As cassações do vereador negro Renato Freitas e do prefeito indígena Marcos Xucuru desnudam o revanchismo da casa-grande.
p or Fabíola Mendonça
Negro, periférico, advogado, mestre em Direito, vereador eleito em Curitiba em 2018 com 5.097 votos. Este é Renato Freitas, 38 anos, que carrega em sua biografia numerosos episódios de racismo e teve seu mandato cassado, no dia 5 de agosto, por ter participado, em fevereiro deste ano, de um protesto em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Largo da Ordem, região central da capital paranaense.
O ato era para denunciar a xenofobia e o racismo que motivaram o assassinato do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro, atividade que aconteceu simultaneamente em várias outras cidades brasileiras. Enquanto o protesto acontecia do lado de fora, dentro da igreja o padre Luiz Hass celebrava uma missa e, ao término da celebração, os manifestantes, inclusive Freitas, adentraram na igreja. Este foi o “crime” que tirou do vereador do PT o mandato que lhe foi consagrado pelas urnas. “Crime”, por sinal, bem mais brando que o praticado pelo deputado estadual por São Paulo, Fernando Cury, que apalpou os seios da colega Isa Penna no plenário da Assembleia Legislativa e não perdeu o mandato. Ou do deputado bolsonarista Daniel Silveira, autor de ameaças aos ministros do Supremo Tribunal Federal e incontáveis ataques à democracia, mas a Câmara faz vistas grossas.
Fazendo uma analogia com outros ca-
sos recentes, a cassação de Freitas torna-
-se algo ainda mais inusitado. Em maio
passado, a Assembleia Legislativa de São
Paulo cassou o então deputado Arthur do
Val, o Mamãe Falei, depois do vazamen-
to de áudios sexistas do parlamentar, afir-
mando que as mulheres ucranianas, refu-
giadas de guerra, “são fáceis porque são
pobres”. Em junho do ano passado, o en-
tão vereador Doutor Jairinho, do Rio de
Janeiro, perdeu o mandato por envolvi-
mento na morte do menino Henry Borel,
de 4 anos. E o que dizer do também vere-
ador carioca Gabriel Monteiro, acusado
de estupro de vulnerável? A Comissão de
Ética da Câmara pediu por unanimidade
a cassação do parlamentar, mas a decisão
depende de aprovação no plenário.
A rígida punição aplicada ao vereador
de Curitiba vai contra o posicionamento
oficial da Igreja Católica, suposta vítima
do ato que teria sido liderado por Freitas.
O padre Luiz Hass não só saiu em defesa
do parlamentar como esteve presente na
sessão de cassação e sentou na primeira fi-
la ao lado do réu. A Arquidiocese de Curi-
tiba inicialmente registrou um boletim
de ocorrência contra o protesto, mas, ao
perceber a instrumentalização política do
ato, voltou atrás. Durante a tramitação do
processo, a entidade entregou ao Conselho
de Ética da Câmara um documento colo-
cando-se contra a cassação, considerando
a punição desproporcional ao ocorrido e
ainda elogiou o ativismo de Freitas contra
o racismo e na defesa da população negra.
“A manifestação contra o racismo é legíti-
ma, fundamenta-se no Evangelho e sem-
pre encontrará o respaldo da Igreja. Perce-
be-se no vereador o anseio por justiça em
favor daqueles que historicamente sofrem
discriminação em nosso país. A causa é
nobre e merece respeito”, diz um trecho do
documento. O padre Júlio Lancellotti, re-
conhecido pela defesa dos excluídos, tam-
bém saiu em defesa de Freitas.
“Tecnicamente, não há objeto da cas-
sação, porque não houve invasão da igreja.
Canonicamente, não existiu a interrupção
do ato litúrgico nem a profanação do espa-
ço sagrado. Também não proferiram ne-
nhuma palavra contra a fé nem houve de-
predação”, diz Lancellotti, acrescentando
que a cassação é fruto do racismo estrutu-
ral. “A motivação é de ódio aos pobres e de
um racismo que não suporta um vereador
periférico questionar a hegemonia branca
que manda em Curitiba. Não há razoabi-
lidade. É uma cassação montada em cima
de fake news, ódio, racismo e aporofobia.”
O episódio teve grande repercussão no
interior da Igreja Católica e chegou até o
Vaticano. No fim de setembro, Freitas terá
um encontro com o papa Francisco, quan-
do deverá denunciar a cassação e o exter-
mínio da juventude negra no Brasil. Há
também a expectativa de o vereador ser
recebido por organismos internacionais.
“Tentaram silenciar nossas vozes, nos as-
fixiar e nos matar politicamente, porque
ousamos fazer com que as pessoas soubes-
sem que a mesma violência que ocorreu
no assassinato do Moïse também ocorre
em Curitiba”, acusa Freitas. Os advogados
do vereador, Guilherme Gonçalves, Edson
Abdala e Antônio Carlos de Almeida Cas-
tro, o Kakay, entraram com uma ação na
Justiça do Paraná, pedindo não só a devo-
lução do mandato de Freitas, mas também
a anulação da inelegibilidade de dez anos
aprovada pela Câmara. O petista é candi-
dato a deputado estadual.
Dentre os argumentos da defesa está
o de que o processo não cumpriu o tempo
estipulado pela legislação. Segundo os ad-
vogados, a jurisprudência estabelece que o
processo deveria ter ocorrido em, no má-
ximo, 90 dias corridos. No regimento da
Câmara, consta que esse prazo pode ser
contado em dias úteis, o que para os advo-
gados é inconstitucional. “A jurisprudên-
cia entende que o prazo para fim de cas-
sação de mandato dentro do Legislativo
sempre é contado como decadência, em
dias corridos”, explica Gonçalves. “Eles
querem cassar o Renato desde o início. To-
da instrução do processo deixa claro que
a cassação se deu por racismo. Foi um jo-
go de cartas marcadas”, completa Kakay.
O presidente da Câmara, vereador Tico
Kuzma, defendeu o regimento interno e
diz que a cassação por quebra de decoro é
subjetiva. “É uma decisão de interpreta-
ção de cada vereador, que, após analisar as
provas, assim como o relatório do Conse-
lho de Ética, define se o ato foi suficiente
ou não para a quebra de decoro.” O parla-
mentar nega o caráter racista do processo.
Freitas não é o único que se diz ví-
tima de racismo na política. Eleito em
2020 prefeito de Pesqueira, município do
Agreste pernambucano, o cacique Mar-
cos Xucuru jamais conseguiu assumir o
cargo e, no início de agosto, o TSE confir-
mou a inelegibilidade do indígena. Quem
assumiu interinamente o cargo foi o pre-
sidente da Câmara, Sebastião Leite da Sil-
va Neto, que deverá repassar a função ao
prefeito que será eleito em 30 de outubro.
Recai sobre Marquinhos, como é co-
nhecido, a acusação de que ele teria es-
timulado uma revolta popular em 2003,
que resultou no incêndio de uma pro-
priedade. Ele nem sequer estava presen-
te no ato. O conflito foi gerado depois de
uma emboscada contra o próprio caci-
que, que resultou na morte de dois indí-
genas. Marquinhos recebia atendimen-
to médico durante a revolta popular, mas
foi condenado por supostamente ter lide-
rado o movimento. “Naquela época, cor-
ria um boato de que o cacique também ti-
nha sido morto e é nesse clima que a co-
munidade xucuru vai incendiar a pro-
priedade”, explica Eliene Amorim, pes-
quisadora da causa indígena. O cacique
foi condenado em duas instâncias e, em
2016, a sentença foi transitada em julga-
do, cravando o nome de Marcos Xucuru
na Lei da Ficha Limpa.
“A decisão do TSE reafirma as injusti-
ças e a criminalização que os xucurus so-
freram historicamente. Com base em jul-
gamento que ocorreu há tanto tempo, os
ministros impediram que a principal li-
derança desse povo ocupasse a função de
prefeito, legitimando o preconceito e o ra-
cismo estrutural”, destaca Saulo Feitosa,
estudioso dos povos xucuru, acrescentan-
do que o conflito de 2003 se deu num con-
texto de disputa pela terra e que os agres-
sores não eram os indígenas. Marcos
Xucuru se diz injustiçado tanto pela de-
cisão do TSE quanto por ter sido conde-
nado pelo conflito de 2003. “Por conta da
luta pelo território ainda hoje estou sendo
perseguido, tendo meus direitos políticos
cassados por uma coisa que eu não cometi.
Algumas pessoas não aceitam que os indí-
genas possam ocupar espaços de poder.”
A Articulação dos Povos Indígenas
(Apib), em conjunto com a Articulação
dos Povos e Organizações Indígenas do
Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo
(Apoinme), publicou uma nota em apoio
a Marquinhos e contra a decisão do TSE.
Dentre os ministros da Corte eleitoral,
o único que votou a favor do indígena foi
Edson Fachin. O ministro observou que o
caso está inserido “no âmbito de um com-
plexo contexto de conflito étnico, no qual
está em jogo não apenas o bem econômico
nem somente o patrimônio das pessoas”.
CARTA CAPITAL
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