March 20, 2021

Quando a pilha acaba: As novas faces do burnout com a pandemia

 

 

Constança Tasch e Fernanda Bassette

Em novembro do ano passado, o arquiteto Celso Costa Filho, de 48 anos, travou. O desenvolvimento de novos projetos não andava. O número de clientes caiu com a pandemia e a pressão financeira o fez conter gastos. A frustração levou-o a uma irritabilidade extrema que transbordou para dentro de casa, afetando a relação com a mulher e com o filho. Até o número de multas de trânsito aumentou. O impacto da pandemia e do isolamento social se somou ao medo de adoecer e não conseguir sustentar a casa e a família. As insônias viraram frequentes. Nas noites em claro, uma autocobrança sobre a vida dentro e fora de casa. “Nos primeiros meses fui levando bem. A partir do meio do ano eu não tinha mais energia para trabalhar. Olhava para a mesa e não conseguia produzir nada, não conseguia mais criar, não tinha ânimo. Eu não queria mais trabalhar e ao mesmo tempo sabia que precisava”, contou o arquiteto.

Sem conseguir achar uma saída sozinho, o arquiteto decidiu procurar ajuda médica. Hoje diz que está começando a se recuperar e a se sentir melhor. “O confinamento se tornou um vilão e aumentou a ansiedade. Hoje os remédios fazem parte de minha vida”, afirmou ele, agora diagnosticado com síndrome de burnout. Por dia, toma dois medicamentos de uso controlado, além de recorrer a um ansiolítico para os momentos em que a angústia insiste em paralisá-lo.

Jéssica Dias viu sua casa virar escritório e seu lazer desaparecer na pandemia. Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo
Jéssica Dias viu sua casa virar escritório e seu lazer desaparecer na pandemia. Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo

A síndrome de burnout é um distúrbio amplamente catalogado na literatura médica. É normalmente associada a uma exaustão extrema relacionada ao estresse crônico no ambiente de trabalho. Informalmente, é até chamada de “síndrome do esgotamento profissional” por causa do vínculo empregatício. Mas, agora, novos estopins que fogem da rotina profissional começam a ser associados ao quadro psicológico. No ano em que o mundo mudou por causa da pandemia do novo coronavírus, a ideia de burnout também parece adquirir novas dimensões.

O home office transformou a casa, normalmente um porto seguro para o estresse do trabalho, em escritório. A rotina profissional passou a se misturar com as tarefas do dia a dia, como cuidar dos filhos, com a preocupação com os parentes mais frágeis à Covid-19 e com os relacionamentos íntimos. Válvulas de escape que antes existiam no momento em que o computador era desligado viraram mais uma tarefa a ser cumprida, e a pressão aumentou. “Há dados que mostram que os brasileiros estão sofrendo mais com sintomas de ansiedade, estresse crônico, típicos do burnout. Talvez seja uma nova forma de usar o termo, mas, como nosso trabalho invadiu nossa vida doméstica, virou tudo a mesma coisa”, afirmou Desirée Cassado, psicóloga e professora na organização educacional global The School of Life, que tem sede em Londres.

O medo de não dar conta, dentro e fora de casa, paralisou o arquiteto Celso Costa Filho. Foto: Silas Ismael / Agência O Globo
O medo de não dar conta, dentro e fora de casa, paralisou o arquiteto Celso Costa Filho. Foto: Silas Ismael / Agência O Globo

Jonas (nome fictício) teme que saibam que ele sofre de burnout. Aos 48 anos, casado e pai de um menino de 12 anos, é gerente de TI em uma grande empresa de varejo. Em março do ano passado, passou a trabalhar de casa. Montou o escritório no quarto em que ele costumava se distrair e tocar bateria — seu principal hobby. “No final da noite eu queria sair de lá de dentro e não voltar nunca mais. Aquele espaço que antes era para meu lazer estava me deixando sufocado. Era um primeiro sintoma”, lembrou o gerente de TI que deixou as baquetas de lado e nunca mais tocou. Em novembro do ano passado, teve uma crise durante uma reunião de trabalho. “Comecei a sentir taquicardia, formigamento nas pernas, nas mãos, no rosto, vontade de chorar e sensação de falta de ar. Achei que morreria. Pedi licença, saí da reunião e não consegui mais trabalhar.”

O terapeuta indicou a ele um psiquiatra. Ao relatar o dia a dia e os sintomas da crise, não demorou a chegar a um resultado: síndrome de burnout. O médico determinou um afastamento de 30 dias do trabalho. Com medo de perder o emprego, ele não queria seguir a recomendação de se desligar do trabalho, mas na perícia feita pelo INSS o examinador determinou um afastamento ainda maior, de 40 dias. Ele passou a tomar medicamentos para ansiedade e retornou às atividades em janeiro. Atuando na área de tecnologia há 28 anos, ele reconheceu que nunca teve uma rotina de trabalho muito tranquila, mas afirmou não ter dúvidas de que o home office forçado por causa da pandemia causou nele uma exaustão a ponto de deixá-lo doente. “Meu plano B é mudar de emprego e tocar minha vida. Agora não é o momento, mas pretendo seguir com um negócio próprio.”

O diagnóstico de burnout envolve três características principais: a exaustão, representada pelo pensamento “eu não aguento mais”; o cinismo, também caracterizado pela ironia ou irritabilidade; e a ineficácia, quando a pessoa tem a sensação de que não consegue realizar o que se propõe a fazer e não enxerga futuro. O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva, explicou que a síndrome não é uma doença, mas pode levar a muitas delas, como transtorno depressivo ou de ansiedade. “Há uma sensação de desesperança, de desamparo, que é perigosa. Vejo todo mundo na beira do precipício da saúde mental. Todos os ingredientes para desenvolver uma questão complexa de saúde mental estão na mesa”, disse Desirée Cassado. “Nós somos resilientes, estamos aí vivendo, equilibrando todos os pratos, mas não sem prejuízo.”

“Exaustão, irritabilidade e a sensação de que não se consegue dar conta de tudo estão entre as principais características dos pacientes identificados com a síndrome”

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Nos consultórios, explosão de casos. A neuropsicóloga Juliana Gebrim percebeu um aumento significativo. Em seu consultório, o número de pessoas interessadas em receber atendimento dobrou e há fila de espera. “É importante falar no vírus emocional — situações impostas pela pandemia das quais ficamos reféns e que nos abalam emocionalmente”.

O burnout também dá sinais físicos. Gebrim destacou as dores pelo corpo, manchas e erupções na pele, lapsos de memória, colesterol aumentado, visão turva, problemas gastrointestinais, dores de cabeça recorrentes, problemas de sono, tonturas. “Isso causa uma peregrinação aos hospitais, pessoas procurando ajuda, fazendo exames, sobrecarregando o sistema de saúde e se expondo ao vírus, quando, na verdade, são questões de saúde mental.” Metaforicamente, a pandemia cria um túnel, onde não há alternativas de caminho e a luz continua muito distante. As pessoas ficam reféns de situações. Como deixar o emprego que nos consome em meio a uma crise econômica gigantesca? Como contar com a ajuda de antes se há risco fora de casa? Como ter momentos de ócio e lazer quando as tarefas se acumulam e não se deve sair? Como desconectar?

A servidora pública Jéssica Sousa Dias, de 29 anos, está afastada do trabalho desde outubro, quando recebeu o diagnóstico. Ela, que atua na área administrativa de um conselho de classe, entrou em colapso físico e mental com o isolamento social forçado pela quarentena. “Eu tinha um trabalho com horário super-regrado, praticava corrida ao ar livre pelo menos três vezes na semana, fazia academia, tinha uma vida social ativa. De repente eu estava trancafiada em casa, sem ver minha família, trabalhando muito mais horas e acumulando tarefas”, contou.

Aline Eiras passou a errar caminhos rotineiros, esquecer tarefas normais e a se isolar do mundo. Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo
Aline Eiras passou a errar caminhos rotineiros, esquecer tarefas normais e a se isolar do mundo. Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo

As reuniões de trabalho, que antes costumavam ser breves, passaram a tomar cerca de três horas do dia e passar do horário do expediente. Jéssica Dias percebeu que começou a ficar mais irritada, mais explosiva, chorando sem controle. Em agosto, teve a primeira crise. “O trabalho começou a ficar insuportável, eu não dava mais conta. Era como se eu estivesse remando sozinha, e o barco afundando”, disse ela, que foi orientada a procurar ajuda psiquiátrica. “Tenho 29 anos e estou parada por causa dessa doença. As pessoas precisam saber que isso existe”, afirmou.

A Universidade de Louvain, na Bélgica, tem um laboratório de pesquisa de burnout parental. Um estudo com 1.300 pais belgas mostra que a crise do coronavírus e o isolamento trouxeram mais estresse para 15% dos pais e 20% das mães, “aumentando os sintomas do burnout parental de forma significativa”. Há cerca de um ano, a psiquiatra e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Carmita Abdo realizou um estudo sobre o problema. “De lá para cá, as coisas mudaram muito. O burnout é, em termos puristas, a síndrome de exaustão ou queima total pelo trabalho. Hoje está tudo misturado, não dá para dizer se a pessoa está esgotada por sua atividade profissional ou por todas as funções que foram se acumulando. No frigir dos ovos, tudo é trabalho”, sentenciou.

Para Abdo, uma coisa pouco mudou. A principal vítima é a mulher jovem. “As mulheres já eram mais afetadas do que homens em geral, muito em razão da sobrecarga de jornada dupla e tripla, que ainda existe. O trabalho, a manutenção da casa, a educação e o cuidado com os filhos são responsabilidades de altíssima importância. E é essa mulher, no período reprodutivo, que trabalha, tem filhos pequenos, cuida da manutenção da casa e dos pais idosos, a mais sobrecarregada tanto antes da pandemia quanto, com certeza, agora.”

“Combater a exaustão emocional diminuindo as demandas, aumentando o suporte e intensificando o controle são caminhos para superar as crises associadas ao burnout”

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Assim como algumas funções deixam o indivíduo mais exposto à pandemia, como médicos, professores e jornalistas, a personalidade de cada um também interfere no risco de desenvolver burnout. Em geral, são pessoas que têm uma ambição mais notória, um acentuado impulso competitivo, se cobram muito, são perfeccionistas, impacientes, que consideram muito a opinião alheia e tendem até a sentir muita raiva de si mesmas e do outro. “Quem tinha burnout eram pessoas apaixonadas pelo trabalho e que o botavam acima de tudo. Hoje temos outros elementos, que a pandemia impôs”, afirmou a psiquiatra.

A nutricionista Aline Santana Eiras, de 29 anos, trabalha em UTI de hospitais há cerca de sete anos. Ela foi diagnosticada com síndrome de burnout no início do mês e iniciou o tratamento psiquiátrico e psicológico para superar a doença. “Sempre atendi pacientes graves, crônicos e até terminais e sempre achei que sabia lidar bem com a morte. Mas veio a pandemia e tudo mudou”, disse ela, que trabalha em um hospital particular da Zona Leste de São Paulo com mais de 600 leitos — 60 deles destinados à UTI de pacientes com Covid-19.

Os sintomas de Aline Eiras começaram no segundo semestre, com choros frequentes, crises de ansiedade e muito medo. Em novembro, a situação piorou, especialmente enquanto ela estava no trajeto para o trabalho: além do choro e do medo, sentia falta de ar, taquicardia, tontura e enjoo. “Passei a me perder e a errar o caminho dentro do metrô, um transporte que eu uso todos os dias há anos. Quando isso aconteceu, eu percebi que algo estava errado”, contou. “Foi muito difícil aceitar que eu estou doente. A gente se sente culpada, fica pensando que todo mundo da equipe está sobrecarregado e se pergunta por que acontece com a gente”, disse a nutricionista. Ela agora está tomando medicamento para ansiedade, florais e fazendo terapia.

Ter um momento de desconexão com a realidade, como ver um filme ou praticar um esporte, pode ajudar a superar a crise. Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Ter um momento de desconexão com a realidade, como ver um filme ou praticar um esporte, pode ajudar a superar a crise. Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Se todos estão próximos do precipício, Desirée Cassado aponta alguns pilares para impedir a queda. O primeiro é a rotina, “porque o ser humano precisa de alguma previsibilidade sobre o que vai acontecer”. E se não é possível prever como o mundo estará em julho, que pelo menos as pessoas saibam o que vai acontecer em duas horas. Criar transições do momento de trabalho para o pessoal também ajuda a proporcionar uma sensação de normalidade. Outro pilar é o cuidado com o corpo. Sono, boa alimentação, equilibrando prazer e saúde, e atividade física pelo menos meia hora três vezes por semana dão ferramentas ao corpo para lidar com uma situação de estresse.

Os relacionamentos também são essenciais. Neste momento, a tecnologia pode ser usada em favor de aproximar as pessoas, mas é preciso atenção: redes sociais não são a melhor ferramenta de conexão porque “estudos indicam que as pessoas se sentem até mais desconectadas e com baixa autoestima nelas”, segundo a psicóloga. Uma ligação por vídeo ou mesmo uma conversa individual por mensagem de texto têm poder maior de aproximar as pessoas.

É preciso também levar o prazer a sério: ter momentos de ócio ou dedicados àquilo de que se gosta é importante para suprir tantos impeditivos que a pandemia trouxe. Por fim, o precipício fica mais distante quando há propósito.

 

ÉPOCA

 

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