O TSE tenta inibir a sanha golpista de empresários pró-Bolsonaro, mas o espírito da casa-grande contamina a elite
POR ANDRÉ BARROCAL...
No fim de julho, a Agência Brasileira de Inteligência e a Polícia Federal receberam uma denúncia de que grupos de extrema-direita preparam um ato violento, um atentado, para levar a cabo até a eleição, com chance maior de ocorrer em 7 de setembro. O objetivo da violência seria espalhar o caos e culpar a esquerda. Sua concretização seria mais fácil se os festejos pelos 200 anos da Independência ocorressem em Copacabana, como quer Jair Bolsonaro, e não no Centro do Rio de Janeiro. O bairro é um reduto bolsonarista, lar de militares aposentados, abrigo de prédios capazes de esconder um atirador, por exemplo. A denúncia, anônima, foi feita por telefone por um integrante da Rede Nacional de Inteligência Cidadã, espécie de Abin popular. A Renic investiga bandos extremistas e crê que parte deles é financiada por empresários.
“Siga o dinheiro.” A velha máxima parece ter levado Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do STF, a quebrar os sigilos bancário e fiscal de oito empresários bolsonaristas golpistas e a bloquear suas contas correntes. Por ordem do juiz, a turma também teve os celulares apreendidos, residências e escritórios vasculhados, redes sociais suspensas e o depoimento tomado pela PF na terça-feira 23. A batida havia sido solicitada pela própria polícia quatro dias antes. Um delegado aposta em uma nova ação em breve, em razão da análise do material recolhido e do que existe no inquérito. Prisões? Para esse delegado, mais importante do que a trilha financeira, é a comunicacional, o teor dos celulares confiscados.
Até a conclusão desta reportagem,
na quinta-feira 25, a decisão de Moraes
era mantida sob sigilo, não se conheciam
suas razões. Pistas sobre o fator “grana”
estão no ar. Em 17 de agosto, o site Metró-
poles noticiara a existência de um grupo
de WhatsApp criado por empresários de-
fensores de um golpe contra Lula. Embo-
ra haja manifestos aqui e ali a favor da de-
mocracia (e, por tabela, contra o capitão)
concebidos na alta roda, na dita “elite” so-
bram partidários do presidente e má von-
tade para com o petista. Três das mensa-
gens reveladas levam ao caminho do di-
nheiro. Em 31 de maio, José Koury con-
tou ter encomendado “milhares de ban-
deirinhas para distribuir para os lojistas e
clientes do Barra World Shopping a partir
de setembro”. É o dono do shopping. Dois
meses antes, escrevera: “Alguém aqui no
grupo deu uma ótima ideia, mas temos
que ver se não é proibido. Dar um bônus
em dinheiro ou um prêmio legal pra to-
dos os funcionários das nossas empresas”.
Resposta de Marco Aurélio Raymundo, o
Morongo, das lojas Mormaii: “Acho que
seria compra de votos... complicado”.
No Supremo, Moraes conduz um in-
quérito sobre milícias digitais e outro so-
bre uma quadrilha de carne e osso sabo-
tadora da democracia. Sua visão é de que
tanto as milícias quanto a quadrilha com-
põem-se de quatro núcleos. O produtor de
mentiras (“gabinete do ódio”), o encarre-
gado de disseminá-las nas redes sociais
(robôs) e o político, que leva os assuntos ao
debate público. “Todos esses permeados
pelo quarto núcleo, que é o financeiro”,
comentou em 11 de julho, na Escola Ju-
diciária Eleitoral Paulista. “Empresários
bancando com três finalidades”, prosse-
guiu, “ganhar dinheiro, lavá-lo e ter po-
der.” Ao abrir o inquérito sobre a quadri-
lha, em julho de 2021, anotara que entre
os delitos potenciais estavam lavagem
(Lei 9.613), sonegação (8.137) e crime con-
tra o sistema financeiro (7.492).
Provavelmente a partir de descobertas
desse inquérito, o 4.874, o time da delega-
da Denisse Ribeiro, principal investiga-
dora das milícias digitais e da quadrilha,
pediu a Moraes a operação contra os oito
empresários, todos presentes no grupo de
WhatsApp. Além de Koury e Morongo, os
alvos foram Afrânio Barreira Filho (Coco
Bambu), Ivan Wrobel (W3 Engenharia),
José Isaac Peres (Multiplan), Luciano
Hang (Havan), André Tissot (Sierra)
e Meyer Nigri (Tecnisa). Para alguns
advogados, como Pedro Serrano, profes-
sor de Direito da PUC de São Paulo, a deci-
são de Moraes terá sido abusiva e incons-
titucional se baseada apenas na troca de
mensagens. Mas, se houver indícios de fi-
nanciamento ao ataque às instituições, a
iniciativa estaria correta.
O bolsonarismo ficou uma fera com
a operação. Para os apoiadores do presi-
dente, Moraes inventou o “crime de pen-
samento”. “Beira o totalitarismo”, disse o
ministro da Justiça, Anderson Torres. Os
filhos do capitão chegaram perto de expor
o verdadeiro motivo da bronca, o medo de
a torneira financeira secar. “Conheço em-
presários com medo de se posicionarem
nessas eleições”, tuitou Flavio Bolsona-
ro. “É operação claramente para intimi-
dar qualquer figura notória de se posicio-
nar politicamente a favor de Bolsonaro e
contra a esquerda”, emendou Eduardo. O
PL de Bolsonaro tem 290 milhões dereais
de fundo eleitoral e o PT, 500 milhões.
Um dia após a batida contra os empre-
sários, Bolsonaro citou dois deles em Be-
lo Horizonte, com os quais teria “contato”,
Hang e Nigri. O primeiro é conhecido de
Moraes. Em maio de 2020, fora um dos al-
vos de uma operação autorizada pelo juiz
em um inquérito que se metamorfoseou e,
hoje, trata da quadrilha antidemocrática.
Na época, tivera os sigilos bancários e fiscal
quebrados de julho de 2018 a abril de 2020
e o celular e um computador apreendidos.
A quebra abrangia parte da última elei-
ção. Naquela campanha, foi multado pelo
TSE em 10 mil reais por pagar ilegalmente
propaganda pró-Bolsonaro no Facebook.
Também foi proibido pela Justiça de co-
agir funcionários a votar no capitão.
A eleição de 2018 fez do dono da Ha-
van réu em uma ação de cassação da cha-
pa de Bolsonaro que o PT propôs, em ra-
zão de disparos maciços de mentiras via
WhatsApp contra Fernando Haddad. O
empresário teria patrocinado a investida.
A ação foi julgada em outubro de 2021 no
tribunal e terminou com a absolvição da
chapa, por falta de provas contra os réus.
Nesse julgamento, Moraes declarou que, se
o mar de fake news se repetisse em 2022,
candidaturas seriam cassadas e os envol-
vidos, presos. Para reforçar a coleta de pro-
vas, o ministro acaba de nomear como as-
sessor no TSE Eduardo Tagliaferro, peri-
to forense especializado no mundo digital.
Nas conversas de WhatsApp recém-re-
veladas, fica claro que Hang pensa exata-
mente como Bolsonaro. Acha que o TSE
quer eleger Lula com fraude nas urnas e
que é preciso agir antes da eleição. Parece
crer que a saída é uma guerra civil. Em 4 de
junho, repassou no grupo um vídeo intitu-
lado “Urgente: Bolsonaro alerta para uma
possível guerra no Brasil”. Na véspera, o
presidente dissera em Umuarama, no Pa-
raná, que, “se precisar, iremos à guerra”. O
próprio capitão lhe teria enviado o vídeo.
O advogado do bilionário diz que o cliente
foi “surpreendido” com a operação de ago-
ra e que nunca falou “de STF ou de golpe
Nigri é outro com a visão conspirató-
ria de Bolsonaro, embora tenha dito ago-
ra, em sua defesa, que “nunca passou pela
cabeça de ninguém golpe”. Faz o que po-
de pelo capitão, desde a eleição passada.
Em 2016, na casa do empreiteiro em São
Paulo, o então deputado Bolsonaro co-
nheceu o publicitário Fábio Wajngarten,
ex-chefe da Secretaria de Comunicação
Social da Presidência e um dos cabeças da
campanha reeleitoral do capitão. Nigri e
Wajngarten são judeus e bem relaciona-
dos na comunidade israelense paulista.
Em fevereiro de 2018, o dono da Tecnisa
despontava na revista Piauí como um elei-
tor engajado do capitão, a quem, inclusi-
ve, havia deixado um jatinho à disposição.
“Apoio quem seja contra a esquerda, Bol-
sonaro, Alckmin ou qualquer outro”, di-
zia. Cerca de um mês depois da reporta-
gem, o nome “Meyer” era mencionado em
um almoço de Bolsonaro e os filhos Edu-
ardo e Carlos como fonte de recursos pa-
ra impulsionar no Facebook conteúdo a
favor do então presidenciável. O almoço
foi relatado à CPI das Fake News, em ou-
tubro de 2019, pelo deputado Alexandre
Frota, presente ao convescote.
No grupo de WhatsApp dos golpistas,
Nigri repetiu Hang em 4 de junho: fez cir-
cular aquele vídeo do “alerta” de Bolsona-
ro sobre guerra. Também teria recebido o
material do presidente. Ainda em junho,
esculhambou, via mensagens alheias, os
representantes do Supremo no TSE. E di-
zia que a pesquisa Datafolha divulgada por
aqueles dias (47% a 28% para Lula) tinha
sido “inflada” para camuflar a futura frau-
de eleitoral. Em 21 de julho, defendeu uma
apuração paralela dos votos pelo Exército.
“Faço uma homenagem especial ao ami-
go Meyer Nigri, em nome de quem cumpri-
mento toda a comunidade judaica, que co-
memorou 5.780 anos nos últimos dias. Fi-
caria difícil para mim nominar cada ami-
go. Então peço vênia para, em nome de
Meyer Nigri, cumprimentar a todos os pre-
sentes.” Palavras de Augusto Aras, o pro-
curador-geral da República, ao assumir o
cargo em 2019. Nos celulares apreendidos
com os empresários golpistas, a PF achou
mensagens de Aras, segundo o site Jota.
O procurador seria informante de inves-
tigados? Se sim, violou o sigilo funcional.
O crime é descrito no artigo 325 do Códi-
go Penal (“Revelar fato de que tem ciência
em razão do cargo e que deva permanecer
em segredo, ou facilitar-lhe a revelação”) e
custa até seis anos de cana. Recorde-se que
o delegado Bruno Calandrini pediu recen-
temente ao Supremo a prisão de diretores
da PF com a acusação de que eles agiram
para prevenir Bolsonaro e Milton Ribei-
ro de uma batida contra o ex-ministro da
Educação em junho.
Segundo o Jota, as conversas de Aras
com os empresários mostram críticas a
Moraes e defesa da reeleição de Bolso-
naro. Esse conteúdo, se verdadeiro, dei-
xa o “xerife” sob suspeição para atuar
como procurador-geral eleitoral. “Tro-
ca de mensagens entre empresários e o
PGR é muito grave. Aras também é pro-
curador eleitoral e conversava com gen-
te que defendeu o golpe. Que amizade é
essa?”, comentou publicamente a presi-
dente do PT, Gleisi Hoffmann.
A disposição de empresários de pregar
um golpe contra Lula mostra como o an-
tipetismo viceja na “elite”. Em uma pes-
quisa de agosto do Datafolha, Bolsonaro
ganha de Lula entre aqueles com renda
superior a dez salários mínimos (12 mil
reais): 43% a 39% no voto espontâneo e
43% a 40%, no estimulado. A rejeição ao
petista é maior no segmento, 52% a 49%.
Os cientistas políticos César Zucco, da
FGV, e David Samuels, da Universidade
de Minnesota, fizeram uma pesquisa, em
abril e maio, com 5 mil entrevistados, pa-
ra entender o antipetismo. Descobriram
que 29% dos brasileiros são antipetistas e
24%, petistas. Nas classes A e B, dá 35% e
22%, respectivamente. Para os pesquisa-
dores, as justificativas contra o PT muda-
ram com o tempo. Antes de chegar ao po-
der, o partido era baderneiro. No gover-
no, corrupto. Na era Bolsonaro, imoral.
Alegações de fachada, apontam os pes-
quisadores. “A causa real do antipetismo
é o progresso que o PT representa para os
mais pobres”, diz Samuels.
“Tenho feito reuniões com empresá-
rios, tenho feito reuniões com banquei-
ros... São indescritíveis essas reuniões.
Porque não existe a palavra pobre, não
existe nenhuma palavra que seja dita em
elação à miséria que tomou conta des-
te País”, comentou Lula no congresso da
Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência, em 28 de julho, em Brasília. “O
empresariado em São Paulo é antipetis-
ta, preferia o Alckmin”, diz um conhece-
dor da Fiesp, a federação das indústrias
paulistas. A cúpula da entidade divul-
gou um manifesto a favor da democra-
cia, mas só 14% de seus sindicatos assi-
naram. O presidente de um desses sindi-
catos comentou a portas fechadas: “Po-
de ser o Lula, o Bolsonaro não dá mais”.
Se a turma do PIB adorou o desmonte do
aparato fiscalizatório do Estado no atual
governo, diz a fonte, não gostou de ver a
demolição ser total, a ponto de dificultar
seus negócios em áreas como saúde, edu-
cação, cultura. Sem contar o pepino am-
biental no front externo.
E no tal do “mercado”? Um analista po-
lítico do setor, que prevê vitória de Lula,
diz: a turma do “chão de fábrica” das finan-
ças é abertamente bolsonarista, o escalão
do meio é medianamente governista e os
donos do dinheiro, decididamente contra
o presidente. “Há preconceito em relação
ao PT e a Lula. E também um ranço em
relação aos governos Dilma 1 e 2 e à Lava
Jato”, disse no Valor de 29 de junho Mar-
celo Kayath, do fundo QMS Capital, um
eleitor de Lula. “Infelizmente, vejo muita
gente boa de mercado e muitos empresá-
rios grandes admitindo, à boca pequena,
a possibilidade de conviver com uma di-
tadura como algo até positivo. Muita gen-
te diz que talvez seja necessário o Brasil
passar por um regime de exceção para
consertar o País. É um imenso engano.”
O juiz Moraes parece disposto, ao
menos, a impedir que o engano se torne
realidade. •
CARTA CAPITAL
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