Luigi Mazza
Milhares de crianças brasileiras assistiam ao seriado infantil Bugados quando a programação da televisão foi abruptamente interrompida. No lugar dos atores mirins, surgiu na tela a imagem do presidente Jair Bolsonaro, que visitava as obras da construção de uma ponte sobre o Rio Araguaia, no Norte do Tocantins. À sua frente, os apoiadores gritavam: “Mito, mito!” Bolsonaro esperou que fizessem silêncio e começou o seu discurso. Falou de tudo. Lembrou da guerrilha no Araguaia (“O bem venceu, derrotamos os comunistas!”), recitou seus slogans (“Deus, pátria, família, liberdade”) e encerrou com o grito dos rodeios: “Irruuuu!!” A plateia delirou. Transmitida ao vivo em cadeia nacional em plena tarde de uma terça-feira de março, a cena durou sete minutos e quinze segundos, cortando o programa da criançada.
Aparições como essa, assim relâmpago, sem aviso prévio, estão cada vez mais comuns na TV Brasil, a primeira emissora pública brasileira com alcance nacional, criada há quinze anos. Na mesma semana de março, quem assistia à animação infantil Eu Sou um Gênio teve de ouvir vinte minutos de Bolsonaro defendendo armar a população e lançando suspeitas sobre as urnas eletrônicas. Poucos dias depois, em 31 de março, quando os militares comemoraram os 58 anos do golpe de 1964, o programa Tem Criança na Cozinha também foi interrompido para mostrar Bolsonaro discursando num evento no Palácio do Planalto. Elogiou alguns generais que presidiram o país no curso dos 21 anos de ditadura e, como de praxe, atacou os ministros do Supremo Tribunal Federal: “Nós aqui temos tudo para sermos uma grande nação. Temos tudo, o que falta? Que alguns poucos não nos atrapalhem. Se não tem ideias, cala a boca! Bota a tua toga e fica aí!”, esbravejou, sob aplausos. O discurso durou quarenta minutos e embaralhou tanto a programação da TV Brasil que o telejornal da tarde foi ao ar com 25 minutos de atraso.
Milhares de crianças brasi leiras assistiam ao seriado infantil Bugados quando a programação da televisão foi abruptamente interrom pida. No lugar dos atores mirins, surgiu na tela a imagem do presidente Jair Bol sonaro, que visitava as obras da constru ção de uma ponte sobre o Rio Araguaia, no Norte do Tocantins. À sua frente, os apoiadores gritavam: “Mito, mito!” Bolsonaro esperou que fizessem silên cio e começou o seu discurso. Falou de tu do. Lembrou da guerrilha no Araguaia (“O bem venceu, derrotamos os comu nistas!”), recitou seus slogans (“Deus, pátria, família, liberdade”) e encerrou com o grito dos rodeios: “Irruuuu!!”
A plateia delirou. Transmitida ao vivo em cadeia nacional em plena tarde de uma terça feira de março, a cena durou sete minutos e quinze segundos, cortan do o programa da criançada.
Aparições como essa, assim relâmpa go, sem aviso prévio, estão cada vez mais comuns na tv Brasil, a primeira emissora pública brasileira com alcance nacional, criada há quinze anos. Na mesma semana de março, quem assistia à animação infantil Eu Sou um Gênio teve de ouvir vinte minutos de Bolsona ro defendendo armar a população e lançando suspeitas sobre as urnas ele trônicas. Poucos dias depois, em 31 de março, quando os militares comemo raram os 58 anos do golpe de 1964, o programa Tem Criança na Cozinha também foi interrompido para mostrar Bolsonaro discursando num evento no Palácio do Planalto. Elogiou alguns ge nerais que presidiram o país no curso dos 21 anos de ditadura e, como de pra xe, atacou os ministros do Supremo Tribunal Federal: “Nós aqui temos tudo para sermos uma grande nação. Temos tudo, o que falta? Que alguns poucos não nos atrapalhem. Se não tem ideias, cala a boca! Bota a tua toga e fica aí!”, esbravejou, sob aplausos. O discurso durou quarenta minutos e embaralhou tanto a programação da tv Brasil que o telejornal da tarde foi ao ar com 25 mi nutos de atraso.
Às vezes, depois das interrupções para mostrar Bolsonaro, a programação regular nem é retomada. “Já aconteceu de termos dois convidados no estúdio, esperando para serem entrevistados, e um dos blocos do programa não ir ao ar porque o Bolsonaro apareceu fazendo um discurso. A gente ficou sem saber o que dizer para os convidados”, conta uma jornalista que trabalhou na produ ção do Sem Censura, um dos carros chefes da programação da tv Brasil, e que pediu o anonimato com receio de ser retaliada por seus chefes. Em outra ocasião, o Sem Censura preparou uma edição especial sobre os 70 anos da te levisão no Brasil, que incluía entrevistas com o ator Tony Ramos e o locutor Cid Moreira, veteranos da tevê brasileira. O depoimento do ator foi ao ar na ínte gra. Quando chegou a vez de Cid Mo reira, a transmissão foi cortada para transmitir Bolsonaro pilotando uma plantadeira em Sorriso (mt), no lança mento simbólico da safra de soja. Nesse caso, nem houve discurso. A coisa saiu no estilo Kim Jong un: Bolsonaro diri gindo uma máquina em uma fazenda por intermináveis dez minutos.
Numa sexta feira de março, a progra mação chegou a ser interrompida três vezes ao longo do dia. Pela manhã, Bol sonaro apareceu na cerimônia de lan çamento de um pacote de medidas econômicas. Fez um discurso. À tarde, na assinatura de um acordo para a regu larização de terras no Distrito Federal, fez outro discurso. À noite, voltou à tela numa solenidade de entrega de meda lhas Ordem do Mérito a autoridades pú blicas, no Ministério da Justiça. Mais um discurso. Em todos, comportou se como num palanque: criticou governa dores e prefeitos pelo lockdown na pan demia, chamou a ex presidente Dilma Rousseff de “presidanta”, os militantes do mst de “marginais”, e defendeu, mais uma vez, armar a população. “Povo ar mado acima de tudo”, arrematou.
Na campanha presidencial de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro demonizou a tv Brasil. Dizia que a emissora só existia para fazer propa ganda do pt e de Lula, e prometeu fe chá la ou vendê la, caso vencesse a eleição. Em outubro, na sua primeira entrevista como presidente eleito, dobrou a aposta. “Nós não queremos propagan da”, disse em entrevista à tv Record. “A nossa tevê oficial... É ideia nossa pri vatizar ou extinguir. Não podemos gas tar mais de 1 bilhão por ano com uma empresa que tem traço de audiência.” A audiência, de fato, nunca foi grande coisa, mas o gasto estava inflado. Naque le ano, o orçamento da Empresa Brasil de Comunicação (ebc), responsável por administrar a tv Brasil, era de 723 mi lhões de reais.
Em maio de 2019, em seu quinto mês de mandato, Bolsonaro ainda garantia que a ebc seria fechada ou vendida. “Tá decidida essa questão”, afirmou, ao apresentador do programa The Noite, Danilo Gentili, no sbt. “A ebc como um todo é um grande peso para todos nós. Mesmo sendo privatizada ou extinta vai continuar pesando, tendo em vista a quantidade enorme de funcionários concursados.” A má vontade com a emis sora não era original. Quando foi criada pelo governo Lula em 2007, a ebc já era duramente criticada pela oposição de direita. Na época, o então deputado fe deral Onyx Lorenzoni, em discurso na Câmara, questionou: “Que necessidade há de o Brasil criar uma tevê para dar pro teção, fazer ode e jogar confete e incen so no presidente da República?”
Em abril de 2019, um mês antes de dizer que “tá decidida essa questão”, Bolsonaro tomara a direção oposta: fundiu a tv Brasil com a nbr. A tv Bra sil foi criada para ser uma emissora pú blica, sem influência do governo em sua linha editorial, à semelhança do que acontece com a bbc inglesa. Já a nbr, fundada em 1998, tinha o propósi to inverso: era uma emissora do gover no, destinada a fazer publicidade das ações do Poder Executivo. Com a fusão, Bolsonaro juntou jornalismo com pro paganda – e tudo virou propaganda. Se Lula tinha “uma tevê só para ele”, como acusavam os adversários, Bolsonaro pas sou a ter duas. E Onyx Lorenzoni to mou um gosto danado por confete e incenso. Vive dando entrevista à tv Bra sil para falar bem do governo.
No plano formal, as duas emissoras continuam existindo em separado. Uma segue se chamando tv Brasil e a outra trocou o nome de nbr para tv Brasil 2. Mas, na prática, elas são indis tinguíveis. A programação da ex nbr, de divulgação das ações do governo, vive transbordando para a da tv Brasil, cuja audiência é maior. Em razão disso, en tre agosto de 2020 e julho de 2021, as aparições surpresa de Bolsonaro ocupa ram 158 horas da programação da tv Brasil, segundo levantamento da Ouvi doria Cidadã, um grupo voluntário for mado por funcionários e ex funcionários da ebc que se impuseram a missão de chamar a atenção para o desmonte da empresa. As 158 horas correspondem à exibição de uma novela inteira da Glo bo, do primeiro ao último capítulo, e mais metade de outra novela
Hoje, a tv Brasil tem canal próprio em três cidades – Rio de Janeiro, Brasí lia e São Paulo. A audiência é baixa. Seus programas mais populares che gam a 1,6 ponto no Ibope, o que, na capital paulista, corresponde a 328 mil telespectadores. Nas demais capitais, embora a emissora não tenha canal pró prio, seu conteúdo é reproduzido pelas tevês estaduais, o que acaba ampliando o alcance. Em janeiro deste ano, se gundo o Kantar Ibope Media, cerca de 18 milhões de brasileiros assistiram à emissora em algum momento. Nada que se compare à audiência de um império televisivo como a Rede Globo, mas tam bém não é desprezível para um presi dente em campanha pela reeleição.
Desde o início, o governo Bolsona ro executa um projeto metódico de destruição, como ele próprio anunciou no célebre jantar na residên cia do embaixador brasileiro em Wash ington, em março de 2019. “O Brasil não é um terreno aberto, onde nós pre tendemos construir coisas para o nosso povo”, disse Bolsonaro na ocasião, diri gindo se aos convidados, que incluíam representantes da extrema direita norte americana. “Nós temos é que descons truir muita coisa.” Bolsonaro esclareceu que ficaria satisfeito se conseguisse completar a missão de demolição geral, frisando que a tarefa de reconstrução, de colocar algo no lugar do que foi des montado, não caberia a ele.
O plano tem sido cumprido à risca para onde quer que se olhe: na Polícia Federal, na Anvisa, na Cinemateca, no Ibama, no Inep, na Fundação Palmares, na Funai, nas Forças Armadas, no mec, na Procuradoria Geral da Repú blica – a lista é interminável. Nesse contexto furioso de aniquilamento, não surpreende que o projeto para construir um sistema de comunicação pública no Brasil – pública, e não estatal – esteja sendo demolido pela via do aparelha mento político eleitoral. Para tanto, Bolsonaro tem aliados ideológicos cujo trabalho pode servir de inspiração. Um caso exemplar de uso inescrupu loso de uma emissora estatal vem da Hungria de Viktor Orbán, o extremista que Bolsonaro chamou de “irmão” quando o visitou em Budapeste, em fe vereiro passado. Durante a recente cam panha eleitoral, ao final da qual Orbán conquistou seu quarto mandato conse cutivo, a televisão estatal foi usada com apuro. Enquanto Orbán recebeu intensa cobertura – em eventos, viagens, inau gurações, discursos –, a emissora estatal m1, a de maior audiência no país, conce deu ao seu principal adversário, Péter MárkiZay, nada além de cinco minutos. Aconteceu o seguinte: MárkiZay foi ao estúdio, sentou se a uma mesa redon da e, entre ele e o apresentador, havia um grande relógio marcando o tempo. Márki Zay começou com um irônico ba lanço de sua ausência da programação da estatal durante os quatro anos anteriores:
“Muito obrigado, muito obrigado pela oportunidade de falar cinco minutos em quatro anos. Muito obrigado.” Assim que o relógio bateu cinco minutos, a transmis são terminou. Seus cinco minutos não foram transmitidos em horário nobre. Era uma quarta feira de manhã. Márki Zay não voltou mais a aparecer na tela da tevê. Dias antes, a tevê exibiu um discur so de Orbán – durou uma hora.
No governo Bolsonaro, a tv Brasil passou a cumprir um papel semelhante. No noticiário político da emissora, os candidatos de oposição nunca apare em – principalmente Lula, o líder das pesquisas. O então governador de São Paulo, João Doria, não apareceu na tela da emissora nem mesmo no domingo, 17 de janeiro de 2021, quando promo veu a aplicação da primeira dose de vacina contra a Covid no Brasil, o que representou uma vitória substancial so bre Bolsonaro. Só no dia seguinte a tv Brasil noticiou o assunto, mas o fez com peculiaridade húngara: como recebera as imagens geradas pelo governo de São Paulo, a emissora escalou seus editores de vídeo para selecionar apenas cenas em que Doria não aparecia.
Mas o uso político eleitoral da tv Brasil só entrou no radar do Tribunal Superior Eleitoral (tse) em julho do ano passado, quando a tevê transmitiu uma live de duas horas em que Bolsonaro, sem apresentar uma única evidência, denunciava que as urnas eletrônicas já tinham sido fraudadas e insinuava que voltariam a sê lo. O tse abriu um inqué rito para investigar se Bolsonaro havia cometido crime ao fazer essas denún cias sem cabimento e, dentro desse in quérito, convocou os diretores da ebc para depor. Mas tudo acabou com uma mudança cosmética: daquele momento em diante, temendo uma reação mais dura do tse, a emissora deixou de trans mitir eventos presidenciais na íntegra. Passou a interromper sua programação apenas quando Bolsonaro vai discursar. A existência da ebc sempre foi uma aberração para as convicções liberais do ministro da Economia, Paulo Guedes.
Mas a conveniência do presidente em usá la politicamente, associada às dificuldades técnicas de privatizá la – seus canais de tevê e rádio não podem ser vendidos e te riam de passar por um novo processo de outorga federal, e seu parque tecnológico está obsoleto –, acabou colocando os pla nos de venda em banho maria. Em maio de 2020, Bolsonaro autorizou o estudo de parcerias entre a ebc e a iniciativa privada. Um ano depois, a empresa entrou no Pro grama N
acional de Desestatização, mas o estudo de viabilidade a cargo do bndes não ficou pronto até hoje. Ninguém acredita que o plano de pri vatização avance em pleno ano de elei ções. Nos bastidores do Ministério das Comunicações, não se fala mais em ven der, mas em “otimizar” a ebc – ou seja, fica tudo mais ou menos como está, tal vez com redução de gastos (orçamento anual de 641 milhões de reais) e de pessoal (1,7 mil funcionários). “O governo perce beu que é importante ter um sistema de comunicação”, diz uma assessora do mi nistério, que pede para se manter no ano nimato, pois não tem autorização para falar em nome do governo. Na verdade, Bolsonaro se deu conta da relevância da emissora logo no primeiro dia de governo.
Em 1º de janeiro de 2019, a ebc pôs na rua uma operação sem prece dentes para cobrir a posse de Bolso naro. Tradicionalmente, cabe à empresa coordenar o pool de emissoras públicas e privadas que transmitem a cerimônia. Naquele ano, porém, a ebc montou uma estrutura inédita. O então presidente da empresa, Luiz Antonio Ferreira – rema nescente do governo de Michel Temer –, pôs a serviço da tv Brasil dezenas de câmeras e três unidades móveis, como são chamados os caminhões que carregam a estrutura da tevê para áreas externas. Uma antena de internet foi contratada especialmente para a ocasião, a fim de garantir o acesso dos jornalistas à rede ao longo do dia. Além da tv Brasil, outros veículos da ebc, como a Rádio Nacional e a Agência Brasil, mobilizaram todas as suas equipes para cobrir ao vivo a ceri mônia por horas a fio. “
Foi uma operação incomum, que não tínhamos feito até então”, relembra um funcionário da emissora, que acom panhou o evento e pediu para não ter seu nome citado. “Claramente a ideia era ten tar agradar o Bolsonaro para ele não fechar a ebc.” A estratégia deu certo. Encerrados os trabalhos, os jornalistas souberam por meio de seus chefes que a cobertura havia sido muito elogiada no Palácio do Planal to, sobretudo pelos militares. “A equipe nos bastidores ficou enlouquecida quan do soube que a repercussão tinha sido boa”, conta Kariane Costa, repórter da Rádio Nacional e representante dos fun cionários no Conselho de Administração da ebc. Ela participou da cobertura em Brasília. “Acho que aquele dia foi um ponto de virada.”
O primeiro Sete de Setembro do go verno Bolsonaro também foi marcante. Na ocasião, a tv Brasil produziu um clipe afinado com a estética bolsonaris ta: imagens de ministros – militares e civis – cantando o Hino Nacional de forma solene alternavam se com filma gens da bandeira do Brasil tremulando no Planalto e cidadãos comuns vestindo a camiseta da Seleção. Na cobertura do desfile militar, em Brasília, os repórteres entrevistaram oficiais de várias patentes do Exército, da Marinha e da Aeronáuti ca. O vice presidente Hamilton Mourão falou sobre sua admiração pelos praci nhas brasileiros que lutaram na Segunda Guerra Mundial. Bolsonaro, minutos antes de sair para o desfile, deu entre vista à emissora.
A hashtag #tvbrasilno7 foi reproduzi da milhares de vezes no Twitter. Ao lon go do dia, a emissora atingiu o quarto lugar no ranking de audiência no Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo. “O pessoal da transmissão estava dando pirueta de cos tas, inclusive gente que era de esquerda. Nós ficamos sabendo que o Bolsonaro amou a cobertura”, diz um ex funcioná rio que trabalhou na parte técnica da transmissão. O novo presidente da ebc, Luiz Carlos Pereira Gomes – ele próprio um general da reserva do Exército, que acabara de ser nomeado por Bolsonaro – não conteve a alegria. Num comunica do aos funcionários, dias mais tarde, ce lebrou a cobertura do Sete de Setembro: “Foi um sucesso! Este é o padrão ebc, padrão de excelência.”
Um jornalista da Rádio Nacional, baseado no Rio de Janeiro, que também teme retaliações se tiver sua identidade revelada, compara a situação dos fun cionários da ebc à dos escravos gregos. “Quando os romanos dominaram a Grécia, descobriram que os gregos sa biam mais do que eles, sabiam mais matemática, mais geometria, tudo. E aí cada romano passou a ter um escravo grego para fazer as coisas por ele”, diz o jornalista, para concluir: “A ebc, para os bolsonaristas, virou isso: nós fazemos o que eles sozinhos não sabem fazer. Eles perceberam que nós podemos ser úteis.”
Em outubro de 2007, no primeiro ano do seu segundo mandato, Lula assinou o decreto de criação da ebc, respondendo a uma antiga demanda de movimentos sociais e estudiosos que defendiam a criação de um sistema pú blico de comunicação no país, capaz de veicular conteúdos relevantes que não atraem o interesse da mídia tradicional por falta de apelo comercial – como acontece com a programação infantil, desde que a publicidade voltada para crianças foi proibida no Brasil. (A tv Brasil é hoje a única opção de entrete nimento na tevê aberta para crianças, razão pela qual essa faixa de horário é uma das que rendem a maior audiência da emissora.) Financiada com dinheiro público, a ebc passou a englobar tudo o que havia de público e estatal na áre
a – a Rádio mec, a tve do Rio de Janeiro, a tve do Maranhão e a Radiobrás, criada na di tadura militar, que aglutinava a Rádio Nacional, a Agência Brasil e a tv Na cional. A ebc nasceu para ser a versão brasileira de emissoras públicas que, há décadas, existiam na Europa, como a portuguesa rtp e a italiana rai, mas so bretudo a mais bem sucedida de todas, a inglesa bbc. Dois meses depois da as sinatura do decreto, ao meio dia de um domingo, 2 de dezembro, a tv Brasil entrou no ar. Um pequeno clipe com locução da atriz Zezé Motta anunciava a inauguração do canal, que àquela al tura só podia ser assistido em quatro cidades: Rio de Janeiro, São Paulo, Bra sília e São Luís. “Nasce hoje uma nova televisão, para que os brasileiros te nham mais possibilidade de escolha”, disse Zezé Motta, enquanto o vídeo exibia uma imagem do Congresso Na cional à luz do amanhecer. “Isso é plu ralidade. Isso é democracia.”
Criada com o objetivo de ser uma emissora de alcance nacional, a tv Brasil era, sem dúvida, o veículo mais relevan te do sistema ebc. De um lado, profis sionais e acadêmicos da comunicação viam na nova emissora a possibilidade de contrapor se à hegemonia dos grandes grupos privados de comunicação, com a Rede Globo à frente. De outro, produ tores culturais e artistas sonhavam que, com o novo canal, conseguiriam am pliar a janela de exibição de filmes e shows nacionais.
Para blindar a ebc de interferências do governo, criaram se algumas regras já na largada. Uma delas definia que o presidente da empresa, embora fosse nomeado pelo presidente da República, teria um mandato de quatro anos, de sencontrado com anos eleitorais. A pri meira presidente, a experiente jornalista Tereza Cruvinel, que fizera uma carrei ra bem sucedida no jornal O Globo, fi cou no posto de 2007 a 2011. Caso tivesse derrotado a petista Dilma Rous seff na eleição de 2010, o tucano José Serra não poderia trocar Cruvinel por um nome de sua confiança no seu pri meiro ano de mandato. Era uma forma de garantir alguma estabilidade e des vincular a empresa das trocas no poder.
Criou se também o Conselho Cura dor, para permitir a participação popular na ebc. O grupo era formado por 22 con selheiros, dos quais 4 eram ministros indicados pelo governo. Havia também 1 representante da Câmara, 1 do Senado e 1 dos funcionários da empresa. A maio ria, os demais 15 conselheiros, eram re presentantes da sociedade civil. (Na primeira formação do conselho, todos os quinze lugares foram ocupados por pes soas escolhidas pelo governo. Quando o mandato desses primeiros conselheiros terminou, o preenchimento passou a ser feito por consulta pública.) Reunindo se a cada dois meses, o conselho tinha como missão avaliar a qualidade da pro gramação da ebc – em termos de diver sidade, de linha editorial – e poderia, em casos extremos, decidir pelo afastamento de diretores da empresa. Esses mecanismos protegeram a ebc de intervenções acintosas, mas não cor taram o cordão umbilical que a ligava ao governo. Em parte, por razões finan ceiras. O tributo que ajudaria a susten tar a ebc seria cobrado das empresas de telecomunicações, como Vivo, Tim e Oi, adotando um modelo de financia mento vagamente similar ao aplicado à bbc, mas as teles contestaram o novo imposto na Justiça. Ao longo dos anos de pendenga jurídica, o grosso do di nheiro, que chegou a passar de 2 bi lhões de reais, ficou retido. Quando os recursos foram finalmente liberados em 2018, em vez de caírem no caixa da ebc , acabaram engolidos pelo Tesouro Nacional. Por isso, a autonomia finan ceira sonhada na criação da ebc desde 2007 nunca se concretizou.
O jornalismo também jamais se li vrou dos cacoetes governistas. “Havia na redação uma cultura muito arraigada de quem veio da Radiobrás. O governo não mandava bilhetinho, não telefona va, mas havia certo pudor jornalístico, certo receio dos funcionários”, diz Muri lo Ramos, professor emérito da Univer sidade de Brasília (unb) e especialista em políticas de regulação de mídia. Ramos fez parte do Conselho Curador entre 2010 e 2015, como representante da socie dade civil. Ele sempre achou prejudi cial que a ebc dividisse o mesmo espaço físico que a nbr. As duas redações não se misturavam, como acontece hoje, mas o convívio próximo tirava a nitidez da fronteira que devia separar a comuni cação pública e a comunicação governa mental. “Quando eu chegava às reuniões do conselho e via o logo da nbr na pa rede, eu dizia: ‘Vou ficar feliz no dia que esse pessoal sair daqui’”, conta Ra mos. “Eles não pertencem à ebc.”
O professor considera, no entanto, que as críticas à empresa sempre foram maiores que seus problemas reais. “Isso que os jornalões e forças ditas liberais sempre criticaram aqui no Brasil é um conceito aceito no mundo todo. Nenhu ma empresa pública nos países centrais do capitalismo é totalmente indepen dente, e nem por isso deixa de produzir conteúdo de qualidade, com autono mia. É preciso desmistificar essa ideia”, diz Ramos. “A ebc ainda estava apren dendo a fazer jornalismo público. Eu dizia que seria preciso esperar uma ge ração inteira para sabermos se o projeto deu certo.”
Mas o grande teste chegou em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff.
Na agitada noite do dia 2 de dezem bro de 2015, quando o então presi dente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, anunciou a abertura de um processo de impeachment contra Dilma Rousseff, a autonomia da ebc começou a estremecer. Daquele dia em diante, a fronteira entre o interesse públi co e o interesse do governo passou a ficar cada vez mais tensionada. O Conselho Curador da empresa se dividiu nas dis cussões internas: uma parte dos conse lheiros defendia que os veículos da ebc deveriam tomar posição em favor da demo cracia – isto é, contra o impeachment –, e outra parte argumentava que o dever da empresa era permanecer neutra.
Na avaliação de vários jornalistas da empresa, preponderou o primeiro gru po. Márcio Garoni, repórter da tv Bra sil em São Paulo e diretor da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), lem bra que a emissora cobriu atos contra e a favor do governo – mas, em dado pon to da crise, “rolaram coisas estranhas”. “Houve um evento em defesa da Dilma num salão fechado da usp, no Largo São Francisco, e a tv Brasil foi lá cobrir ao vivo. Não era o tipo de coisa que a gen te costumava fazer”, diz ele. Em abril de 2016, a tevê transmitiu por horas um ato contra o impeachment realizado na Lapa, no Rio, no qual Lula discursou.
A Ouvidoria da ebc, que fazia papel de ombudsman e publicava uma coluna periodicamente no site da empresa, apontou o desequilíbrio da cobertura, destacando que os âncoras da tevê se referiam aos protestos como “atos em defesa da democracia e contra o golpe”. Garoni, que trabalha na empresa des de 2012, considera que decisões como essa acabaram fragilizando a ebc. “Foi algo que nós criticamos internamente, porque tanto a empresa quanto nós, funcionários, acabamos ficando expos tos.” Em maio de 2016, quando assu miu a Presidência depois da queda de Dilma, ainda como interino, Michel Temer vingou se da ebc. Com apenas quatro dias no cargo, demitiu sumaria mente o então presidente da empresa, o jornalista Ricardo Melo, que, por sua vez, estava na função havia duas sema nas, depois que Américo Martins abrira mão do emprego por motivos pessoais.
A ebc, então, entrou em convulsão. A decisão de Temer contrariava a lei, que garante mandato de quatro anos ao pre sidente da empresa. Melo recorreu ao Supremo Tribunal Federal (stf) e reto mou o mandato depois de duas sema nas. O presidente indicado por Temer, o jornalista Laerte Rimoli, teve de sair de cena. Em setembro, nova reviravolta: o governo publicou uma medida provisó ria acabando com o mandato de quatro anos do presidente da empresa e extin guindo o Conselho Curador. Melo foi demitido novamente e Rimoli reassu miu o cargo. À tarde, no mesmo dia, ao perceber que o stf ainda não havia se manifestado sobre o assunto, o governo voltou atrás: Melo reassumiu o cargo, Rimoli ficou de fora. Seis dias depois, o ministro Dias Toffoli, do stf, resolveu que o governo estava certo: Rimoli re reassumiu. (Na confusão, o manual de redação da ebc entrou em parafuso: ora se referia a Dilma como “presidenta”, como sempre fizera, ora como “presi dente”, por ordem de Rimoli.)
nova gestão, uma vez empossada, abriu um programa de demissão voluntá ria – que reduziu o total de funcionários de 1,9 mil para 1,7 mil – e promoveu um choque de austeridade. Numa tacada, Rimoli rescindiu o contrato de vários apresentadores e comentaristas, entre os quais figuras abertamente simpáticas ao pt, como o sociólogo Emir Sader. Outros viraram alvo não apenas por suas posi ções ideológicas, mas também pelos seus contracheques. A empresa do jornalista Luis Nassif, por exemplo, recebia, em valores atualizados, cerca de 20 mil reais para produzir cada episódio do Brasilia nas.org, programa de entrevistas e análi se política. O Observatório da Imprensa, de Alberto Dines, custava 98 mil por episódio, em valores atualizados. Nos dois casos, parte do dinheiro era usada para remunerar a equipe do programa e bancar custos de produção, como ilumi nação e cenário. Ainda assim, como ad mite Ricardo Melo, eram valores acima do razoável, considerando que estúdio e equipamentos eram fornecidos pela ebc. “Havia alguns absurdos, sim, ainda mais levando em conta que nosso orçamento era pequeno. Faltava dinheiro para tudo. Mas, quando assumi a presidência, essas coisas já estavam assinadas, não tinha o que fazer”, ele justifica.
A principal herança deixada pela gestão Temer, no entanto, foi o fim do mandato de presidente da ebc e a extin ção do Conselho Curador. Por mais que a empresa nunca tenha sido real mente autônoma – o conselho, em es pecial, sempre teve maioria de figuras ligadas à esquerda –, a anulação desses mecanismos tornou a ebc ainda mais vulnerável a intervenções políticas.
Desde então, se a cobertura jornalística desagrada ao presidente da República, ele pode trocar o comando da empresa sem pestanejar. E se o presidente da ebc resolver alinhar o jornalismo aos inte resses do governo, não há mais nenhu ma instância interna que possa ameaçar a sua permanência no cargo.
Com isso, ainda no governo Temer, o governismo começou a se propagar. No dia 18 de maio de 2017, por exem plo, quem se informou pelos veículos da ebc não ficou sabendo que o gover no estava desmoronando depois da di vulgação da conversa entre Temer e o empresário Joesley Batista, dono da jbs, na qual o presidente, aparentemente, avalizava o pagamento de propina ao deputado Eduardo Cunha. “Tem que manter isso aí”, disse Temer. A notícia, divulgada pelo jornal O Globo às 19h30, só foi aparecer no site da Agên cia Brasil às 21h50 – e com um título que neutralizava o ataque e vitaminava a defesa: “Temer diz que jamais solici tou pagamento para obter silêncio de Cunha.” Na tv Brasil, o telejornal da noite sequer tocou no assunto.
No Carnaval do ano seguinte, as câ meras da tv Brasil fizeram acrobacias para desviar dos cartazes e gritos de “Fora, Temer”. Pequenas notícias passa ram a causar dor de cabeça. O repórter Márcio Garoni conta que sofreu uma reprimenda ao cobrir a morte de Mari sa Letícia, mulher de Lula, em 2017. “O velório foi num sábado, e a matéria não tinha nada de política. Mas me dis seram que o pessoal em Brasília se in comodou, achou que o Lula estava sendo exaltado, e aí decidiram que eu não faria mais cobertura de política.” As intervenções, ainda assim, eram apenas episódicas. “Bem ou mal, a gente ainda fazia jornalismo naquela época”, resume Kariane Costa, da Rádio Nacio nal. “Hoje parece que a gente vive em outro mundo.” O jornalismo tornou se a grande vítima, sobretudo depois que a tv Brasil e a nbr viraram uma coisa só. “Pauta sobre indígenas? Não passa. Sobre a comunidade lgbtqia+? Não passa”, diz Ana Graziela de Oliveira, repórter da tv Brasil em Brasília desde 2008. Embora reconheça que a emissora nunca alcan çou total liberdade editorial, Oliveira relata que a limitação imposta aos repór teres desde 2019 não tem precedentes. “Acho que, nos governos anteriores, a gente chegou a alcançar 80% da autono mia que sempre sonhamos ter na ebc. Hoje estamos com 10%.”
Em situações pontuais, a interferência é aberta. “Se alguém grava matéria falan do em ditadura, a chefia manda regravar trocando por ‘regime militar’”, conta Oli veira. Mas, na maioria dos casos, as im posições se dão de maneira sutil. Quase todos os jornalistas ouvidos pela piauí para esta reportagem contaram que nun ca receberam censura expressa, infor mando sobre o que poderia ou não ser falado na ebc. Os espaços para discussão, porém, foram extintos. Não há mais reu niões de pauta nem na tevê nem no rá dio. As conversas são individuais, as pautas chegam prontas. São as “recs”, ou seja, “matérias recomendadas”. A reco mendação, é claro, tem força de ordem. Até o ano passado, Ana de Oliveira trabalhava no programa Caminhos da Reportagem, um especial jornalístico que vai ao ar uma vez por semana. Cada vez trata de um assunto específico e acu mula prêmios de jornalismo. O formato é parecido com o do Profissão Repórter, da Globo. Acostumada a cobrir grandes temas, como aborto, imigração e violên cia urbana, Oliveira recebeu a ordem de gravar um programa sobre os parques do Sul do Brasil em 2019. O motivo? O Mi nistério do Meio Ambiente ia leiloar os parques e, segundo seus chefes, a divul gação ajudaria no plano de concessão. Os exemplos são vários. O jornalista Lucas Krauss, que trabalha com edição de textos na tv Brasil, conta que, duran te a crise hídrica do ano passado, quando havia a possibilidade de um apagão ener gético no país, a tevê não deixava passar críticas à atuação do governo federal. “Uma vez ouvimos o representante de uma associação de energia que disse que o governo demorou a agir. E ele deu soluções possíveis para a crise. Escrevi uma nota, que estava pronta para ser lida no ar durante o telejornal. Mas ela foi limada pela chefia, sem nenhuma expli cação”, diz Krauss. Ele trabalhava há quase dez anos na empresa e nunca ti nha sofrido intervenções como essa até então. “A situação em que a ebc está hoje não tem precedentes”, afirma.
No jornalismo diário, para evitar assun tos que incomodam o governo, opta se por noticiar trivialidades. “Já fiz matéria sobre o Dia do Cuscuz, sobre fertilizantes feitos com base em casca de ovo... Vai ser meu Pulitzer”, conta Kariane Costa, en tre o riso e a indignação, referindo se ao principal prêmio do jornalismo norte americano. Em janeiro, quando Bolsona ro faltou ao depoimento que deveria dar à Polícia Federal no inquérito sobre vaza mento de dados sigilosos sobre as urnas eletrônicas, Costa estava ocupada reper cutindo uma operação policial que prendeu cinco pessoas no Piauí por fraudes no inss. “Se você reclama, se contesta, você vira inconveniente. Não é todo dia que você está a fim de brigar, então acabamos aceitando. A gente tem que fazer um esforço enorme para não pilhar e enlouquecer”, diz ela. A tentativa de desviar de assuntos re levantes – e incômodos ao governo – chegou ao auge em junho de 2021, período em que a pandemia começava a sair de seu período mais mortífero.
A direção da ebc teve a ideia de bolar um programa só de boas notícias, o Bom de Ver. Criaram um grupo de Whats App para discutir pautas, no qual surgi ram ideias como uma reportagem sobre os benefícios de se adotar animais para a saúde mental dos donos e outra sobre a história de um menino que pediu para incluir o nome do padrasto na certidão de nascimento. Chegaram a gravar um piloto do programa, apesar da contesta ção dos repórteres, que protestavam con tra a iniciativa de esconder fatos graves sob um noticiário falsamente ameno – até que o projeto vazou para a imprensa e, diante da péssima repercussão, aca bou indo para a gaveta.
No governo Bolsonaro, quem pri meiro se apossou da ebc foram os militares. A turma era comandada pelo general Carlos Alberto dos Santos Cruz, então ministro chefe da Secreta ria de Governo da Presidência. Na épo ca, a pasta abarcava a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), que, por sua vez, era responsável pela ebc (hoje ela faz parte do Ministério das Co municações). Pelas mãos de Santos Cruz, militares da reserva, alguns dos quais já trabalhavam na burocracia da empresa havia anos, foram alçados a cargos de chefia. Em abril de 2019, dos seis direto res da empresa, dois eram do Exército. Pelo trabalho, recebiam entre 25 mil e 27 mil reais por mês. As Forças Armadas sempre nutriram certa simpatia pela comunicação pública. Em parte, porque são órfãs da Radiobrás, que durante a ditadura propagandeava as realizações do regime militar. Mas prin cipalmente porque consideram a comu nicação um ponto chave na integração do território nacional e na garantia da soberania. A Rádio Nacional da Amazô nia, criada em 1977 e administrada hoje pela ebc, é o xodó dos militares. Cobre mais da metade do país e leva informação para populações indígenas e ribeirinhas. A ela se soma, desde 2006, a Rádio Nacio nal do Alto Solimões, instalada em Taba tinga (am), na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Até então, ne nhuma rádio em língua portuguesa al cançava os moradores dessa região. Santos Cruz, ao contrário de muitos colegas de farda, não é um fã da ebc. “Por mim, isso nem existia”, disse ele, numa conversa em seu apartamento em Brasília, no começo de abril. Tiran do as rádios amazônicas, o general não vê valor na comunicação pública. Mas, desde o início do governo, Santos Cruz sabia que não poderia fechar a empresa. “O Bolsonaro falou que ia acabar com a ebc, com a ‘tv do Lula’, mas não sabia como fazer. É só demagogia. Como fi cam os equipamentos da ebc, que va lem uns 60, 80 milhões de reais? E os quase 2 mil funcionários?”
Em suas primeiras semanas no cargo de ministro, Santos Cruz visitou – em alguns casos, aparecendo de surpresa – as quatro sedes da ebc, em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e São Luís (esta última foi fechada em maio de 2019). Nessas ocasiões, reuniu os funcionários para conversar e tranquilizá los, já que muitos achavam que poderiam estar no olho da rua em questão de meses. O ge neral aproveitou os encontros para, se gundo ele, deixar claro como achava que deveria ser o trabalho da ebc: “Não tem que ser ideológico, não tem que fa zer propaganda de governo, não tem que fazer propaganda de presidente ou de ministro, e não tem que competir com a tevê aberta”, repete ele. Ao ser indagado se achava que a ebc era um antro de esquerdistas, Santos Cruz é la cônico: “Você percebe, pela conversa com alguns interlocutores... alguns ti nham ideologia. Mas não sei dizer, nun ca assisti à tv Brasil.” Nem quando esteve no cargo? “Pouca coisa. Gosto daqueles documentários sobre animais.”
ua gestão, porém, produziu docu mentários sobre outro tipo de fauna. Em abril de 2019, foi ao ar o programa Faróis do Brasil, que entrevista membros da Marinha e historiadores para contar a história de faróis instalados na costa bra sileira. Em setembro, estreou o Fortes do Brasil – mesma ideia, mesmo formato, dessa vez aplicada ao Exército. Os dois programas são veiculados até hoje na tv Brasil, com novas temporadas. Outra atração carregada com tinta verde oliva, Brasil em Obras, chegou a ser produzi da, mas não saiu do papel. A Aeronáuti ca foi a única das três Forças a não ter um programa. Talvez para compensar, a tevê resgatou um antigo seriado da tv Tupi chamado Águias de Fogo, que con ta as “histórias de bravura nos ares” de “um heroico esquadrão de aviação”, con forme divulgou a emissora.
Integrada à administração federal mais povoada por militares desde o fim da ditadura, a tv Brasil, que não deveria ter ideologia nem fazer propaganda, pas sou a ter a cara ideológica do governo. O programa Estação Plural, que tratava do universo lgbtqia + e era apresentado por uma mulher trans, um gay e uma lésbica, foi a primeira vítima – ainda antes de o governo Bolsonaro tomar posse. Foi ao ar pela última vez em de zembro de 2018. Trilha de Letras, quadro de entrevistas sobre literatura, em que escritores eram convidados a falar de seus livros, resistiu um pouco mais: foi can celado em agosto de 2019 e nunca mais voltou à programação. Era só o começo.
Quando Santos Cruz deixou o gover no, em junho de 2019, a Secretaria de Governo passou a ser dirigida por um admirador da ebc, o também general Luiz Eduardo Ramos. Pai de uma fun cionária da tv Brasil, Ramos já se referiu à empresa como “uma joia rara, que to dos nós amamos”. Para comandar a ebc, escalou outro general, Luiz Carlos Perei ra Gomes, aquele que festejou o “padrão de excelência” na cobertura do primeiro Sete de Setembro do governo Bolsonaro. Trocaram se os militares, mas pouca coi sa mudou no chão de fábrica. Até que chegou a pandemia.
Na tarde do dia 4 de junho de 2020, uma quinta feira, o repórter Gé sio Passos, da Rádio Nacional, se preparava para cobrir mais uma coleti va de imprensa do Ministério da Saúde, como vinha fazendo desde o começo da pandemia. Ele estava em casa, em trabalho remoto. O cenário epidemio lógico do país era grave: no dia anterior, haviam sido registradas 1 348 mortes pela Covid, um recorde até então. Ao todo, 32 mil pessoas já haviam morrido da doença no Brasil.
No dia anterior, o general Eduardo Pazuello, depois de quase vinte dias de interinidade, finalmente tomara posse como ministro da Saúde. Além dele, vários miliares ocupavam cargos impor tantes na pasta. Até o empresário Carlos Wizard, um notório negacionista, esta va sendo cotado para assumir uma se cretaria no Ministério da Saúde. Diante disso, Gésio Passos achou lógico man dar a seguinte pergunta, por escrito: “Quais critérios estão sendo usados para a ocupação dos cargos comissiona dos no Ministério da Saúde? Militares e empresários sem nenhuma experiên cia em saúde pública terão condições de combater a maior pandemia dos úl timos cem anos?”
A pergunta foi enviada para o grupo de WhatsApp que o Ministério da Saúde criara para receber as questões de jorna listas. Quando a coletiva começava, al guém lia as perguntas enviadas pelos repórteres e as autoridades da Saúde res pondiam. Mas a mensagem de Passos não foi lida na coletiva e acabou fican do sem resposta. Não foi um esquecimen to. Na cúpula da ebc, a pergunta caíra como uma bomba. Em um grupo de WhastApp que reunia apenas chefes do radiojornalis mo, Graziele Bezerra, coordenadora de reportagem, reproduziu a pergunta e escreveu, alarmada: “Isso chegou no Palácio.” Ela convocou uma reunião urgente com os colegas. Na mensa gem, usou um emoji de uma mulher com a mão sobre o rosto, sugerindo que a pergunta era uma inconveniên cia intolerável. A piauí teve acesso à troca de mensagens.
“Estão querendo a cabeça da Sirley [sic]”, completou Bezerra. Ela se refe ria a Sirlei Batista, diretora de jornalis mo da ebc. “pqp ”, respondeu uma participante do grupo.
“Sobrou pra gente”, replicou outra. “Só sei que os milicos tão putos”, concluiu Bezerra, depois de ter avisado que Gésio Passos “não deve mais fazer as coletivas do ministério”.]
Dito e feito. Repórter com dez anos de casa, Passos foi afastado da cobertura da pandemia dias depois. A direção da empresa transferiu o para a Radioagên cia Nacional, veículo da ebc que serve basicamente para editar e disponibili zar programas e reportagens para rádios que queiram utilizá los. “Passei a não cobrir mais nada de governo”, contou Passos, numa conversa com a piauí no final do ano passado. “Agora estou sen do escalado para fazer matéria sobre amigo oculto, sobre os perigos do pisca pisca de Natal...” O repórter Victor Ribeiro, da Rádio Nacional, também foi perseguido du rante a pandemia. No dia 11 de maio de 2021, ele cobriu ao vivo a cpi da Pande mia, que, naquele momento, ouvia o depoimento do presidente da Anvisa, contra almirante Antonio Barra Tor res.
No final do dia, Ribeiro redigiu a notícia que gravaria e, como toda a im prensa, destacou o que havia de mais relevante no depoimento: Barra Torres dissera que se arrependia de ter parti cipado de um ato público com aglome ração ao lado de Bolsonaro em plena pandemia. Também disse que, como titular da Anvisa, havia contraindicado o uso de remédios não comprovados contra a Covid.
Antes de gravar a notícia, Ribeiro passou o texto para a aprovação de sua chefe direta, como sempre fez. Quando recebeu o documento de volta, a notí cia principal havia sido apagada. Não havia mais uma palavra sobre Bolsona ro ou sobre o tal “tratamento precoce” que a Anvisa barrara. Ribeiro se recu sou a gravar. Dias depois, foi chamado pela chefe para uma conversa na sede da ebc emasília. Ao chegar, foi sur preendido: teria que assinar um Termo de Ajustamento de Conduta, conheci do como tac – uma espécie de adver tência em que o funcionário público reconhece que cometeu uma infração leve. Como não concordava que tivesse feito algo errado, Ribeiro se recusou a assinar o papel. A empresa então che gou a abrir uma comissão interna para “investigar os fatos” e, se necessário, puni lo. Ribeiro não arredou pé: acio nou uma advogada e acompanhou o caso de perto. No fim das contas, a ebc achou mais prudente encerrar o proces so. Não houve punição a Ribeiro, que permanece até hoje no cargo. A
cobertura da pandemia, durante a qual Bolsonaro boicotou a vacina e as medidas de prevenção enquanto defen dia remédios ineficazes, marcou a vi rada da ebc e de seu principal veículo, a tv Brasil. Nesse período, a omissão e a censura agravaram se a tal ponto que o tom do noticiário, muitas vezes, era in versamente proporcional à gravidade dos fatos. Os governistas tornaram se presença constante nos veículos da em presa. Pazuello aparecia com insistên cia, tentando vender a ideia de que a vacina era resultado dos esforços do governo federal, e não do então gover nador João Doria.
Quando se aplicou a primeira dose da vacina infantil contra a Covid, repetiu se o teatro do início da vacinação dos adultos: Doria, que também foi o pri meiro a trazer ao país a versão do imuni zante para crianças, sumiu do noticiário oficial. “O Doria, no começo da pan demia, fazia coletivas todo dia. Embora fosse em clima de campanha, eventual mente trazia informações relevantes. Mas recebemos uma orientação clara para não mostrá lo”, diz Márcio Garoni, repórter da tv Brasil em São Paulo. Pior. “Desde que começou a pande mia, a gente não pôde entrevistar víti mas ou parentes de vítimas da Covid. Só falamos do assunto por alto. Depois de muito tempo, conseguimos entrevis tar pessoas que sofriam com sequelas, mas ficou nisso”, conta Garoni. A emis sora, em linha com o negacionismo de Bolsonaro, não podia sequer noticiar o fato mais elementar: que a vacina era a única forma conhecida e a mais eficaz de se combater o vírus. Garoni conta que ouviu a seguinte ponderação de uma chefe: “Tem gente que acredita em tratamento precoce, não vamos in comodar esse pessoal.” “
Esse pessoal” frequentou os estúdios da ebc. Em julho de 2020, a oncologis ta Nise Yamaguchi, na época cotada para assumir o Ministério da Saúde, deu uma longa entrevista à tv Brasil, na qual o empresário Carlos Wizard teve uma breve participação. A conversa amigável durou mais de uma hora e foi transmiti da ao vivo nas redes sociais da tevê. “Essa história de que não tem cura para esse novo coronavírus não é verdade – tem”, anunciou a oncologista, sorriden te. A apresentadora teve de dar saltos triplos carpados para explicar aos teles pectadores o motivo daquele encontro. “A dra. Nise faz parte de um grupo de médicos que se reúne para discutir o tratamento para o coronavírus. E o Car los Wizard foi quem juntou esse grupo”, resumiu, no começo da entrevista. A con versa depois foi condensada num pro grama de meia hora veiculado na tv Brasil. O grupo de médicos, descobriu se mais tarde, era o gabinete paralelo que sequestrou o Ministério da Saúde durante a pandemia. (Meses depois, o YouTube deletou a entrevista de sua plataforma por disseminar fake news. O vídeo, porém, só foi deletado da conta da tv Brasil. Ele ainda pode ser assisti do no canal de YouTube da tv Brasil Gov – da antiga nbr –, assim como no perfil da tv Brasil no Facebook.)
“Intervenções como essas que a gen te viu e ainda vê seriam um escândalo em outros países. Se o primeiro ministro britânico interfere na bbc vira manche te nos jornais, é uma coisa inadmissí vel”, afirma Juliana Nunes, funcionária licenciada da ebc. Ela tem acompanha do as denúncias de censura por meio do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Fe deral, onde atua como coordenadora. “Como temos no Brasil uma mídia pri vada concentrada em poucas famílias, como não temos uma comunicação pública bem desenvolvida, essa discus são fica muito restrita. Não tem a reper cussão que deveria.”
Na redação da empresa, há um cli ma de perseguição. Alguns funcioná rios acreditam que suas redes sociais são monitoradas. “Eu fechei minhas publicações no Facebook e deletei to das as pessoas que pudessem ter relação com a chefia”, conta uma repórter da tv Brasil que pediu para ter seu nome preservado. Os mais prevenidos não acessam o WhatsApp no computador do trabalho porque temem que estejam sendo vigiados. Há quem não conecte o celular no wi fi da empresa.
Ao longo da apuração desta reporta gem, a piauí tentou contato com a dire ção da ebc várias vezes, mas não obteve resposta. Depois de insistentes e mails com pedidos de entrevista serem igno rados, uma assessora informou, por tele fone, que a empresa avaliou que não deveria se manifestar. O ministro das Comunicações, Fabio Faria, que coman da a pasta responsável por administrar a ebc, também não quis dar entrevista.
Depois de ser dominada pelos inte resses do governo, a ebc começou a perder o pouco que ainda resta va de sua essência – e passou a tentar mimetizar a mídia comercial. Em se tembro de 2020, o general Pereira Go mes foi demitido por pressão da Secom a época comandada por Fabio Wajngar ten. O militar era criticado internamente por não entender nada de televisão e dar pouco destaque às ações do governo. Foi substituído pelo publicitário Glen Valen te, ex diretor comercial do sbt. Valente, que é amigo de Wajngarten e trabalhava na Secom desde 2019, assumiu a ebc com duas missões: aproximar a comu nicação da empresa dos interesses do Planalto e aumentar a audiência da tv Brasil. Com o pragmatismo de um exe cutivo da mídia comercial, recorreu a uma receita tão velha quanto eficaz: futebol e novela.
Com ajuda de Wajngarten, que cos turou um acordo de última hora com a Confederação Brasileira de Futebol (cbf), Valente conseguiu levar à tela da tv Brasil, com exclusividade, um amis toso da Seleção Brasileira contra o Peru. A partida, que o Brasil venceu por 4 a 2, fez com que Valente cumprisse as duas missões: atraiu 1,3 milhão de es pectadores, uma das maiores audiên cias da história da emissora, e promoveu uma bajulação política até então inédi ta. No final do segundo tempo, o narra dor do jogo leu uma mensagem em nome da Secom mandando um “abraço especial ao presidente Jair Bolsonaro, que está assistindo ao jogo”. A reverên cia causou espanto e virou assunto nas redes sociais. Um gaiato tuitou: “tv es tatal passando jogo do Brasil e dando salve pro Bolsonaro. Não tá fácil aqui na Venezuela.”
Meses depois, a ebc adquiriu por 3,2 milhões de reais os direitos de trans mitir Os Dez Mandamentos, megapro dução da Record, que já tinha exibido e até reprisado a atração. Em catorze anos de existência, a tv Brasil nunca havia passado uma novela. Exibia ape nas programas restritos aos canais fe chados, de modo a oferecê los para um público que não pode pagar tevê a cabo. Não só comprou um produto que todo mundo já conhecia, beneficiou uma emissora amiga, já que a Record perten te ao bispo Edir Macedo, aliado de Bol sonaro, como fez ainda pior: não tinha exclusividade (ou seja, a Record podia voltar a reprisar a novela quando bem entendesse) e só podia oferecer os capí tulos no seu streaming, o tv Brasil Play, até sete dias depois de eles terem sido veiculados na tevê. A equipe responsá vel pelo contrato na ebc avisou que era um mau negócio, mas veio a ordem: era para comprar mesmo assim.
O ponto mais contestado do negócio foi, claro, o favorecimento à emissora do bispo Macedo, mas a motivação da compra era outra. Segundo um fun cionário da área de parcerias da ebc que conversou com a piauí sob condi ção de anonimato, a ordem da chefia foi uma só: “Temos que subir a audiên cia.” A equipe saiu em busca de uma novela. “Mas a Globo não vende. O sbt não dava, porque o Glen [Valente] tra balhou lá. Falamos com a Televisa [do México], mas não daria para fechar ne gócio em tempo hábil. Acabou sobran do a Record”, diz ele.
A novela impulsionou a audiência. A tv Brasil fechou 2021 no quinto lugar entre as emissoras mais assistidas do país – seu melhor desempenho na his tória. Ficou ligeiramente à frente da Redetv !, com média de 0,35 pontos no Ibope ao longo do ano, o equivalente a 86,4 mil domicílios em todo o Brasil. A equipe que contestou o contrato foi demitida. “Disseram que a gente estava em desalinho com a direção da empre sa”, conta o funcionário que conversou com a piauí. Como todos eram concur sados, o que lhes dá o direito de só ser demitido com justa causa, foram realo cados para outras áreas.
Satisfeita com os resultados, em ja neiro deste ano a ebc comprou mais uma novela da Record: A Escrava Isau- ra. Originalmente, a novela foi ao ar na Globo, em 1976, com enorme sucesso. Em 2004, a Record fez um remake – e vendeu para a tv Brasil por 1,9 milhão de reais, naquelas mesmas condições: sem exclusividade e com direito restrito ao streaming. É o novo carro chefe da pro gramação de uma emissora que nasceu para se diferenciar da mídia comercial e acabou reduzida a isso: um veículo de propaganda do governo que retransmi te velhos folhetins de sucesso. É como se a bbc fizesse o marketing de Boris Johnson e, nas horas vagas, exibisse Johnny English.
No começo de abril, jornalistas e ex membros do Conselho Cura dor da ebc se reuniram em um seminário virtual intitulado Reconstrói ebc e a Comunicação Pública. Foram duas rodas de conversa transmitidas ao vivo em dois dias – uma na sexta feira, outra no sábado. Encontros como esse passaram a acontecer recentemente, num primeiro esforço para pensar o que vai ser da empresa caso, ao final deste ano, Bolsonaro deixe o Palácio do Planalto. A ideia é formular propostas a serem discutidas na campanha. O tema não desperta grandes pai xões, pois, dez dias depois da trans missão, os vídeos do seminário não chegavam a quatrocentas visualiza ções cada. As respostas ao desafio ain da são vagas. Parte dos ex funcionários defende que a nomeação do presidente da ebc passe a ser submetida à aprova ção do Senado, depois de uma sabati na, como acontece com as indicações para autarquias, agências reguladoras e embaixadas. A ideia é criar uma no va camada de proteção à autonomia da ebc. Outros destacam que só have rá mudança real quando se estabele cer, por lei, que o dinheiro do imposto cobrado das teles deve ir direto para os cofres da empresa.
Murilo Ramos, professor da unb, defende uma reformulação do modelo da ebc. Ele acredita que vincular a empresa à Secretaria de Comunica ção do Planalto foi um equívoco de origem. A relação da ebc com a Presi dência, mesmo durante os governos que não se empenhavam em desmon tar a ordem democrática, mostrou se tóxica. Ramos também acha que seria preciso recriar e reformular o Conse lho Curador para garantir que haja, de fato, participação social.
Em dado momento, Ramos evocou a pergunta clássica: “Por que a ebc não conseguiu ser a bbc brasileira?” O pro blema, disse ele, não está na resposta, e sim na pergunta. A ideia de criar uma rede comparável à das grandes emisso ras europeias foi uma ilusão, explicou. A tv Brasil nunca teve chance de com petir com as empresas privadas, que dominam a televisão brasileira desde seu nascimento no século xx. Em vez de pensar em bbc, o Brasil deveria ter se inspirado na pbs – a Public Broadcas ting Service, emissora pública de televi são dos Estados Unidos.
Os norte americanos, como os bra sileiros, conheceram a mídia privada muito antes da comunicação pública, lembra Ramos. Por isso, quando foi criada no fim dos anos 1960, a pbs não pretendia competir com os grandes ca nais de tevê, já então bem estabeleci dos. Também não seria fácil unir numa mesma rede todas as emissoras univer sitárias e estaduais que já existiam. “Então, eles pensaram o seguinte: va mos juntar todo mundo numa grande cooperativa, cruzando as programa ções”, explica o professor. Assim, a pbs funciona de forma descentralizada: ela fomenta a criação de conteúdo em cen tenas de emissoras e, a partir daí, mon ta sua programação. Mas cada emissora é independente para transmitir seu próprio conteúdo. Os privatistas norte americanos mais assanhados torcem o nariz para o finan ciamento público da pbs, mas ninguém compara sua audiência com a de gran des emissoras privadas. Seu jornalismo e seus programas educativos têm quali dade indiscutível. Em fevereiro, final mente deixou de exibir a famosa série Arthur, dirigida ao público infantil, de pois de 25 anos em cartaz. Produziu Sesame Street, outro programa infantil, que se tornou um sucesso planetário, inclusive no Brasil, cuja versão se cha mou Vila Sésamo. Seguindo o modelo da pbs, a tv Bra sil poderia abandonar a ambição de ser uma grande emissora à moda tradicio nal e tocar uma operação mais enxuta, destinando recursos a programas de qua lidade, produzidos por ela mesma ou por emissoras afiliadas. Em vez de atuar como cabeça de rede, centralizando todo o trabalho de jornalismo e entrete nimento, aproveitaria o melhor que es sas afiliadas produzissem. (A série Arthur era uma criação de uma afiliada da pbs em Boston.) É possível fazer algo semelhante no Brasil, a essa altura da história?
Para Te reza Cruvinel, primeira presidente da ebc, a ideia é boa, mas não é exequível:
No Brasil as tevês locais são sucateadas,
produzem pouquíssimo. Não temos aqui
essa constelação de emissoras públicas
bem estabelecidas, como acontece nos
Estados Unidos”, diz. Cruvinel, como
Ramos, não demonstra grande ânimo
ao tentar responder quais são os cami
nhos possíveis para a ebc daqui em dian
te. “Não sabemos como vão ser as coisas,
isso está em aberto”, diz Ramos, de for
ma lacônica. “Mas não podemos jogar
fora o que se acumulou de experiência
desde 2007. A criação da ebc – eu tenho
certeza disso – foi uma medida civiliza
tória.” Que, nos dias de hoje, vive o auge
de sua decadência.
Um dos exemplos mais pitorescos é
o Sem Censura. O programa de entre
vistas, que foi ao ar pela primeira vez
em 1985, na extinta tve do Rio de Ja
neiro, passou por uma reformulação na
gestão de Glen Valente e virou um es
paço de exaltação do governo Bolsonaro
nas segundas feiras à noite. Os convida
dos são, em sua maioria, ministros, se
cretários do governo e parlamentares
bolsonaristas. Embora o programa sem
pre convide dois jornalistas de outras
emissoras, os assuntos são invariavel
mente amenos. A apresentadora garante
que, do início ao fim, o clima da con
versa seja de camaradagem.
Em fevereiro deste ano, o então mi
nistro astronauta Marcos Pontes, por
exemplo, ouviu a seguinte pergunta:
– Quando o senhor vai ao supermer
cado, qual é a sua maior tentação?
Milton Ribeiro, ministro responsável
por uma gestão desastrosa à frente do
mec, foi indagado:
– Na escola, qual era sua matéria
favorita?
O atual ministro do Meio Ambien
te, Joaquim Leite, esteve no programa
pouco depois da divulgação de dados
mostrando que, em janeiro deste ano,
os alertas de desmatamento na Ama
zônia bateram novo recorde. Diante
das câmeras da tv Brasil, a apresenta
dora lhe perguntou:
– Se você for para uma festa, qual
música tem mais chance de sair dan
çando: alguma antiga do Sidney Magal
ou uma dos Rolling Stones?
Em julho do ano passado, o então
ministro do Turismo, Gilson Machado,
esteve no programa:
– Qual a música o senhor mais gosta
de tocar na sanfona?
– Asa Branca – devolveu o ministro,
sem titubear.
Em seguida, com o instrumento a
tiracolo, tocou essa e outras canções
para encerrar a entrevista. A apresenta
dora acompanhou o ritmo com as mãos
e até ensaiou dar uns passos de dança.
Todos sorriram no estúdio e os créditos
começaram a subir ao som do sanfonei
ro bolsonarista. Mais uma semana co
meçava na tv Brasil.
PIAUI
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