depois de enviar as planilhas ao
ministro, Alencar, ela também delega-
da da pf, excluiu os boletins do sistema.
(Poucos meses mais tarde, na apura-
ção dos atos golpistas do 8 de janeiro, a
servidora voltou a apagar rastros. Ela che-
fiava a equipe de inteligência de Torres
no governo do Distrito Federal quando
a Esplanada foi invadida. Chamada
para depor na cpi dos Atos Antidemo-
cráticos na Câmara Distrital de Brasí-
lia, a delegada, antes de ser ouvida, foi
à sede da pf pedir aos colegas para eli-
minar os arquivos de seu celular. Su-
miu ali um dos boletins eleitorais que
havia enviado a Torres.)
.
Na segunda-feira, 24 de outubro, seis
dias antes do segundo turno, o superin-
tendente da pf da Bahia, Leandro Alma-
da da Costa, foi avisado de que receberia
as visitas de Torres e Nunes de Oliveira,
o diretor-geral da pf. Não havia uma
pauta, a visita era uma surpresa e nem
constava na agenda do ministro. Na noi-
te de terça, a dupla chegou a Salvador
em avião da Força Aérea Brasileira, com
assessores. O encontro se deu na manhã
seguinte. Torres informou que havia
suspeitas de compra de voto na Bahia,
onde Lula cravara 69,7% no primeiro
turno. O ministro citou um áudio em
que um indivíduo denuncia ter sido coa-
gido por um petista à saída de sua zona
eleitoral em Salvador. O áudio fora am-
plamente divulgado e já tinha sido apu-
rado pela pf, que concluíra: era fake
news. No fim da conversa, Torres suge-
riu que a prf apoiasse as operações da
pf. Os federais estranharam a sugestão
porque tal apoio não era praxe e a cor-
poração rodoviária se tornara aberta-
mente um braço do bolsonarismo.
.
Na sexta-feira 28, todas as superin-
tendências da pf receberam as listas
dos municípios com mais “suspeitas”
de compra de votos. Na Bahia, sentindo
cheiro de armação, os policiais federais
não deram bola nem para a lista, nem
para o apoio da prf. Mas os agentes ro-
doviários estavam a todo vapor, fazendo
operações atípicas na Bahia, Piauí, Ala-
goas, Ceará, Paraíba e Sergipe. Ao mon-
tar uma blitz em locais onde nunca
haviam aparecido, os patrulheiros es-
pantavam o trânsito de quem estivesse
com veículo irregular, coisa comum nas
vans, ônibus e motos de circulação mu-
nicipal. A medida logo suscitou suspei-
tas no pt. O deputado Paulo Teixeira
(pt-sp) entrou no sábado com um pedi-
do no tse para que a fiscalização fosse
interrompida. Na mesma noite, o minis-
tro Alexandre de Moraes proibiu as ope-
rações que estavam atrapalhando o
fluxo de eleitores.
.
Na madrugada do segundo turno,
porém, Silvinei Vasques enviou ofício
orientando seus superintendentes a ig-
norar a decisão do ministro, pois tudo
que era recomendado ali, dizia ele, já
estava sendo feito pela corporação. Os
rodoviários em campo, alheios ao cunho
político da empreitada, começaram a
estranhar a quantidade incomum de
efetivo nas estradas e o rigor exigido
pelas chefias na abordagem, como pe-
dir para que tirassem fotos de cada veí-
culo parado e exigissem documentação
até de passageiros – não só do condutor.
.
A deputada Alice Portugal (pcdob-ba),
que fundou a Frente Parlamentar em
Defesa da prf, recebeu ligações de
agentes nas estradas denunciando os
abusos. Em contato com o chefe da prf
baiana, Virgílio Tourinho, ela questio-
nou a operação. “Ele me disse: ‘Não,
deputada, é apenas uma operação de
trânsito.’ Eu disse que a polícia rodoviá-
ria estava deixando de ser uma polícia
cidadã para se tornar uma polícia parti-
darizada. Ele foi completamente coni-
vente com tudo”, diz a deputada.
.
No fim do dia, a despeito da alega-
ção de que coibiriam crimes em todo o
país, 49,5% das operações se concentra-
ram no Nordeste, onde Lula liderava.
No Sul, reduto de Bolsonaro, apenas
8,74%. Houve mais agentes deslocados
para o Nordeste do que para o Sudeste,
região mais populosa do país. No stf,
Alexandre de Moraes convocou Vas-
ques para dar explicações e chegou a
consultar colegas sobre prorrogar o ho-
rário de votação. Decidiu manter tudo
como estava, desconfiado de que os
bolsonaristas usariam o adiamento
para tumultuar o processo eleitoral. Na
pf, havia expectativa de que o chefe da
prf fosse preso naquela mesma noite,
o que nunca ocorreu.
.
Vasques foi exonerado ainda em
2022 e se aposentou com salário inte-
gral. É réu por improbidade administra-
tiva, depois de ter pedido votos para
Bolsonaro em suas redes sociais, en-
quanto coordenava o boicote a eleitores
no Nordeste. “Vote 22”, postou ele, com
uma bandeira do Brasil. Também é in-
vestigado por omissão quando caminho-
neiros bloquearam as estradas do país,
nos dias que se seguiram às eleições.
A prf não conseguia romper os bloqueios,
mas até torcidas organizadas de futebol
conseguiam. A atual gestão da prf quer
cassar a aposentadoria de Vasques.
.
O influenciador bolsonarista Oswal-
do Eustáquio, preso em duas
ocasiões por incitar atos antide-
mocráticos, vive no Paraguai, asilado.
.
Ele ajudou a montar dois acampamen-
tos de bolsonaristas em frente de quar-
téis, depois da derrota de Bolsonaro, em
Curitiba e em Brasília. “Não havia uma
organização, uma ordem. Quando Lula
ganhou, todo mundo foi organicamen-
te. Eu fui de imediato para o quartel-
general do Exército de Pinheirinho, em
Curitiba, e organizei tudo por lá. No
começo de novembro, fui para Brasília
e ajudei a montar. A primeira coisa que
fiz foi criar um estúdio de podcast, para
entrevistar quem passava por lá, como
o [Frederick] Wassef, advogado do Bol-
sonaro”, conta.
.
O acampamento de Brasília cresceu
no ritmo das doações. Banheiros quími-
cos, tendas e restaurantes com cozinha
industrial eram o centro da engrenagem
que dava aos manifestantes a sensação
de estar em casa. Havia café da manhã,
lanches, almoço e jantar, além de chur-
rascos ocasionais, com carne enviada
por frigoríficos de Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul. Havia ainda doação de
bebidas alcoólicas, que também podiam
ser adquiridas dos ambulantes que se
instalaram no local. A fartura era tanta
que atraiu gente pobre, em busca de
comida. Uma imigrante venezuelana
conta que arrecadava dinheiro para for-
necer comida, roupas e ajuda médica
aos acampados. Ela pediu para não ter
seu nome revelado porque participou
dos atos de 8 de janeiro e teme ser pro-
curada pela polícia. Conta ter ficado
63 dias no acampamento para que o
Brasil não “se torne a Venezuela”
..
Sem líderes, à medida que se passa-
vam as semanas, os grupos se desenten-
diam – por dinheiro. Eustáquio acusa a
ex-bancária Ana Priscila Azevedo, o
caminhoneiro Ramiro Alves da Rocha
Cruz Junior e o empresário Rubem Ab-
dalla Barroso Júnior de liderarem o que
ele chama de “Máfia do Pix”, que pedia
doações de dinheiro em escala maciça
na internet para a cozinha principal do
acampamento. Parte dos valores, acusa
ele, era embolsada pelos donos da cozi-
nha. Priscila Azevedo e Cruz Junior
foram presos na esteira das investiga-
ções do 8 de janeiro. Abdalla está fora-
gido. As denúncias de Eustáquio de que
uma Máfia do Pix dominava o local
foram confirmadas por policiais mili-
tares ouvidos pela cpi da Câmara Dis-
trital, em Brasília.
.
As intenções golpistas dos acampa-
mentos eram explícitas, assim como o
plano de invadir o Congresso Nacio-
nal. A venezuelana que conversou com
a piauí disse que, desde o início, alme-
java entrar no Congresso e ficar senta-
da no chão em vigília, mas sem quebrar
nada. Já Eustáquio conta que a ideia de
seu grupo era efetuar a invasão entre o
final de novembro e o final de dezem-
bro. Imaginava que, se o movimento
ganhasse tração, Bolsonaro tomaria
coragem de patrocinar uma quartela-
da. “A gente queria entrar e ocupar o
Congresso. Não queríamos quebrar
nada, porque é patrimônio da direita,
da esquerda, do centro, do povo brasi-
leiro. Se conseguíssemos fazer essa
manifestação ainda em dezembro, en-
tendíamos que o chefe supremo das
Forças Armadas, o presidente Bolsona-
ro, poderia tomar uma decisão
.A decisão, no caso, era Bolsonaro evo-
car o artigo 142 da Constituição Federal
que, na lógica peculiar do bolsonarismo,
atribui às Forças Armadas a função de
intervir entre poderes, como um “poder
moderador” – nesse caso, intervir no
tse, anulando a vitória de Lula. “Não
queríamos um golpe”, diz Eustáquio.
.
“Queríamos algo dentro da Constitui-
ção.” Ele diz que, ao final de novembro,
já estava claro que o Exército não lidera-
ria sozinho a quartelada. “Para nós, o
acampamento era um local para dormir
e marcar a nossa presença. Não fazia
mais sentido ficar pedindo nada aos ge-
nerais. O Exército não tinha autonomia
para fazer nada do que a gente queria.”
Eustáquio passou então, por meio de
suas redes, a convocar “patriotas” para a
“Marcha da Família”, prevista para 30 de
novembro. Eles iriam ao Congresso com
o objetivo de invadir. “Tudo ali estava
no auge, tinha muita gente, o quartel
bombando. Aí eu e o pessoal do canal
Hipócritas fizemos um vídeo. Convoca-
mos o Brasil inteiro”, conta.
.
Seu movimento despertou a ira do
pessoal das cozinhas do acampamento,
não com a ideia de invadir o Congres-
so, mas com o esvaziamento do local,
caso todos migrassem para a Esplana-
da. Sem “patriotas” nos quartéis, as do-
ações minguariam. “Era um negócio
lucrativo que o quartel continuasse
funcionando”, diz o influenciador. Se-
gundo Eustáquio, iniciou-se uma cam-
panha difamatória contra ele a partir
de então, o que acabou minando seu
plano. “Diziam que éramos infiltrados
de esquerda, apoiadores do Lula, que
era uma cilada.” Em certo momento, a
rixa escalou, ele foi agredido e decidiu
deixar o local e liderar um grupo que
passava o dia em frente ao Palácio da
Alvorada, na expectativa de falar com
Bolsonaro, voltando ao quartel apenas
para dormir. Em uma dessas idas, che-
gou a entrar no Alvorada, mas diz que
não falou com Bolsonaro. Em razão de
pregar a invasão do Congresso, Eustá-
quio foi alvo de nova ordem de prisão e
fugiu para o Paraguai.
.
Até aqui, a Máfia do Pix prestara
um serviço involuntário à democracia
brasileira. Mas seu apetite dinheirista
voltaria mais tarde – e, dessa vez, na
forma de golpe.
.
O vendedor de carros Armando Va-
lentin Settin Lopes de Andrade
frequentava o qg nesses dias agi-
tados. Preso nas investigações do 8 de
janeiro, acusado de levar artefatos ex-
plosivos em seu carro no dia dos ata-
ques, ele contou em seu depoimento
que testemunhou reuniões em que se
discutiam atentados terroristas. Em
pauta, se debatia colocar bombas e
.dinamitar o viaduto da rodoviária de
Brasília, queimar carros e incendiar es-
tações de energia na cidade.
.
O Exército, anfitrião atencioso, rece-
beu os manifestantes, inclusive os que
maquinavam atentados terroristas, de bra-
ços abertos. Na primeira semana de
novembro, quando o acampamento foi
montado, o coronel Fabiano Augusto
Cunha da Silva, do Comando Militar
do Planalto (cmp), mandou ofício ao
governo do df para organizar as coisas.
Informou que o carro de som dos ma-
nifestantes estava autorizado a ficar na
frente do qg e os caminhões estaciona-
riam em uma das vias do Setor Militar
Urbano (smu), uma área próxima.
Também pediu que o governo do df
colaborasse com a limpeza do local,
ambulância e policiamento. Mas fez
um alerta: a Polícia Militar não podia,
em hipótese alguma, entrar no acampa-
mento. Tinha que ficar nas imediações
da Catedral Militar Rainha da Paz, à
entrada do smu. Só a Polícia do Exército
poderia acessar a área dos acampados.
.
Todos os pedidos do Exército foram
atendidos pelo governo do df. A limpeza
das ruas do acampamento era feita três
vezes ao dia. Naquele início de novem-
bro, o general Gustavo Henrique Dutra
de Menezes, comandante militar do Pla-
nalto, voltou a lembrar os limites: a Polí-
cia Militar e o governo do df poderiam
retirar os vendedores ambulantes do lo-
cal, mas não poderiam mexer com a es-
trutura montada pelos manifestantes
que, segundo o general, tinham o direito
de estar lá. Era uma novidade e tanto:
nunca o Exército, desde a inauguração
de Brasília, permitira que cidadãos co-
muns se concentrassem naquele espaço,
considerado uma área de segurança.
.
Enquanto o acampamento crescia
sob proteção fardada, Jair Bolsonaro,
entrincheirado no Alvorada, oscilava
entre a depressão pela derrota, o ódio
de ver-se alvo da piedade alheia e a cer-
teza de que as urnas haviam sido frau-
dadas. Ao seu redor, engalfinhavam-se
três grupos divergentes que tentavam
tutelar sua fúria e conduzi-la na direção
que mais lhes convinha. O núcleo polí-
tico, composto pelos ministros Ciro
Nogueira, Fábio Faria, Rogério Mari-
nho e Flávia Arruda, tentava convencê-
lo a reconhecer a derrota. O núcleo
militar, liderado pelo candidato a vice,
general Walter Braga Netto, dedicava-
se a discutir “saídas constitucionais”
para virar a mesa. O núcleo ideológi-
co, composto pelo ajudante de ordens
Mauro Cid, Eduardo Bolsonaro e as-
sessores do gabinete do ódio, tramava
outros subterfúgios – e às favas os es-
crúpulos constitucionais. No dia 1º de
novembro, uma reunião no Planalto
explicitou a divergencia
.Convencido pelo núcleo político de
que era preciso reconhecer o resultado
eleitoral, num momento em que as es-
tradas eram bloqueadas e surgia o re-
ceio de desabastecimento, Bolsonaro
chamou seus ministros ao gabinete para
que chegassem a uma nota de consen-
so. O texto, no trecho mais relevante,
diria que “as instituições democráticas
haviam declarado Lula o presidente
eleito”. Era a forma indireta de admitir
que perdeu a eleição e aceitava a vitória
de Lula. O deputado Eduardo Bolso-
naro (pl-sp) não era ministro, mas
apareceu acompanhado de assessores.
Contrário à nota, disse ao pai que, com
a população nas ruas, ele não poderia
fazer aquilo. Alegou que, se mais tarde
se provasse fraude nas urnas, ele teria o
trunfo de não ter reconhecido o resulta-
do. Eduardo disse também que era pre-
ciso “manter a esperança dos nossos”
..
Bolsonaro ouviu o filho e avisou que,
por haver posição divergente, colocaria a
nota em votação. Todos os presentes, in-
cluindo o vice Braga Netto e o ministro
da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de
Oliveira, votaram a favor da nota. Só
Eduardo foi contra. Mas foi o que bastou
para que o texto fosse alterado. Bolsona-
ro, Eduardo e Braga Netto se dirigiram a
uma sala próxima para reescrever a nova
declaração, que foi lida pelo presidente
diante das câmeras de tevê 45 horas de-
pois da derrota. Lendo a nota, agradeceu
os 58 milhões de votos que recebeu e
disse que os “atuais movimentos popula-
res são frutos de indignação e sentimento
de injustiça de como se deu o processo
eleitoral”. Não reconheceu o resultado,
nem criticou os bloqueios de estrada.
.
Na mesma tarde, num gesto político
a portas fechadas, sem imagens que pu-
dessem estragar o teatro público, Bolso-
naro agiu dentro da normalidade. Pediu
que o coronel Mauro Cid ligasse para o
ministro Gilmar Mendes e convidou os
membros da Corte para uma conversa
no Planalto. Depois de consultar seus
pares, Mendes pediu que Bolsonaro fos-
se até o stf. O presidente atravessou a
Praça dos Três Poderes, chegou amiga-
velmente ao Supremo, reconheceu o
resultado e interagiu com os ministros
de forma a distensionar o clima. Ouviu
deles que não o animava nenhum espí-
rito revanchista. Naqueles dias de incer-
teza, a burocracia estatal instalou
rapidamente um governo de transição
para reduzir o espaço para aventuras
inconstitucionais.
.
A recusa de Bolsonaro em reconhecer
a derrota publicamente encheu os radi-
cais de esperança de que ele tinha um
plano para permanecer na cadeira. E ti-
nha mesmo. Doze meses antes, começa-
ra a ser gestada a estratégia de jogar
dúvidas sobre o processo eleitoral, em
caso de derrota nas urnas. Faziam parte
do projeto os militares (mais por convic-
ção do que por oportunismo) e o presi-
dente do pl, Valdemar Costa Neto (mais
por oportunismo do que por convicção).
.
Ao entrar no pl em novembro de
2021, Bolsonaro exigiu que o par-
tido contratasse o engenheiro Car-
los Rocha, formado pelo Instituto
Tecnológico de Aeronáutica, para fazer
estudos sobre a confiabilidade das ur-
nas. Rocha era dono da empresa que foi
subcontratada para construir a primeira
série de urnas eletrônicas, em 1995. No
ano seguinte, tentou registrar a patente
da urna, mas seu pedido foi negado por-
que a máquina fora construída mediante
 especificações estabelecidas pelo tse
– ou seja, não era uma invenção dele.
Rocha entrou num litígio. Queria rece-
ber royalties sobre cada urna fabricada.
Perdeu a parada e desde então passou a
integrar um diminuto, mas ruidoso,
grupo de acadêmicos e leigos que ques-
tionam as urnas. Nos primórdios da
internet, eles se reuniam em fóruns e
listas de discussão. No bolsonarismo,
encontraram abrigo e guarida – e ga-
nharam as redes sociais e os grupos de
WhatsApp e Telegram.
.
Para viabilizar sua contratação, Ro-
cha criou o Instituto Voto Legal (ivl),
registrado na Junta Comercial do Esta-
do de São Paulo em 30 de novembro de
2021, no mesmo dia em que Bolsonaro
se filiou ao pl. Desde o início de 2022,
o ivl levou quase meio milhão de reais
do partido produzindo relatórios que
passaram a incendiar a imaginação
conspiratória da extrema direita. Mas,
como Bolsonaro acreditava que ganha-
ria nas urnas, “mesmo com fraude”, os
trabalhos do ivl ficaram de estepe.
.
Na teia do golpe, o papel dos milita-
res era político e técnico. Assim que
assumiu o Ministério da Defesa, em
abril de 2022, o general Paulo Sérgio
Nogueira de Oliveira recebeu a missão
de tutelar a confiabilidade do sistema
eleitoral. Em público, as Forças Arma-
das jamais apontaram problema nas
urnas, mas, em privado, o novo minis-
tro vivia reclamando para Bolsonaro
que sua equipe não conseguia confir-
mar com o tse que havia “segurança
do código-fonte”. Um ex-ministro do
núcleo político, que pediu para não
ter seu nome citado por razões parti-
dárias, conta que o general Braga Net-
to, que deixou o Ministério da Defesa
para ser vice na chapa de Bolsonaro,
era a figura-chave da estratégia de co-
locar as urnas sob suspeita, ao lado do
coronel Mauro Cid.
.
“O presidente sempre desacreditou
das urnas, e os militares estavam junto
com ele nessa ideia”, diz o ex-ministro.
“Nós tentávamos tirar isso da cabeça
dele, mas logo voltava. Até que, uma
hora, todas as reuniões em que se falava
de urnas já não contavam mais com a
presença do núcleo político. Era só o
Braga Netto e o Cid, que assistia a tudo
na condição de ajudante de ordens, mas
era muito mais do que isso. O Ramos
[refere-se ao general Luiz Eduardo Ra-
mos] depois se inseriu nesse tema para
bajular o presidente e estar presente
nessas reuniões”, diz o ex-ministro.
.
Braga Netto, além de chancelar a
interpretação golpista do artigo 142,
vendia a impressão de que tinha con-
trole sobre a maioria dos dezesseis inte-
grantes do Alto Comando do Exército
– razão decisiva para que obtivesse a
vaga de candidato a vice. Bolsonaro
acreditava, mas até os próprios milita-
res do Planalto achavam o cálculo ex-
cessivamente otimista. Na verdade,
nessa fase de conversas golpistas ao pé
do ouvido, o Alto Comando estava lon-
ge de um consenso, mas a tese de que
as urnas eram uma fraude nunca per-
deu força entre os militares.
.
Em pleno dia do primeiro turno, em
2 de outubro, o coronel Marcelo No-
gueira de Sousa, que acompanhava a
eleição no tse em nome do Ministério
da Defesa, fez o seguinte comentário
durante uma visita à sala de apuração do
tribunal: “O código-fonte é fraco.” Aos
mais chegados, com discrição, disse
que, embora a composição do tribunal
mudasse com frequência, a “burocracia
do tse” continuava a mesma e era a
responsável por manter o sistema com
as fraudes. “Vocês entendem por que
estamos aqui? Porque o Alexandre de
Moraes pintou o quadro e nós somos a
moldura que diz que o sistema está o.k.
Agora, ele pode vender o quadro.”
.
Quem ouviu os comentários ficou com
a expectativa de que o relatório sobre
as urnas que ele produziria para o Mi-
nistério da Defesa, depois do pleito,
seria escandaloso.
.
Nos dias seguintes à derrota, Bolso-
naro, mesmo em seus acessos de irrita-
ção, nunca pediu claramente que o
relatório dos militares detonasse as ur-
nas, mas suas críticas intermináveis
pressionavam a caserna, que, embora
também duvidasse do resultado, não
queria assumir a dianteira do assunto.
.
“O sentimento geral dos três comandan-
tes era de indignação com a maneira
como foi tratada a eleição, a falta de
transparência. O povo pedindo e você
não tendo resposta para dar”, queixou-
se um aliado militar de primeira or-
dem do presidente, em conversa com
a piauí. A indignação, porém, não bas-
tava para patrocinar uma aventura. As
cogitações de Bolsonaro de melar a elei-
ção eram respondidas com evasivas pelo
ministro da Defesa, pelo general Freire
Gomes, comandante do Exército, e pelo
brigadeiro Carlos de Almeida Baptista
Júnior, que comandava a Aeronáutica.
Somente o almirante Almir Garnier
Santos, da Marinha, colocou-se à dispo-
sição do chefe para o que ele desejasse.
Estava de plantão para o golpe.
.
O equivalente civil do almirante era
Costa Neto, o presidente do pl. As ur-
nas haviam dado ao seu partido uma
fabulosa bancada de 99 deputados – e
1,2 bilhão de reais de fundo partidário
–, mas o político sentou-se na primeira
fila dos contestadores das urnas. No dia
8 de novembro, ao anunciar o convite
para Bolsonaro ser presidente de honra
do pl, Costa Neto não reconheceu a
vitória de Lula e expressou a certeza de
que o relatório do Ministério de Defesa,
ainda em elaboração, apontaria as frau-
des. “Eles [os militares] vão trazer al-
guma coisa. Não tenho dúvida disso,
porque senão já tinham apresentado, já
tinham liquidado o assunto. E, depen-
dendo do que eles encontrarem, nós
vamos brigar no tse com esses questio-
namentos que eles possam trazer.”
No dia seguinte, na primeira reu-
nião da nova bancada do pl na sede
.do partido, em Brasília, Costa Neto foi
categórico ao dizer que havia algo erra-
do com as urnas. E foi apoiado pela
franja radical do partido, composta,
entre outros, pelo deputado Filipe Bar-
ros (pl-pr), o mais estridente da turma,
a deputada Carla Zambelli (pl-sp) e o
recém-chegado Eduardo Pazuello (pl-
rj), o general que fez a vexaminosa ges-
tão da pandemia no Ministério da Saú-
de. Todos haviam acabado de ser eleitos– 
.nas urnas eletrônicas. Naquele mes-
mo dia, a Defesa finalmente divulgou
seu relatório. Trazia uma conclusão
covarde de tão ambígua: não era possí-
vel comprovar vulnerabilidades nas
urnas, mas tampouco era possível ne-
gá-las. Estava claro que não encontra-
ram nada de errado. Bolsonaro não
gostou. Esperava um relatório denun-
ciando fraude, sobretudo porque sabia
que essa era a opinião dos militares.
Para não entregar o jogo, acionou-se
então a estepe: um relatório do ivl.
E Costa Neto entrou no seu labirin-
to. Como nem os militares acharam
fraude, ele também queria pular fora
do barco, mas sua bancada bolsonaris-
ta pressionava para que o partido usasse
o relatório para contestar o resultado.
.
A máquina de difamação do entorno
presidencial entrou em campo, dizendo
que Costa Neto já estava aderindo ao
governo petista e andava se encontran-
do com Lula. Entre perder sua bancada
ou perder a democracia, Costa Neto,
ex-mensaleiro, ex-preso, ex-lulista e
atual bolsonarista no coração e no bolso,
decidiu atacar a democracia: apresentou
o relatório do ivl ao tse. Sabia que o tri-
bunal rejeitaria a contestação, mas que-
ria se livrar da pressão dos radicais.
Mal calibrado, o relatório dizia ter
encontrado “indícios de mau funciona-
mento” em 59% das urnas eletrônicas
do segundo turno – apenas do segundo
turno. Em conversa com a piauí, o en-
genheiro Carlos Rocha defendeu seu
trabalho, dizendo que não contestou os
votos, apenas informou que havia “in-
dícios de erros”. “Se há um erro, nada
mais natural do que pedir para esse erro
ser verificado”, diz.
.
Na prática, o conteúdo do relatório
encaixou-se como uma luva nas inten-
ções de Costa Neto de contestar a vitó-
ria de Lula, sem contestar a vitória dos
seus 99 deputados, eleitos no primeiro
turno. Mas o ministro Alexandre de
Moraes não caiu no truque. Deu 24 ho-
ras para que o pl anexasse um relatório
completo, incluindo as urnas do primei-
ro turno, com base no fato elementar
que as urnas dos dois turnos eram as
mesmas. O relatório não foi anexado, e
Moraes multou o pl em 22,9 milhões de
reais por litigância de má-fé. A ala bol-
sonarista indignou-se com os números
(não o valor) da multa: 2 + 2 + 9 = 13, o
número do pt. Entenderam que só po-
dia ser um deboche de Moraes.
.
A recusa da ação do pl inflamou a
ira de Bolsonaro contra Moraes. Segun-
do um assessor, que acompanhava o
então presidente no momento em que
saiu a decisão, a irritação era visível,
mas justificável. “O presidente não que-
ria nada demais, só queria um papelzi-
nho [refere-se ao voto impresso] que
provasse que o voto eletrônico tinha sido
computado”, diz o assessor, que traba-
lhava no Palácio do Planalto. “Quando
você entra com um recurso e o recurso
é ignorado, tratado com chacota, você
cria mais revolta. O normal seria rece-
ber a denúncia, apurar e depois respon-
der que não havia nada.”
.
Os caminhos estavam se estreitan-
do. As Forças Armadas não agiam e a
chicana jurídica resultara num vexa-
me. Um dos principais auxiliares de
Bolsonaro contou à piauí que o então
presidente só teria “força para fazer al-
guma coisa para checar as eleições” se,
além dos militares, tivesse também “o
apoio do Congresso e da mídia”. Diz
ele: “Mas a mídia não comprou a ideia
de que precisávamos ter uma eleição
auditável.” Na conversa, esse auxiliar
reconheceu que mesmo a alternativa
vista como “constitucional” – o artigo
142 –, era, no fim das contas, uma saí-
da autoritária. “Qualquer coisa que o
presidente fizesse seria ação de força.
No momento em que as Forças Arma-
das saíssem, a Justiça iria em cima,
mandar prender general. É um ciclo
que não para. Ia ter mais vinte anos de
regime de força”, disse o assessor, que
pertence à ala militar.
.
Nas ruas, a realidade dos palácios
e dos tribunais ainda não havia
chegado – e o ânimo dos mili-
tantes do bolsonarismo não arrefecia.
No dia 9 de dezembro, saiu um man-
dado de prisão contra o indígena José
Acácio Serere Xavante. Ele invadira o
aeroporto de Brasília, causara tumulto
num shopping center e tentara invadir
o hotel onde Lula estava hospedado
durante a transição de governo. Era
fácil cumprir a ordem de prisão. O in-
dígena não estava escondido. Fazia até
lives de suas estrepolias pela cidade e,
todas as noites, recolhia-se para dor-
mir em segurança no acampamento
em frente ao qg do Exército.
.
A polícia, no entanto, não o prendeu
no dia 9. Era uma sexta-feira. Deixou
passar o fim de semana e, na segunda,
decidiu cumprir a ordem – exatamente
na data em que Lula seria diplomado
como presidente pelo tse. A polícia sa-
bia que seria um dia de manifestações,
tanto que montara um esquema de se-
gurança no tribunal. Impedidos de pro-
testar diante do tse, os ônibus lotados
de bolsonaristas dirigiram-se ao Palácio
da Alvorada, para pedir a Bolsonaro que
fizesse alguma coisa. Os agentes da pf
entenderam que era um bom momento
para prender Serere, em meio a uma
turba indignada. Os policiais subiram
no ônibus, renderam o indígena e o le-
varam, algemado, para a viatura.
Numa decisão inédita na história da
pf em Brasília, o preso deixou de ser
.vado para a sede regional da corporação,
localizada a mais de 8 km do acampa-
mento no qg. Pela primeira vez, reco-
lheram um civil na sede nacional da pf,
bem no coração de Brasília e não muito
longe do acampamento. Os ônibus, lo-
tados de bolsonaristas, seguiram a viatu-
ra policial, os acampados do qg foram
avisados – e assim montou-se um feno-
menal quebra-quebra na capital.
.
Os agentes do Comando de Opera-
ções Táticas da pf, treinados para ações
de alto risco, como assaltos a bancos e
operações contra o tráfico, não estavam
na sede nacional da corporação naque-
le dia. Os manifestantes atearam fogo
em carros e ônibus, quebraram o que
viram pela frente, roubaram botijões de
gás em um posto de gasolina e os es-
palharam pelo setor hoteleiro de Bra-
sília, onde ficava o hotel de Lula. Para
completar, atacaram a 5ª Delegacia
de Polícia Civil, ali nas redondezas.
O pandemônio terminou sem uma úni-
ca prisão. Nem pela polícia da ordem
pública, que é a militar. Nem pela fede-
ral, que tinha atribuição para tanto. Nem
pela civil, atacada em sua própria casa.
.
O comandante do choque da pm na-
quela noite, coronel Jorge Eduardo Nai-
me Barreto, ouvido na cpi dos Atos
Antidemocráticos, na Câmara Distrital,
disse que não tinha como efetuar as
prisões e, ao mesmo tempo, dispersar
vândalos – ainda mais com seus ho-
mens portando coletes de 7 kg e armas
não letais. Disse que tentou fazer as pri-
sões depois do fim dos ataques, mas,
“por incrível que pareça, os caras sumi-
ram”. No dia seguinte, membros da as-
sociação dos hotéis em Brasília pediram
segurança à pm ao constatar que alguns
dos vândalos estavam hospedados em
seus hotéis, inclusive no de Lula. O co-
ronel respondeu que a pm de Brasília
não era instruída a matar manifestante,
e sim “preservar vidas” dentro da “dou-
trina de direitos humanos” – declaração
curiosa, já que ninguém pedira para
matar ninguém. Da massa que inferni-
zou a capital, quarenta arruaceiros fo-
ram identificados, mas só quatro foram
presos posteriormente.
.
O senador eleito Flávio Dino (psb-
ma), que já havia sido escalado para co-
mandar o Ministério da Justiça de
Lula, soube dos ataques por volta das
19 horas, quando chegava à casa do ad-
vogado Antônio Carlos de Almeida
Castro, o Kakay, para um jantar em co-
memoração à diplomação do presi-
dente. Dino ligou para o governador
Ibaneis Rocha (mdb) e ouviu que “esta-
va tudo caminhando bem” e “tudo con-
trolado”. Como as horas avançavam e
a cidade estava um caos, Dino voltou a
ligar para Ibaneis, que então reconhe-
ceu que as polícias ainda não haviam
controlado os vândalos, mas disse que a
segurança do hotel de Lula fora reforça-
da porque o grupo tentara invadir o
prédio. Corria o boato de que Lula tive-
ra de ser retirado do hotel num helicóp-
tero. Mas ele ainda estava no jantar na
casa de Kakay e lá permaneceu até que
a situação se normalizou.
.
Para tranquilizar a opinião pública,
Dino marcou uma coletiva de impren-
sa e convidou Ibaneis, que não quis
participar, mas enviou seu secretário
de Segurança Pública, Júlio Danilo
Souza Ferreira. Enquanto a entrevista
transcorria, o ministro da Justiça de
Bolsonaro, Anderson Torres, jantava no
restaurante Dom Francisco, alheio ao
que se passava. Ao relembrar aquele
.m conversa com a piauí, Dino diz que
foi um momento-chave. “Acendeu-se
ali um grande sinal amarelo de que eles
não desistiriam desses atos terroristas.
Como organizar a segurança da posse?
Já era difícil com as forças federais. E a
gente passou a ter insegurança também
em relação às forças locais.”
.
Para complicar, o Exército protegia a
turba nos quartéis. “A partir da diploma-
ção, os acampamentos deixam de ser
pontos estáticos e viram hubs”, diz Flávio
Dino, sobre o caráter de incubadora de
criminosos que o local adquiriu. O go-
verno do df e o governo eleito pressiona-
vam pelo desmonte dos acampamentos,
mas o Exército nunca achava que era o
momento adequado. Em novembro,
uma nota conjunta dos comandantes
das três forças apoiara os manifestantes,
que faziam “demandas legais e legíti-
mas da população”, e cobrava que lhes
fosse garantido a “livre manifestação do
pensamento”. O comunicado fora ela-
borado como antídoto a uma eventual
ordem de Alexandre de Moraes para
dissolver os acampamentos.
.
Também em meados de novembro,
nas conversas sobre a primeira tentativa
para retirar os acampados, a Secretaria
de Segurança Pública fez um plano de
ação cujo título era “Operação para a
Retirada do Acampamento”. O Exérci-
to pediu que o texto fosse alterado para
“Operação para Reprimir o Comércio
Ambulante”. Os militares temiam que
o documento chegasse aos ouvidos de
Bolsonaro ou dos manifestantes, mos-
trando que a caserna era a patrocina-
dora da dissolução do local. “Havia
proteção aos manifestantes, e essa prote-
ção vinha do comando do Exército”, dis-
se um dos pms que participou das várias
tentativas de desfazer o local, sempre
abortadas pela caserna. Conforme apu-
ração da piauí, associada aos depoi-
mentos de policiais militares e federais
prestados nas investigações, a crônica do
apoio do Exército aos vândalos pode ser
ilustrada com duas datas. São elas:
 
.É o dia
da primeira tentativa de desmontar o
acampamento em Brasília. A estrutura
de barracas, cozinhas e banheiros quí-
micos era recente, mas já havia ambu-
lantes irregulares, vendendo bebidas
alcoólicas, comida e roupas. Como a
Polícia Militar estava proibida pelo
Exército de entrar no acampamento, só
os fiscais de comércio ilegal acessavam
o local. Quando começaram a retirar os
ambulantes, os fiscais foram hostiliza-
dos pelos acampados. Deixaram o local
sob o risco de linchamento. A pm, que
se posicionava em frente à Catedral Rai-
nha da Paz, ao lado do acampamento,
nada podia fazer para proteger os fiscais.
E a Polícia do Exército permitiu que
fossem hostilizados e expulsos. Mais tar-
de, os servidores deixaram registrada em
documento a inação dos militares.
 
._O acam-
pamento já contava com quase 50 mil
pessoas e, como proliferavam as denún-
cias de roubos, prostituição e violência,
organizou-se nova tentativa de desmobili-
zação. Outra vez, a ordem do Exército era
para que apenas os ambulantes saíssem.
Houve uma reunião na véspera, no audi-
tório do Comando Militar do Planalto,
em que foram apresentados croquis e
transparências pelos militares sobre como
seria a retirada. Novamente, na hora h, os
fiscais foram expulsos pelos acampados,
sem que a Polícia do Exército agisse. Em
vídeos na internet, pode-se ver a polícia
protegendo acampados que atacam fis-
cais. De novo, o Exército abortou a ope-
ração porque não havia “condições de
segurança das equipes de fiscalização”.
.
Sem nenhuma interlocução com o
Exército, instituição historica-
mente avessa ao pt e à esquerda,
ao governo eleito restava pressionar o
governo do df. O governo distrital, por
sua vez, embora quisesse se livrar dos
vândalos, estava abraçado ao bolsona-
rismo e não tinha força política para
negociar a retirada com os generais.
Reeleito em primeiro turno, Ibaneis
Rocha saldou sua dívida de campanha
com Bolsonaro escalando Anderson
Torres para secretário de Segurança Pú-
blica. Mesmo alertado por ministros do
stf de que Torres era peça central das
maquinações de golpe, Ibaneis foi em
frente – decisão que, quando a intento-
na golpista chegasse ao seu auge, o le-
varia a ficar judicialmente afastado do
governo por 66 dias.
.
A tensão entre o pt e o Exército –
em outras palavras, entre um governo
em formação e uma força armada hos-
til – levou à escolha de José Múcio
Monteiro Filho para de ministro da
Defesa. Ex-conselheiro do Tribunal de
Contas da União (tcu) e ex-ministro
da Secretaria de Relações Institucio-
nais do governo Lula, Múcio fora con-
vidado pelo petista para colaborar com
o núcleo político logo no início da
campanha. Declinou. Quando venceu,
Lula voltou a sondá-lo. “Vou precisar
de você na transição”, disse o presiden-
te eleito. Em tom de brincadeira, Mú-
cio respondeu que gostaria de ter o
cargo do advogado Sigmaringa Seixas,
morto em 2018, que “não tinha função,
mas era ouvido em tudo”.
.
Ao final do cortejo, Múcio topou in-
tegrar a equipe de civis e militares que
discutia temas da defesa na transição.
Deu-se conta de que seria ministro
quando percebeu que, na equipe, era o
único civil. Aceitou o convite, superando
vários concorrentes – entre eles, Ricardo
Lewandowski, a aposta do ministro
Alexandre de Moraes para fazer “a in-
tervenção final no quartel” – e fez uma
exigência: queria autonomia para esco-
lher os comandantes das três forças.
Como precisava de um pacificador, e
Múcio era jeitoso e tinha trânsito com a
direita, Lula concordou.
.
A escolha emitia dois sinais: o presi-
dente eleito estava ansioso para pactuar,
não para brigar, e temia uma rebelião nos
uartéis, diante do avanço dos apelos gol-
pistas nas franjas radicais do bolsonaris-
mo. Em conversa com amigos próximos,
o ex-presidente José Sarney, ao saber da
indicação de Múcio, fez a leitura otimista
de uma raposa: “Os militares estão gos-
tando da escolha do Múcio porque vão
mandar nele.”
.
Ainda durante a transição, Múcio
tentou contato com os comandantes mi-
litares. Suas ligações não eram atendi-
das, seus recados não recebiam retornos
e seus pedidos de visita eram repelidos.
O ministro então procurou Bolsonaro, a
quem conhecia desde os tempos em que
ambos foram deputados. Tinham rela-
ções cordiais. Pediu que o então presi-
dente dissesse aos comandantes que, no
governo petista, tudo ocorreria dentro
da institucionalidade. Funcionou, em
parte. O general Freire Gomes e o bri-
gadeiro Baptista Júnior receberam Mú-
cio. O almirante Garnier, o plantonista
do golpe, não. No decorrer de dezem-
bro, quando todo o entorno de Bolsona-
ro maquinava contra a democracia,
.
Múcio excedeu-se a ponto de dizer em
uma entrevista que Bolsonaro era um
“democrata”. Nem assim reuniu capital
político para pedir aos militares o fim
dos acampamentos em frente ao qg.
E os militares, sobretudo o Exército,
estavam encantados com a tarefa de ce-
var o ninho da extrema direta. Os acam-
pados continuavam bloqueando vias e
fazendo arruaça em shoppings de Brasí-
lia. Na véspera do Natal, descobriu-se
uma caixa de explosivos acoplada a um
caminhão-tanque, carregado de com-
bustível, perto do aeroporto. O motoris-
ta Jeferson Henrique Ribeiro Silveira
percebeu a caixa com dinamite presa
em uma das rodas, abriu o artefato, viu
que havia explosivos, uma antena e de-
tonadores piscando. Tirou a caixa do
caminhão, afastou o veículo cerca de
500 metros e avisou seu chefe, que cha-
mou a polícia. Silveira, ele próprio bol-
sonarista, disse aos policiais que jamais
participara de bloqueios ou tivera qual-
quer envolvimento com a bomba. Em
menos de 24 horas, a Polícia Civil pren-
deu dois dos suspeitos. O terceiro, o jor-
nalista Wellington Macedo de Souza,
está foragido até hoje.
.
Embora fracassado, o atentado terro-
rista era um emblema do radicalismo
que explodiria no 8 de janeiro. Um dos
suspeitos presos, George Washington
de Oliveira Sousa, era herdeiro de uma
rede de postos de combustíveis, atirador
e gastara 160 mil reais em armas em
um ano. Viajara a Brasília numa picape
zero-quilômetro para viver entre o qg e
um apartamento alugado no bairro Su-
doeste. Do Pará, trouxera cinco emul-
sões explosivas à base de nitrato de amô-
nio, substância comum em áreas de
garimpo. No dia 23 de dezembro, um
dia antes do atentado, recebeu no
acampamento do qg um controle re-
moto e quatro acionadores. O outro
preso, o eletricista Alan Diego dos
Santos Rodrigues, um evangélico que
deixara mulher e dois filhos em Mato
Grosso, chegou em Brasília para se
“manifestar contra as eleições e tentar
receber o código-fonte das urnas”. Em
seu depoimento, contou que o assunto
“explosões” era comum no acampa-
mento e todos acreditavam que “a ex-
plosão atrairia a atenção de Bolsonaro
para invocar o artigo 142 e fazer a inter-
venção”. Rodrigues ajudou Sousa a co-
locar a bomba no caminhão.
.
Em seu depoimento, Sousa disse
que mantinha contato com um “im-
portante general do Exército” e que, no
ataque à sede da pf em Brasília, do
qual ele participou, havia conversado
com bombeiros e policiais militares no
local. Contou que ouviu deles que
“não iam coibir a destruição e o vanda-
lismo desde que os envolvidos não
agredissem os policiais”. Sousa disse
que acreditava que a “pm e o Bombeiro
estavam ao lado do presidente” e que
“em breve seria decretada a interven-
ção das Forças Armadas”. Como nada
aconteceu, resolveu agir “para provocar
a intervenção” e a “decretação de es-
tado de sítio para impedir a instauração
do comunismo no Brasil”.
.
Apesar da aparência de criminoso
mambembe, Sousa tinha conexões. As-
sim que a polícia lhe perguntou se que-
ria ligar para alguém, ele acionou dois
conhecidos. Um é o pecuarista Bento
Carlos Liebl, cuja família é dona de
mais de 30 mil hectares no entorno
de São Félix do Xingu, no Pará. Outro
é o empresário e político Ricardo Perei-
ra da Cunha, que, segundo reportagem
do Repórter Brasil, pedia Pix entre fa-
zendeiros da região amazônica para fi-
nanciar os acampamentos.
.
Neste caso, a Polícia Civil agiu rápido.
Prendeu os suspeitos e logo investigou.
Não encontrou conexão real com o Exér-
cito ou com “um general importante”.
Os contatos de Sousa no Pará posterior-
mente foram alvo de busca e apreensão.
Em maio, os dois terroristas fracassados
foram condenados às penas de 9 anos e
quatro meses (Sousa) e 5 anos e quatro
meses (Rodrigues), em regime fechado,
pelos crimes de incêndio com dolo, porte
ilegal de artefato explosivo e dano contra
a vida e o patrimônio. Apesar da confis-
são dos dois e da tragédia que a bomba
poderia provocar ao explodir um cami-
nhão de combustível, a polícia disse que
não achou indícios de terrorismo, nem
de atentado contra a democracia.
.
O desafio era óbvio: como organizar
uma posse presidencial, com a
presença de milhares de pessoas,
num ambiente em que militares prote-
giam criminosos? De cara, as incertezas
levaram ao alijamento do Gabinete de
Segurança Institucional (gsi), um ninho
de militares que, tradicionalmente, coor-
dena a segurança das posses presiden-
ciais e fora inteiramente capturado por
bolsonaristas. Mas, a essa altura, tam-
bém se desconfiava que grupos da pf e
da pm pudessem estar na conspiração
.Em razão de tantos temores, ficara
acordado durante a transição que a Es-
planada dos Ministérios seria fechada
para a cerimônia de posse. Na última
reunião da transição, porém, na qual
todo o planejamento de segurança foi
apresentado à primeira-dama, Rosânge-
la da Silva, a Janja, as coisas mudaram.
Janja queria que Lula fosse aclamado
pelo povo no trajeto da Catedral até o
Congresso, a bordo do Rolls-Royce pre-
sidencial. E Janja abriu a conversa em
termos exaltados. “Não foi isso que eu
determinei!”, reagiu, ao saber da ideia
de fechar a Esplanada. Argumentou-se
que o esquema fora definido em razão
da segurança. “Mas eu que mando. Ou
vocês não entenderam ainda? Vocês es-
tão descumprindo o que eu determinei!
E quem não entendeu, pode sair”, disse.
Depois da confusão, chegou-se a um
consenso: a Esplanada ficaria fechada
para a população em geral, mas teria
um público composto por militantes do
Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (mst), previamente creden-
ciados pela Secretaria de Segurança,
portando pulseiras de identificação.
Assim, cerca de 5 mil sem-terra vin-
dos de dezessete estados distribuí-
ram-se em diversos pontos entre a
catedral e o Congresso.
.
Restava o antigo caroço: era preciso
finalmente desmontar o acampamento
no qg antes da posse. No dia 27 de
dezembro, Flávio Dino se reuniu com
Ibaneis Rocha, José Múcio e o delegado
Andrei Rodrigues, da pf. “Nós tivemos
uma conversa clara, direta e muito efe-
tiva”, conta Dino. Na reunião, Ibaneis
acenou com a possibilidade de pedir ao
stf uma ordem judicial para desmon-
tar o ajuntamento sem depender do
Exército. A petição já estava até pronta.
Mas Múcio rechaçou qualquer ação à
revelia dos militares. Temia que, dada a
proteção que o Exército oferecia aos
acampados, o risco de golpe aumenta-
ria caso o acampamento fosse desfeito a
mando da Justiça.
.
No mesmo dia, o ainda secretário de
Segurança Pública, Júlio Danilo Ferrei-
ra, conseguiu acertar com o general
.Gustavo Dutra uma nova data para a
retirada: 29 de dezembro. A Secretaria
fez um planejamento envolvendo quin-
ze órgãos, entre os distritais e os fede-
rais. A pm designou quinhentos homens
para acompanhar a remoção. Às 6h30
da manhã do dia 29, quando toda a
equipe do governo distrital estava dian-
te da Catedral Rainha da Paz, os fiscais
de comércio ilegal começaram expul-
sando os ambulantes – e foram atacados
pelos acampados. O general Dutra, que
acompanhava a ação, não se indignou
com os ataques aos servidores, mas com
a quantidade excessiva de policiais. Ali
mesmo, mandou uma mensagem de
WhatsApp a um funcionário da Secre-
taria reclamando: “Estou preocupado
com a quantidade de meios [policiais]
que vieram. Conforme pleiteado, deve
ser sem violência”. E voltou a lembrar
os limites da ação: “Retirada das estru-
turas [barracas] vazias. A tropa hipo
[cavalaria], só em último caso. Não po-
demos subir a temperatura hoje.”
.
A Polícia do Exército continuou
onde sempre esteve: não deu pro-
teção aos fiscais. Houve atrito com
os militares quando a pm tentou intervir
para garantir a segurança dos servidores
do governo do df. Nesse momento, Du-
tra mais uma vez abortou a retirada
.campados, exasperando o governador
e toda a equipe que faria a posse presi-
dencial. “Claro que a gente ficou mais
inquieto”, relembra Dino. “Faltavam dois
dias para a posse e o entendimento acer-
tado no dia 27 era de que o acampa-
mento iria acabar.”
.
A continuidade do ninho do qg era
repleta de significados. Agradava a Bol-
sonaro, pois era a materialização do
seu apoio popular. Agradava a caserna,
insatisfeita com o resultado das urnas.
E testava a autoridade de Lula. Os
acampados que concordaram em falar
com a piauí dizem que se sentiam pro-
tegidos pelos militares, que às vezes até
ajudavam a montar barracas, como
mostram vídeos divulgados nas redes
sociais. O comando do Exército não
queria assumir o “desgaste” de infor-
mar aos “patriotas” que a intervenção
havia micado. Segundo membros da
caserna ouvidos pela revista, o “desgas-
te” devia ser bancado pelo general Júlio
César de Arruda, que comandaria o
Exército no governo Lula, e não pelo
general Freire Gomes, que estava no
cargo sob Bolsonaro.
.
O pesquisador Guilherme Lemos
da Silva Moreira, da Universidade Fe-
deral de São Carlos, ficou à paisana no
acampamento entre 26 e 30 de dezem-
bro, colhendo material para um traba-
lho do curso de antropologia social.
Testemunhou o corpo mole da Polícia
do Exército. “Eles quase pediam des-
culpas por terem de chamar a atenção
dos acampados por algum motivo”,
conta Moreira. Segundo ele, os milita-
res ajudavam com o trânsito quando os
manifestantes partiam para fazer buzi-
naços e apartavam eventuais brigas.
O estacionamento da Poupex, a previ-
dência privada do Exército, fora libera-
do para uso dos acampados motorizados.
A única vez que o pesquisador presen-
ciou uma ação mais contundente dos
militares foi quando dois repórteres
eram espancados. Usaram gás de pi-
menta para parar a violência.
.
Além do apoio explícito aos acam-
pados, os chefes das Forças Armadas
encontraram outro meio de tumultuar.
Queriam deixar seus cargos antes da
posse para não bater continência a
Lula. Como Bolsonaro anunciara que
não passaria a faixa presidencial e se
refugiaria nos Estados Unidos, os co-
mandantes acharam que deviam fazer
algo parecido. Múcio tentava demo-
vê-los. O general Freire Gomes esta-
va irredutível. Avisou que sairia antes
de Lula, mas aceitou postergar sua
saída até 28 de dezembro, num gesto
de “cooperação”. Para que o Exército
não ficasse nenhum dia sem comando,
coube a Bolsonaro exonerar um co-
mandante e nomear seu sucessor, o
general Júlio Cesar de Arruda. Era
uma aberração, própria de republique-
tas de quarteladas, que expunha o grau
de animosidade do Exército com um
governo que, sob todos os ângulos, fora
legitimamente eleito.
.
O general Arruda, embora fosse um
dos mais bolsonaristas do Alto Coman-
do, foi escolhido por Múcio com base
no critério de idade, em respeito à tra-
dição da corporação. Os seguintes da
lista eram os generais Tomás Paiva e
Valério Stumpf Trindade, ambos con-
siderados legalistas. Paiva tinha mais
apoio no novo governo e certa proxi-
midade com o psdb. Fora ajudante de
ordens de Fernando Henrique Cardo-
so nos anos 1990 e seu nome agrada-
va o vice Geraldo Alckmin e o futuro
ministro Flávio Dino. Além disso, Pai-
va comandava a maior tropa do país, o
Comando Militar do Sudeste, um an-
tídoto contra as velhas vivandeiras que
até hoje vão aos bivaques bulir com os
granadeiros e provocar extravagâncias
do poder militar. Já Stumpf estava den-
tro do quartel, como chefe do Estado-
Maior do Exército, um cargo mais bu-
rocrático e sem tropa. Mas a decisão
era de Múcio, que afinal recebera a
promessa de autonomia. E Múcio que-
ria Arruda. Lula concordou.
.
O almirante Garnier, o plantonista
do golpe, recusou-se a conversar com
Múcio e agendou sua exoneração para
a noite do 31 de dezembro. Não queria
ficar um minuto sob o comando de
Lula. O almirante é o pai daquele cons-
trangedor desfile da Marinha, em que
tanques sucateados se exibiram na Es-
planada soltando fumaça de óleo diesel.
Era agosto de 2021, a exibição deveria
ser um show de força para intimidar
parlamentares que analisavam a pec do
Voto Impresso. A pec foi derrubada e o
desfile virou chacota nacional, deixan-
do um rastro de memes impiedosos.
(Depois de ingressar na reserva e pas-
sar a frequentar o Clube Naval de Bra-
sília, nas tardes de ócio, Garnier achou
que era boa ideia ter contatos no novo
governo. E só então conversou com
Múcio, com quem mantém hoje uma
relação cordial – e longe das vistas dos
acampados.) A Aeronáutica teve a tran-
sição mais republicana. O brigadeiro
Marcelo Kanitz Damasceno, o novo
comandante na gestão petista, ajudou
a convencer o então ocupante do car-
go, Baptista Júnior, a esperar a posse
presidencial. Ele concordou, recebeu
Múcio e participou da passagem de co-
mando para Damasceno.
.
Diante desses movimentos, os acam-
pados entenderam que os militares não
atenderiam seus apelos golpistas. Co-
meçaram a bombardear a caserna nas
redes sociais, chamando os militares de
“frouxas armadas”, “traidores” e “covar-
des”. Na noite de Ano-Novo, indigna-
dos com a iminente posse de Lula, um
grupo de acampados do qg foi à frente
da casa dos generais, ali perto, para xin-
gar o Alto Comando. Alguns tentaram
invadir as residências, a tropa de choque
do Exército foi acionada e mostrou
que, afinal, sabia conter gente exaltada.
E Bolsonaro embarcara para os Estados
Unidos. A democracia e a normalidade
institucional pareciam ter vencido
. Na verdade, a senha para desmobili-
zar circulava havia alguns dias. Dois
acampados ouvidos pela piauí dizem
que, desde o dia 20 de dezembro, rece-
biam “mensagens” do núcleo duro de
Bolsonaro, avisando que não haveria
intervenção. Nenhum quis identificar
os interlocutores, mas era comum que os
acampados tentassem se valorizar di-
zendo que tinham contato com Bolso-
naro, ou pessoas próximas. O fato é que
o entorno do presidente estimulava essa
troca para manter sua base engajada.
Em muitas ocasiões, o coronel Mauro
Cid, o ajudante de ordens, interagiu
com esses grupos. Com frequência, re-
cebia mensagens de cunho golpista de
apoiadores, como as que vieram a públi-
co depois da apreensão de seu celular
no caso da falsificação da carteira de
vacinação de Bolsonaro.
.
Em uma dessas mensagens, reveladas
pela cnn Brasil, o ex-major Ailton Gon-
çalves Moraes Barros fala para Cid que
tinham de pressionar o então coman-
dante do Exército, Freire Gomes, “para
que ele faça o que tem que fazer” e que
“se for preciso, vai ser fora das quatro li-
nhas”. O ex-major diz que, se Freire Go-
mes não “aderisse”, Bolsonaro teria de
fazer um pronunciamento “para levantar
a moral da tropa” e mandar prender o
ministro Alexandre de Moraes. As res-
postas de Cid não foram divulgadas. Em
outra mensagem, o coronel da reserva
Antônio Elcio Franco Filho, secretário
do Ministério da Saúde na pandemia e
assessor de Braga Netto, sugere que Frei-
re Gomes só agiria se recebesse “ordem
por escrito”. Em maio, Barros e Cid fo-
ram presos na operação sobre a fraude
na vacina de Bolsonaro. Elcio Franco
continua em liberdade.
.
Embora Bolsonaro fosse considera-
do teimoso e irredutível, Cid era o que
chegava mais perto de manipular suas
ações. Antes da viagem para os Estados
Unidos, em 30 de dezembro, os minis-
tros do núcleo político tentaram con-
vencer Bolsonaro a gravar um vídeo
desmobilizando os acampados. Cid
convenceu-o do contrário. “Cid estava
por trás da cloroquina, da associação
da vacina da Covid à Aids, da ideia de
não reconhecer a vitória do Joe Biden”,
diz um ex-ministro de Bolsonaro, que
pediu o anonimato porque ainda inte-
gra a base de apoio do ex-presidente.
Ele conta que, em parte, o general Fer-
nando Azevedo e Silva foi demitido do
Ministério da Defesa em março de
2021 porque queria tirar Cid da ajudân-
cia de ordens de Bolsonaro. O general
estava farto de ouvir outros ministros
reclamando da interferência onipre-
sente de Cid no governo.
.
No início de 2022, seis ministros –
entre eles, Flávia Arruda, Ciro No-
gueira, Fábio Faria e Tarcísio de
Freitas –, se reuniram para encontrar
uma forma de derrubar o ajudante de
ordens. Não chegaram a um plano efi-
caz por falta de apoio do núcleo militar.
.
Outro ex-ministro, que também pediu
à piauí que sua identidade fosse preser-
vada, disse que participou de reuniões
em que Cid contestava falas de minis-
tros e interferia quando se reuniam
com Bolsonaro. Ele até evitava tirar
folga, trabalhando no turno dos seus
subordinados, para ficar mais tempo ao
lado do presidente. No dia 30, partiu
com ele para os Estados Unidos e lá
permaneceu, voltando apenas em mea-
dos de janeiro, quando sua situação
com a Justiça começou a se agravar.
“A posse ocorreu com tranquilida-
de”, diz Flávio Dino, ao relembrar que
o plano de segurança do governo distri-
tal foi cumprido, à exceção do desmon-
te do acampamento. “Em mobilização
de policiais militares, civis, bombeiros,
agentes de trânsito e barreiras, eu diria
até que o gdf [sigla usada para desig-
nar o governo do DF] cumpriu mais do
que pedimos”, diz o ministro. “Nos
dias 1º, 2 e 3 basicamente foram even-
tos de posse e os acampamentos come-
çaram a fenecer”, conta. No dia 4, as
tendas dos acampamentos pelo país
estavam se esvaziando. Enfim, parecia
que o país voltaria ao normal. Mas en-
tão o apetite dinheirista da Máfia do
Pix, aquele grupo que comandava as
cozinhas do acampamento de Brasília,
entrou de novo em ação.
.
Ana Priscila Azevedo era bancária,
deixou a profissão em 2013 e tor-
nou-se uma militante da inter-
venção militar. Criou um canal de
cunho golpista no YouTube e, segundo
ela mesma, ganhava cerca de 5 mil
reais mensais até 2020. A partir daí,
seus canais começaram a ser derru-
bados pelo YouTube em função das
investigações do stf sobre atos anti-
democráticos e milícias digitais.
.
Quando os bolsonaristas se instalaram
no qg em Brasília, ela abriu a principal
cozinha do acampamento, mantida
por doações via internet. A cpi dos
Atos Antidemocráticos na Câmara do
df descobriu que os depósitos eram
feitos sem prestação de contas. Os de-
putados distritais concluíram que par-
te das doações era embolsada pelos
donos das cozinhas – a própria Ana
Azevedo e seus dois sócios, Ramiro
Cruz Junior e Rubem Abdalla.
.
Às vésperas da posse presidencial, o
trio começou a se desesperar com a
queda nas doações, diante da desmobi-
lização no qg. Os três então tiveram a
ideia de forjar um novo acampamento,
dessa vez dentro da Esplanada
.adotando a antiga proposta do influencia-
dor Oswaldo Eustáquio. Iniciou-se
então a convocação nas redes para a
“tomada de poder” nos dias 7 e 8 de
janeiro. O plano não era quebrar tudo,
mas retomar a mobilização. Eles acha-
ram que, se antes falhara o “golpe mili-
tar”, a opção agora era o “golpe popular”.
.
As convocações começaram para
valer no dia 4 de janeiro. Azevedo fez
chamamentos; o cantor gospel Salo-
mão Vieira gravou vídeo conclaman-
do fiéis evangélicos a irem a Brasília.
Como inspiração, alguém postou um
vídeo em que populares invadem a re-
sidência presidencial do Sri Lanka,
em 9 de julho de 2022. Em grupos
bolsonaristas do Telegram acompa-
nhados pela piauí, usuários comparti-
lhavam links de compra de artefatos
de proteção militar, como máscaras de
gás. Ana Azevedo começou a transfe-
rir a estrutura no dia 7. De início,
como não tinha autorização legal para
se instalar no gramado da Esplanada,
montou seu aparato no estacionamen-
to do Ministério da Saúde. Depois,
quando a coisa já estivesse funcionan-
do, retiraria as tendas do qg.
.
As convocações chamaram a atenção
em alguns setores do governo, em espe-
cial do ministro Dino e o delegado
Andrei Rodrigues. “Alguns cards de pro-
testos falavam em fechar refinarias. Eu
então ligo para os governadores Tarcísio
de Freitas [de São Paulo] e Cláudio Cas-
tro [do Rio de Janeiro], além do Ibaneis, e
eles são muito receptivos. Dizem que vão
mobilizar as pms. E tudo funcionou, mes-
mo eles não sendo do nosso campo polí-
tico”, conta o ministro. O gdf de Ibaneis
marcou uma reunião para o dia 6 para
que todos os órgãos se alinhassem sobre
o que fazer diante da chegada iminente
de caravanas de ônibus a Brasília. Contu-
do, naqueles dias, os principais dirigentes
da Secretaria de Segurança Pública ti-
nham outras preocupaÇões – entre elas,
manter-se no cargo.
.
Anderson Torres, o novo secretário
de Segurança do df, indicara servido-
res da Polícia Federal para ocupar os
principais postos. Ele próprio fora de-
legado da pf antes de entrar na políti-
ca. Mas o ministro Dino acabara de
assinar uma portaria que lhe dava po-
der de veto sobre a cessão de qualquer
servidor da pf para órgãos públicos.
Então, naquele momento, todos os car-
gos da pasta de Torres, incluindo o
dele próprio, estavam sob o crivo de
Dino. “Eles passavam os dias tranca-
dos em reunião, sem ter qualquer con-
tato com os assuntos da Secretaria”,
conta um funcionário da pasta, que
falou com a piauí sob a condição de
não ter seu nome revelado.
.
A turma de Torres estava tão alheia
a tudo que, no dia 5, quando o general
Gustavo Dutra procurou a Secretaria
e pediu uma reunião para, enfim, des-
manchar o acampamento do qg, Tor-
res fez pouco caso, mas marcou o
encontro para a manhã do dia 6. Na
ocasião, aparentemente alheio a qual-
quer maquinação golpista, o general
Dutra pediu a Torres verba para aju-
dar os 150 remanescentes do acampa-
mento que não tinham dinheiro para
voltar para casa. Torres disse que não
tinha recursos, mas outra secretaria
trataria do caso.
.
No mesmo dia 6, na primeira reu-
nião ministerial do governo Lula, José
Múcio foi criticado abertamente pelo
presidente por ter dito que os acampa
.entos estavam se desfazendo por si
só. Diante da bronca pública, Múcio
chamou Arruda, o comandante do
Exército, e lhe deu um ultimato: desfa-
zer os acampamentos já. Arruda disse
que as coisas não poderiam ser feitas de
forma atabalhoada. E, pela primeira
vez, admitiu um dos fatos que explica-
ria, em parte, a proteção irrestrita dada
pelo Exército aos acampados: ali havia
militares da reserva e familiares de mi-
litares da ativa. Arruda insistiu que o
desmonte ocorresse de forma gradual,
com o apoio do gdf aos vulneráveis.
Enquanto isso, o pessoal da Secreta-
ria de Segurança se reuniu para plane-
jar a atuação nos protestos do fim de
semana. Torres não participou, o pes-
soal do gsi também se ausentou, mas ha-
via representantes da pm, dos bombeiros,
do Detran, das polícias da Câmara, do
Senado e do Supremo. O coronel Mar-
celo Casimiro Vasconcelos Rodrigues,
do 1º Comando de Policiamento Regio-
nal, que cuida da área da Esplanada,
chegou bem informado. Havia recebi-
do por WhatsApp um folder que convo-
cava para a “Tomada do Poder pelo
Povo”. A ata da reunião, à qual a piauí
teve acesso, mostra que o coronel Casi-
miro falou da circulação de “áudios em
redes sociais” alertando para a possibili-
dade de “ invasão de prédios públicos”,
afirmou que “não se pode descartar,
que é preciso ficar bem atento aos even-
tos”, informou “que haverá reforços de
viaturas”, propôs reforçar também “as
portarias e a segurança dos prédios fe-
derais” e alertou que seria “necessário
providenciar um outro esquema de se-
gurança se confirmados os atos”.
.
Os alertas eram apenas para constar,
tanto que, na hora h, a Polícia Militar es-
calou um major para cuidar da tropa na
Esplanada, e não um tenente-coronel ou
coronel. Em vez de oficiais, mobilizou
alunos da Academia de Polícia Militar
de Brasília sem equipamento apropria-
do. Não providenciou água nem comida
para os policiais escalados. Não fez o pla-
nejamento operacional, em que se infor-
ma a quantidade de efetivo e a posição
dos batalhões. Para piorar, na noite do
dia 7, o subcomandante-geral da corpo-
ração, o coronel Klepter Rosa Gonçal-
ves, determinou que todo o efetivo
ficasse de sobreaviso em casa, e não de
prontidão no quartel. Com isso, entre o
acionamento de um oficial e sua chega-
da a campo, gastam-se pelo menos duas
horas – tempo suficiente para que a Pra-
ça dos Três Poderes fosse destruída.
.
A Polícia Militar fez o que fez – e
não estava no escuro. Depois de tudo, a
Polícia Federal realizou uma operação
na casa do coronel Paulo José Bezerra,
responsável interino pelo Departamen-
to Operacional da pm, e encontrou
mensagens comprometedoras. Mos-
tram que, quando cumpriu a ordem de
deixar a tropa de sobreaviso para o dia
8 de janeiro, o coronel Paulo José estava
a par da gravidade dos atos. Ele tinha
um informante dentro do qg que lhe
dissera, no dia 7, que os manifestantes
estavam “preparados para a guerra” e
“não vão ceder de forma alguma”.
.
Alertava que havia risco de “morte” e que
as coisas estavam “mais sérias do que mui-
tos brasileiros estão imaginando”. O co-
ronel Paulo Jose repassou esse relato a
colegas da pm, inclusive ao próprio co-
ronel Casimiro. Mesmo assim, não se
tomou nenhuma prevenção.
.
Enquanto o gdf agia como se tudo
estivesse dentro da normalidade,
no governo federal crescia a preo-
cupação. No dia 7, o delegado Andrei
Rodrigues, a par da agitação nas redes
sociais, pediu à Secretaria de Segurança
Pública que não autorizasse a descida
dos manifestantes do qg para a Espla-
nada. Fernando de Souza Oliveira, que
estava no comando da secretaria em
razão da viagem de Anderson Torres de
férias para os Estados Unidos, alertou-o
sobre um obstáculo legal: só podia bar-
rar os manifestantes mediante ofício do
ministro da Justiça. Dino, no entanto, só
encontrou previsão legal para impedir a
circulação de ônibus e caminhões na
Esplanada, não de manifestantes. Assim
foi feito, mas o delegado Andrei Rodri-
gues continuou aflito. A um auxiliar, ele
confidenciou que “não identificava ne-
nhum elemento de segurança” e que
não havia “nem o mínimo razoável”.
Já os militares seguiam tranquilos.
Mesmo alertado pela Secretaria de Se-
gurança sobre a chegada das caravanas
e montagem de barracas no qg, o gene-
ral Dutra continuou impassível. Por
WhatsApp, recebeu imagens dos ôni-
bus chegando, enviadas por um servi-
dor da Secretaria. Respondeu:
– Bom dia, estamos coibindo.
.
Uma hora depois, o general recebeu
em seu WhatsApp mais fotos e vídeos
de barracas sendo montadas. Voltou a
minimizar o problema:
– Acredito que tenham chegado cer-
ca de dez ônibus, confere?
Não conferia. Seu interlocutor respon-
deu que havia “muito mais” e, outra vez,
disse que o Exército não estava coibindo
nada. Quando começaram a desembar-
car fardos de água, um funcionário do
gdf voltou a chamar a atenção do gene-
ral, que se esquivou do assunto:
.
– Não posso coibir levar água.
Quando os manifestantes começa-
ram a fazer arruaça nas ruas do entor-
no, o general Dutra foi informado
que havia pouco efetivo e apenas duas
viaturas do Exército bloqueando a
turba de duzentas pessoas. O general
não respondeu nada. Minutos depois,
seu WhatsApp recebeu outro aviso de
que os manifestantes estavam tentan-
do romper o bloqueio. Novamente, o
general não disse nada. Por fim, rece-
beu a informação de que o bloqueio
havia sido rompido – e a Secretaria de
Segurança iria fechar o acesso ao
smu. Só então, o general deu sinal de
vida. Agradeceu a medida, em tom
de reclamação
.– Vai tumultuar bastante, vai dificul-
tar bastante o acesso ao smu e prejudi-
car os moradores – disse, e concluiu:
– Mas é melhor.
.
Na véspera do dia 8 de janeiro, o go-
vernador Ibaneis Rocha ficou inacessí-
vel. Às 20h11, Dino enviou dois ofícios
ao governador informando que mobili-
zara a Força Nacional para proteger os
prédios da pf e do Ministério da Justi-
ça, e oferecendo ajuda ao gdf. Não
obteve resposta. Então, ligou, mas não
foi atendido. Às 23h28, Dino leu uma
reportagem do site Metrópoles infor-
mando que Ibaneis liberara as manifes-
tações na Esplanada. Mandou o link
da matéria ao governador e pediu expli-
cações. Enfim, obteve retorno. “Situa-
ção tranquila, no momento.”
.
O governador parecia encontrar-se
num estado impróprio para conversas
longas e respostas elaboradas. Na mes-
ma noite de 7 de janeiro, o presidente
do Senado, Rodrigo Pacheco, enviou
suas preocupações. “Estimado governa-
dor, boa noite! Polícia do Senado está
um tanto apreensiva pelas notícias de
mobilização e invasão ao Congresso.
Pode nos ajudar nisso? Abraço fraterno.
Rodrigo.” O governador respondeu em
três mensagens curtas:
– Já estamos mobilizados.
– Não teremos problemas.
– Coloquei todas as forças nas ruas.
Na manhã de domingo, dia 8, a
Polícia Militar estava tranquila.
.
Seus relatos informavam que os
ânimos se mantinham pacíficos e nem
havia certeza de que os bolsonaristas
desceriam à Esplanada. Em depoimen-
to, depois de ser presa no dia 11 de ja-
neiro, Ana Priscila Azevedo disse que
não havia acordo sobre a descida por-
que a estrutura do acampamento na
Esplanada ainda não estava pronta.
Mas contou que seu sócio na cozinha,
Rubem Abdalla, decidira comandar a
descida. Durante o trajeto, de início pa-
cífico, os espíritos foram se exaltando
na medida em que se ouviam gritos de
“tomar o poder” e “invadir tudo”. Já en-
tão era tarde demais para a pm abortar
a caminhada. Às 14h30, a massa rom-
peu a primeira barreira de revista – e
Dino correu para o Ministério da Jus-
tiça, aonde chegou a tempo de ver a
multidão invadindo o Congresso sem
qualquer resistência da pm.
.
Dino acionou o governador do df.
Mais uma vez, sem sucesso. Ligou en-
tão para Gustavo do Vale Rocha, chefe
da Casa Civil do governador, que se des-
locou de imediato até o Ministério da
Justiça, acompanhado da vice-governa-
dora, Celina Leão. Ali, no Ministério da
Justiça, começou a se formar o bunker
do legalismo. Chegou Ricardo Garcia
Cappelli, secretário executivo de Dino,
chegou Alexandre Padilha, ministro da
Secretaria de Relações Institucionais.
Logo chegaram José Múcio, da Defesa,
Miriam Belchior, secretária executiva
da Casa Civil, e o ministro-chefe do gsi,
general Marco Edson Gonçalves Dias,
que respondeu pela segurança de Lula
durante duas décadas.
.
Quando Dino telefonou para Lula,
que cumpria agenda em Araraquara, no
interior de São Paulo, a decretação de
uma glo, que entrega a segurança pú-
blica para as Forças Armadas, já estava
descartada. Discutiu-se a alternativa de
uma intervenção federal. Nesse caso,
toda a cúpula do gdf é afastada. Lula
descartou a ideia. Preferiu a intervenção
apenas na área da segurança pública.
Num primeiro momento, o interventor
seria Dino. Quando o decreto que o no-
meava para a função já estava pronto
para ser assinado por Lula – tudo por
meio de WhatsApp –, o ministro deu-se
conta de que, pela Constituição, ele,
como senador diplomado, só poderia
assumir a função de ministro no Execu-
tivo, não a de interventor.
.
Nesse momento, Ricardo Cappelli
estava exasperado. Da janela do minis-
tério, ele observava a tropa da Força
Nacional permitindo que os manifes-
tantes passassem pela lateral do prédio.
Desceu até o térreo para falar com eles.
“Eles não faziam nada. Eu achei aquilo
um absurdo. Aí eu desci e me apre-
sentei como secretário do ministério e
botei voz de comando neles. Falei: ‘Olha,
daqui não passa mais ninguém. Não
entra manifestante’”, relembrou à piauí.
Pela janela, os ministros Dino e Padilha
testemunhavam a reação de Cappelli.
Quando ele subiu de volta ao gabinete,
já era chamado de interventor.
.
Quando Cappelli assumiu a nova
função, a pm finalmente havia convoca-
do toda a tropa para a Esplanada. O ba-
talhão de choque varria o gramado com
ajuda da cavalaria e das bombas de efei-
to moral disparadas por helicópteros.
Mas Cappelli achou que a movimenta-
ção da linha de choque era lenta demais
e cobrou rapidez. Os policiais militares
não concordavam com a avaliação do
interventor, que, segundo eles, não en-
tendia como funcionava uma linha de
choque. Cappelli também pediu que o
batalhão de choque prendesse os mani-
festantes, mas recebia a resposta de que,
primeiro, era preciso paralisar os ata-
ques para então efetuar as prisões.
.
O general Gonçalves Dias, chefe do
gsi, deixou o Ministério da Justiça e
deslocou-se para o Planalto, já parcial-
mente invadido. Chegou mandando
prender todos os manifestantes. O re-
sultado foi uma cena brancaleônica,
protagonizada por incompetentes e
por conspiradores. Para operacionali-
zar as prisões, o general G. Dias, como
é conhecido, ligou para o coronel
Wanderli Baptista da Silva Júnior, dire-
tor-adjunto do Departamento de Segu-
rança Presidencial. Como recebera
ordem de apenas evacuar os invasores,
sem prender ninguém, Silva Júnior re-
solveu confirmar a determinação de
fazer as prisões. Ligou para seu supe-
rior, o general Carlos Feitosa Rodri-
gues. Nesse meio tempo, a Polícia
.Militar e o Batalhão da Guarda Presi-
dencial (bgp) se desentendiam. A pm
querendo prender e o bgp, ligado ao
Exército, impedindo as prisões. O mi-
nistro Dino queria prisões imediatas.
.
“Meu medo era o efeito dominó, caso
isso se consolidasse pelo país. Seria um
problema nacional. A minha visão era
de pânico. Para mim, aquilo era a colu-
na do general Mourão”, relembra o mi-
nistro, referindo-se ao dia 31 de março
de 1964, quando o general Olympio
Mourão Filho – depois de tirar o pija-
ma e o roupão de seda vermelho, como
fez questão de registrar em suas memó-
rias – desceu com seus tanques de Juiz
de Fora em direção ao Rio de Janeiro,
colocando em marcha o golpe que le-
varia os militares ao poder por 21 anos.
“Esse pessoal tem gente em torno, tem
base social, não é um amontoado de
desvairados. E, no vai que cola, vai que
cola? Imagine a gente lidando com
uma crise como essa em dez estados?”
.
O governador Ibaneis Rocha conti-
nuava hibernando. Dino não conseguia
achá-lo. Nem a presidente do stf, Rosa
Weber, nem o presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco, nem o presidente da
Câmara, Arthur Lira. Quando final-
mente alcançou o governador, ainda
antes da invasão do stf, Rosa Weber
recebeu uma resposta telegráfica: “Es-
tamos cuidando.” Depois de horas de
sumiço e mensagens lacônicas, o go-
vernador terminou o dia 8 de janeiro
destituído do cargo pelo stf. Mas
Dino não acredita que o governador
fizesse parte da teia do golpe. “Minha
hipótese não era de que o Ibaneis sabia
do golpe, e sim que ele ouvia isso [de
que tudo estava sob controle] da equipe
dele. Ele ouvia e transmitia para mim,
para o Lira, para o Pacheco e para a
Rosa. Mas que a equipe estava coni-
vente, eu não tenho dúvidas. O que
estamos tentando identificar é quem
estava conivente.” Procurado pela piauí,
o governador não quis falar.
.
O comandante-geral da pm no dia
8 de janeiro, coronel Fábio Augusto Viei-
ra, foi preso nas investigações, suspeito
de ter colaborado com golpistas. Na vés-
pera do ato, no entanto, ele agira confor-
me o figurino. Pediu que a tropa da pm
fosse reforçada – e foi ignorado por seus
subordinados. Ele entrou em ação, atu-
ando nos confrontos e saiu ferido. Mes-
mo assim, ficou 24 dias preso até os
investigadores descobrirem que não era
um colaboracionista. Já seus subordina-
dos, que desobedeceram suas orienta-
ções, nunca foram incomodados. Em
maio, o Ministério Público Federal con-
cluiu que a atuação dos policiais milita-
res não teve “dolo”. A pf apontou que o
coronel Paulo José, cujo informante aler-
tou que os atos seriam violentos, incorreu
apenas em “omissão”. O coronel Klepter
Rosa, que cometeu o erro de deixar a
tropa apenas de sobreaviso, foi promovi-
do a comandante-geral da pm quando o
coronel Fabio Augusto estava injusta-
mente preso. E segue no cargo até hoje.
.
O Supremo, o Planalto e o Congres-
so foram desocupados perto das
18 horas, mais de três horas de-
pois do rompimento da primeira barrei-
ra de revista. A partir de então, os 2 mil
policiais militares que estavam em
campo começaram a cumprir as ordens
de prisão. A orientação era marchar da
Esplanada em direção ao qg e pren-
der todos que estivessem no caminho.
.
A operação era chefiada pelo coronel
Jorge Eduardo Naime Barreto. Consi-
derado o policial mais experiente da
pm, Naime estava em férias no início de
janeiro, mas se juntara à tropa naquele
domingo para ajudar a combater os vân-
dalos. Porém, como sua folga coincidira
com a cadeia de erros cometidos pela
corporação nas vésperas do dia 8, os in-
vestigadores desconfiaram de seu en-
volvimento na conspirata golpista.
.
Naime está preso desde fevereiro.
Em depoimento à cpi do Distrito
Federal, Naime contou que começou a
sentir a animosidade do Exército assim
que se aproximou do acampamento no
qg para efetuar as prisões, na noite do
dia 8. Ele estava comandando a tropa
de choque em frente à Catedral Rai-
nha da Paz, uma área pública. Mas
logo foi abordado por um tenente do
Exército. Exaltado, o militar dizia que
o coronel não podia estar ali fazendo
prisões porque era “área do Exército”.
.
O coronel prosseguiu com as prisões,
levando cerca de cinquenta pessoas.
Minutos mais tarde, viu uma cena in-
sólita. “Quando eu olhei para trás, ti-
nha uma linha de choque do Exército,
montada com blindados”, disse. “Eles
não estavam voltados para o acampa-
mento. Eles estavam voltados para a
pm, protegendo o acampamento.”
.
O interventor Ricardo Cappelli não
demorou a chegar ao local. Quando
avistou a tropa do choque do Exército
voltada contra os policiais, disse ao co-
mandante-geral da pm, coronel Fábio
Augusto: “Comandante, prepare a tropa
porque a gente vai prender todo mundo
lá dentro.” O coronel ficou nervoso e
ligou para o general Gustavo Dutra, do
Comando Militar do Planalto, para avi-
sar que faria as prisões. Dutra mandou
pedir para encontrar Cappelli dentro
de alguns minutos em frente à Torre de
tv, um ponto não muito distante dali.
Ao ouvir o recado, Cappelli se recusou:
“Manda dizer que eu não saio daqui. Se
ele quiser falar comigo, que venha para
cá.” O general foi. O diálogo, segundo
Cappelli e outras duas testemunhas,
começou com o general Dutra colocan-
do panos quentes:
.
– General, como assim, calma? Eu
vou entrar – reagiu Cappelli.
– Se o senhor entrar, haverá um ba-
nho de sangue – disse Dutra.
– Banho de sangue por quê, general?
Por acaso tem manifestante armado
dentro do acampamento, sendo protegi-
do pelo Exército?
.
– Não – disse o general. – É porque
está de noite, os ânimos estão exaltados,
vai ter gente que vai correr, vai ter enfren-
tamento, as pessoas podem se machucar.
O banho de sangue, bem entendido,
seria a tropa do Exército investindo con-
tra os policiais, e não contra os manifes-
tantes. Nesse momento, Cappelli
resolveu ligar para Dino para explicar o
impasse. Enquanto isso, o general Dutra
apressou-se em ligar para G. Dias e expor
a avaliação do Exército para Lula, segun-
do a qual as prisões naquele momento
eram uma “operação de alto risco”.
.
Como estava ao lado de Lula no Palácio
do Planalto, G. Dias desligou o telefone
e consultou o presidente sobre o assunto.
Dois minutos depois, retornou a ligação:
.
– O presidente está muito irritado e
diz que é para a polícia entrar [no acam-
pamento] – disse G. Dias.
– General, vai dar problema – pon-
derou Dutra.
– Então, fala com ele – respondeu G.
Dias, passando o telefone para Lula.
Dutra ficou surpreso. Pelo rito hie-
rárquico, não cabe a um general de três
estrelas conversar com o presidente sem
a presença do comandante do Exército.
Mas, naquela situação de emergência,
Dutra foi em frente e expôs seu pleito.
Lula reagiu:
– Eles são criminosos, têm que ser
todos presos – disse.
– Presidente, ninguém duvida disso.
Serão todos presos. Mas, até agora, nós
só estamos lamentando dano ao patri-
mônio. Nós podemos terminar essa noi-
te com sangue.
.  Seria uma tragédia – disse Lula,
que acabou concordando que as prisões
fossem feitas apenas ao amanhecer.
.
O aval do presidente, porém, não
chegou a todos – e nem todos acredita-
ram que, de fato, o general Dutra falara
com Lula. Neste clima de desconfian-
ça e incerteza, Dutra disse a Cappelli
que o comandante do Exército, Júlio
Cesar Arruda, queria vê-lo no prédio
do Comando Militar do Planalto, a
poucos metros dali. Cappelli e auxilia-
res encontraram o general à porta do
quartel, cercado por vinte militares. Na
sala de reuniões, com a presença de
Cappelli e do coronel Fábio Augusto,
o comandante da pm, o general abriu
sua artilharia verbal.
.
– O senhor ia entrar aqui com tropas
sem a minha autorização? – indagou
Arruda, dirigindo-se a Cappelli.
– Não, general. Eu ia consultá-lo –
respondeu Cappelli, constrangido com
a abordagem à queima-roupa.
– Eu acho que tenho uma tropa um
pouco maior que a sua, não é, coronel
Fábio Augusto? – provocou Arruda, vi-
rando-se para o comandante da pm.
Cappelli, duvidando de que o gene-
ral Dutra tivesse falado com Lula, insis-
tiu nas prisões imediatas e argumentou
que a situação daquela noite era absur-
da, que o acampamento tinha de ser
desfeito e as prisões precisavam ser efe-
tuadas o quanto antes.
– O senhor não concorda, general?
– perguntou Cappelli.
Não – cortou Arruda. – O senhor
tem que entender que o Brasil está
dividido.
.
Era a histórica cantilena militar de
que eleição boa é eleição a favor. A afir-
mação de Arruda deixou o clima uma
tonelada mais pesado. O general prosse-
guiu dizendo que precisava que os ôni-
bus fossem devolvidos para que os
acampados pudessem ir embora e o
acampamento, enfim, ser desmontado.
Tudo indicava que o general não tinha
intenção de colaborar nas prisões acerta-
das nem para o amanhecer do dia. Cha-
mados para desfazer o impasse, três
ministros apareceram no quartel: Dino,
Múcio e Rui Costa, chefe da Casa Civil.
Cappelli e o coronel Fábio Augusto fo-
ram para a antessala, e o trio de minis-
tros assumiu a negociação com o general
Arruda. Quando deixaram o Comando
Militar do Planalto, o plano estava defi-
nido: ao raiar do dia, os acampados se-
riam retirados, colocados em ônibus e
levados para a sede da pf. Já passava de
duas da madrugada.
.
Às seis da manhã, cerca de 500 po-
liciais militares, mais uma vez, esta-
vam posicionados na Catedral Rainha
da Paz. Para convencer os acampados
a saírem do local, um capitão do Exér-
cito pegou um megafone e os orientou
a deixarem as barracas e se dirigirem,
levando seus pertences, aos ônibus es-
tacionados ali perto. Eles obedece-
ram, seguindo em fila. Muitos nem se
deram conta de que estavam sendo
presos. Confiavam tanto no Exército
que pensaram que embarcariam nos
ônibus para voltar para casa.
.
Entre os presos, há uma enorme
diversidade. O vendedor de picolé de
Salvador que aproveitou a viagem
de graça para Brasília e a ajuda de cus-
to de 400 reais. O jovem que chegou
à capital com despesas pagas por fa-
zendeiros do Pará. O pernambucano
que fugia da perseguição do pcc e
achou boa ideia morar no acampa-
mento. O mineiro de 20 anos que foi
passar seu aniversário em Brasília, es-
condido da mãe. O evangélico do
Piauí que se deslocou para a capital
federal em busca de emprego e aca-
bou atraído pela comida de graça. No
quebra-quebra, ele quis entrar no stf
e terminou preso, mas acredita que
“se fizer algo contra Lula” ainda vai
“parar no Céu”. E há os convictos.
.
“Eu me deslumbrava. Achava que o
Exército era uma entidade fortíssima”,
diz o consultor de seguros Antônio
Augusto Menezes Costa, de 57 anos,
que chegou ao qg na manhã do dia 8
de janeiro, oriundo de Vitória, no Es-
pírito Santo. “Eu não culpo o baixo
escalão. Eu culpo o alto escalão. Eles
que são maus. Não acataram a ordem
verdadeira que o Exército poderia to-
mar sobre si.” A “ordem”, claro, era a
intervenção militar. Costa votou em
Lula duas vezes, mas decepcionou-se
com a corrupção. Não conhecia Brasí-
lia. Ao chegar na capital, alugou uma
barraca no acampamento mas, cansa-
do da viagem, pegou no sono e perdeu
a descida para a Esplanada. Terminou
preso. Como tem pressão alta, acabou
liberado. Passou a noite na rodoviária
de Brasília e, na manhã do dia 10 de
janeiro, tomou o ônibus para Vitória.
Acredita que a quebradeira foi obra de
“infiltrados” e continua fã de Bolsona-
ro – “fala a verdade”, “é honesto” e
“luta pela liberdade”. E, agora, odeia
generais, almirantes e brigadeiros.
.
Na tarde do dia 21 de janeiro, o site
Metrópoles informou que o ex-
ajudante de ordens de Bolsona-
ro, o coronel Mauro Cid, comandaria
o Batalhão de Operações Especiais de
Goiânia, o de maior prestígio no Exér-
cito. O batalhão é responsável pelo
bgp, que faz a guarda presidencial.
.
A notícia surpreendeu metade da Re-
pública – do ministro Gilmar Men-
des, do stf, ao presidente do tcu,
Bruno Dantas. Naquela noite, Lula in-
terpelou seu ministro da Defesa sobre o
assunto. José Múcio desconversou. Na
manhã seguinte, às 6h40, antes de em-
barcar para Roraima, Lula voltou a li-
gar, impaciente. Não pediu a demissão
do general Arruda, que nomeara Cid,
mas cobrou resultado. “Quero ver
como você vai resolver isso”, disse.
Múcio prometeu que quando Lula
voltasse de Roraima, onde se descobri-
ra o surto de doença e fome que vinha
matando os yanomamis, “o problema
estará resolvido”.
.
Àquela altura, Cid já estava sob in-
vestigação do Supremo por participa-
ção das maquinações do golpe, mas
Múcio queria reverter sua indicação de
modo diplomático. Fez chegar ao mi-
nistro Alexandre de Moraes um pedido
para que fizesse constar nos autos do
inquérito, explicitamente, que Cid era
investigado. Assim, Múcio poderia con-
testar a promoção com argumentos ju-
rídicos. Moraes topou. Mas, antes disso,
Múcio chamou o general Arruda para
uma conversa. Ouviu uma desculpa de
ordem administrativa para manter a in-
dicação de Cid. Múcio resistiu. A con-
versa azedou e, sem outra saída, Múcio
demitiu o general do comando do Exér-
cito ali mesmo. À noite, Lula disse a
Múcio que naquele dia, ao cortar a ca-
beça de Arruda, ele havia, de fato, assu-
mido como ministro da Defesa.
.
O telefonema de Múcio convi-
dando o general Tomás Paiva para
substituir o general Arruda pegou-o
desprevenido, de bermuda, fazendo
compras no supermercado, em São
Paulo. Paiva pediu uns minutos para
pensar e consultou Arruda, de quem é
amicíssimo. Os dois se formaram na
Academia Militar das Agulhas Negras,
em Resende, no mesmo ano. Na con-
versa com Arruda, tomou pé da situa-
ção e, em seguida, ligou para Múcio
aceitando o cargo. Paiva tinha as
mesmas credenciais militares que o
antecessor, mas havia uma diferença
crucial: era um legalista, já defendera
publicamente a democracia e a sobera-
nia do voto popular. Naquela tarde,
tomou um avião para Brasília, conver-
sou com Lula e saiu comandante do
Exército. A mudança, comunicada ao
Alto Comando em uma reunião vir-
tual, chegou sem sobressalto. Até para
os militares, era uma demissão óbvia.
Os personagens mencionados nesta
reportagem tiveram destinos diversos.
.
O general Dutra permaneceu como
comandante militar do Planalto até o
dia 12 de abril. Depois de deixar o car-
go, foi convocado pela cpi da Câmara
Distrital para explicar a relação entre
o Exército e o acampamento. A caser-
na fez gestões para mudar a “convoca-
ção” para “convite” – uma diferença
sutil, que demonstra a dificuldade dos
militares em assumir qualquer respon-
sabilidade sobre o ocorrido naqueles
dias. Em seu depoimento, Dutra men-
tiu à vontade. Disse que a Polícia
Militar “nunca combinou conosco de
desmobilizar o acampamento” e que o
Exército não deu “vida fácil aos mani-
festantes”. Negou, inclusive, que o
Exército tenha apontado seus tanques
para a pm na dramática noite de 8 de
janeiro. Alegou que a tropa estava ali
para proteger o quartel dos vândalos.
.
Anderson Torres passou 117 dias
preso depois que a polícia encontrou
em sua casa uma minuta para decretar
“estado de defesa” e intervir no tse –
era a “minuta do golpe”, como ficou
conhecida. O general G. Dias acabou
pedindo demissão do gsi, depois que
um vídeo revelado pela cnn Brasil o
mostrou caminhando tranquilamente
no Planalto no auge das depredações.
O coronel Cid, cujo nome aparece en-
volvido em todos os escândalos desen-
terrados do governo Bolsonaro, está
preso desde o início de maio.
.
O general Júlio Cesar Arruda, o ex-
comandante do Exército, está na reser-
va e continua impávido. Durante a
apuração desta reportagem, a piauí per-
guntou a todos os entrevistados sobre o
seu caso. Afinal, o general protegeu um
ninho de manifestantes – que incluía
criminosos, como promotores de aten-
tados –, resistiu à ordem do interventor
de prender os golpistas, chegou ao ex-
tremo de usar o batalhão de choque do
Exército para arreganhar os dentes para
uma tropa da Polícia Militar – e, mes-
mo assim, atravessou a tempestade sen-
tado na cadeira de comandante do
Exército. Dentre todas as respostas, a de
Cappelli dá uma ideia de como é tênue
a teia da democracia:
– Você tira a tampa da panela de
pressão com ela fervendo? – ele pergun-
ta, e ele mesmo responde: – Não, você
espera a temperatura baixar.
.PIAUI
.

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