POR ANA FLÁVIA GUSSEN
Dez meses depois de vencer
a Covid-19, Jéssica Laís
sente cheiro de sangue.
Sentar-se à mesa com a
família tornou-se uma
tortura, por causa do enjoo incontrolá-
vel que temperos básicos lhe provocam.
Gabriel Ribeiro evita sair às ruas. Sete
meses depois de testar positivo, ele não
consegue ter a mesma mobilidade nas
pernas. O medo de tropeçar e cair faz
com que evite sair de casa para fazer as
coisas mais básicas. Clarissa Ymasuda
é médica e desde que foi infectada viu
suas funções neurológicas mudarem.
As sequelas cognitivas a deixam triste:
“Parece que estou mais lenta para tu-
do”. Luiza viu mais da metade dos fios
de cabelo caírem.
Jéssica, Gabriel, Clarissa e Luiza in-
tegram o universo de 1,7 milhão de bra-
sileiros que desenvolveram a chamada
“síndrome pós-Covid” até 12 semanas
após o contágio, segundo projeções da
Organização Mundial da Saúde. Outros
3,25 milhões apresentam sintomas por
até quatro semanas depois de testarem
positivo. Os dados não deixam dúvidas,
há uma segunda crise sanitária, total-
mente silenciosa, em meio ao colapso pú-
blico causado pela pandemia no Brasil.
Em 22 de abril, a revista científica
Nature divulgou o maior estudo publi-
cado a respeito do tema até agora. Con-
duzida por pesquisadores da Escola de
Medicina da Universidade de Washing-
ton, a pesquisa envolveu 87 mil diag-
nosticados com Covid-19 e 5 milhões
de indivíduos saudáveis. De acordo com
a publicação, o risco de morte entre os
infectados é 59% maior, mesmo entre
aqueles que haviam sido diagnostica-
dos seis meses antes. Além das sequelas
pulmonares, descobriram os pesquisa-
dores, foram desenvolvidos distúrbios
neurocognitivos, de saúde mental, me-
tabólicos, cardiovasculares, gastroin-
testinais, mal-estar, fadiga, dores mus-
coesqueléticas e anemia. Casos de in-
fartos e arritmias são inúmeros. Es-
pecialistas afirmam que 80% dos pa-
cientes de Covid-19 relataram sentir ao
menos um desses sintomas. “Estou há
dez meses com olfato e paladar distor-
cidos. Não posso comer perto de nin-
guém, porque temperos como alho e ce-
bola têm um cheiro horrível para mim.
Tenho sentido cheiro de carne crua. Se
meu marido chega suado do trabalho,
eu sinto cheiro de sangue. Tenho me-
do de prejudicar a educação alimentar
de meus filhos de 5 e 7 anos”, desabafa
Laís, de 29 anos, moradora de Joinvil-
le, que não chegou a ser hospitalizada.
Luiza, que tem 30 anos e prefere não
se identificar, perdeu metade dos cabe-
los. Ela buscou tratamento com dife-
rentes médicos, seus exames estão to-
dos sob controle, mas o problema não
cessa desde que se curou do vírus, em
fevereiro. “É desesperador. Não para de
cair e ninguém consegue me ajudar.”
Ribeiro, de 38 anos, ficou 42 dias inter-
nado e dez dias entubado. Hoje, convi-
ve com as sequelas da internação e tam-
bém com novos distúrbios que surgi-
ram depois de ter deixado um hospital
na capital paulista. “Eu tinha uma es-
cara de 8 centímetros de profundidade
e quase 8 de largura. Cinco meses de-
pois ela está com 1 centímetro, mas ain-
da preciso trabalhar de bruços, pois sin-
to muita dor se fico sentado muito tem-
po. Um médico também me diagnosti-
cou com ‘pé equino’. Fiz fisioterapia
pra voltar a andar, mas disseram que
posso ficar com sequelas. Tenho medo
de andar na rua e cair. Ainda não acho
que venci a Covid”, afirma. Ele também
relata lentidão no raciocínio, sintoma
muito comum entre os infectados, ao
lado de depressão e ansiedade.
Ribeiro passou pelo terror que muitos
jovens vivem com a P1, conhecida como
“variante brasileira”. Após três testes
negativos, a doença só foi confirmada
depois da internação. No hospital, ele
teve de optar pela entubação. Ribeiro
conta que ligou para a mãe, a tia e um
amigo e colega de trabalho, que viria a
falecer de Coronavírus quatro meses
depois, para avisar da decisão. “Minha
mãe ficou desesperada. Fiz uma cha-
mada de vídeo com eles e avisei que se-
ria entubado. Os piores dias foram os
cinco primeiros, quando minha con-
dição respiratória piorou, meus rins
também e precisei até fazer diálise.”
No fim, ele escapou das estatísticas.
No ano passado, 80% dos entubados
não sobreviveram.
Um estudo brasileiro apresenta
conclusão alarmante sobre a síndro-
me pós-Covid: diferentemente do que
se pensa, 89% daqueles que desenvol-
veram sequelas nem sequer chega-
ram a ser internados. Dos 8 mil ava-
liados, quase 52% apresentaram fadi-
ga e cansaço, 43% problemas de memó-
ria, 32,9% dores de cabeça e quase 20%
problemas com atividades motoras ou
dificuldade de coordenação, segundo a
pesquisa NeuroCovid, coordenada pela
neurologista Clarissa Yasuda, profes-
sora assistente de Neurologia da Facul-
dade de Ciências Médicas da Unicamp.
Vale ressaltar que a maior parte dos pa-
cientes que desenvolveram sequelas,
segundo a pesquisa da Unicamp, teve
sintomas semelhantes a uma “gripezi-
nha”, nas palavras de Jair Bolsonaro.
“Temos de considerar que a maioria
dos pacientes avaliados ficou isolada em
casa durante a doença. Temos de pen-
sar que, quando um paciente é entubado
ou internado devido à baixa saturação,
ele tem um quadro de hipoxia, então há,
na maior parte das vezes, uma pau-
sa respiratória e chances maiores
de lesão. Mas, neste caso, estamos
falando de quem nem sequer preci-
sou ser internado”, alertou a neuro-
logista, igualmente afetada por sequelas
da Covid-19. “Sinto na pele o que muitos
relatam. Fiquei em casa isolada e agora
sinto mudanças neurológicas, como se
fosse mais lenta. É triste”, conta a médi-
ca, que apresentou sua pesquisa em um
encontro organizado pela Organização
Mundial da Saúde em 20 de abril.
Os casos relatados a CartaCapi-
tal têm em comum a dificuldade de
encontrar respostas para os problemas
surgidos após a doença. “Me sinto com-
pletamente sozinha”, afirma Laís. O es-
tudo da Nature sugere que organizações
sanitárias e governos criem protocolos
e orientem as redes pública e privada
para enfrentar a síndrome pós-Covid,
que tende a se intensificar nos próxi-
mos meses e afetar a economia. Muitos
pacientes relatam dificuldade para tra-
balhar. No Brasil, passado mais de um
ano do início da pandemia, o Ministério
da Saúde foi, no entanto, incapaz de pre-
parar um protocolo nacional para o tra-
tamento da doença, nem se fale de pla-
nejar medidas que atenuem a síndrome.
“Estamos experimentando não só um
impacto na economia, com trabalha-
dores com dificuldade de exercer suas
funções, mas estamos vendo resultados
de um nó no sistema de saúde, com atra-
sos em diagnósticos de doenças como
câncer, HIV, pois temos falta de ofer-
ta de vários serviços”, afirma Wla-
dimir Queiroz, consultor da Socie-
dade Brasileira de Infectologia. Se-
gundo Yasuda, a “variante brasilei-
ra” amplia consideravelmente a so-
brecarga do sistema de saúde. “Pre-
cisamos que o governo ajude. Não vejo
iniciativas para lidar com essa deman-
da de retorno dos pacientes. Há luga-
res que tentam organizar a reabilita-
ção que envolve o pós-Covid, mas não
vejo isso como política nacional.” En-
quanto uma CPI se desenrola no Con-
gresso e os números de óbitos não sensi-
bilizam Bolsonaro, muitos, como Laís,
se sentem sozinhos em busca de respos-
tas que parecem longe de ser prioridade
no país que caminha para 500 mil mor-
tos pelo vírus. •
CARTA CAPITAL
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