February 19, 2020

1966: o ano em que o Brasil teve uma ideia impensável


E a Frente Ampla?

Heloisa Murgel Starling

Imagine três inimigos históricos: Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João Goulart. Lacerda usou todos os pretextos a seu alcance para melar a posse de Kubitschek na Presidência da República, em 1955. Também atiçou as rebeliões comandadas por oficiais da Aeronáutica contra o governo de JK — Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959) —, moeu o desempenho presidencial de João Goulart e foi a mais incendiária liderança civil do golpe militar de 1964.
Juscelino, por seu lado, fabricou uma legislação sob medida para vetar discurso de Lacerda na televisão ou no rádio. Já Goulart enviou mensagem ao Congresso solicitando a decretação do estado de sítio no país para que ele pudesse intervir na Guanabara e deixou preparada a ordem de prisão do governador — no caso, Carlos Lacerda. Partidários de JK ou de Jango só se referiam a Lacerda como “corvo” e “golpista”; os lacerdistas retrucavam à altura: Jango era “comunista”; Juscelino, “corrupto máximo”.
Imagine, agora, uma ideia impensável. Entre os meses de outubro de 1966 e abril de 1968, os três personagens que se abominavam decidiram conversar, encontraram uma linguagem comum e acertaram uma aliança — batizada “Frente Ampla”. Jango era uma das principais lideranças do campo das esquerdas; JK estava “à esquerda da direita e à direita da esquerda”, como se autoproclamavam seus correligionários, ao centro do espectro político; Carlos Lacerda capitaneava a fina flor do conservadorismo no país.
O golpe militar de 1964 deu início a um governo sustentado por um formato abertamente ditatorial — vale dizer, que não é limitado constitucionalmente — e avançou contra os expoentes do regime anterior. Juscelino, acusado de corrupção, estava refugiado em Lisboa; Jango, no exílio em Montevidéu. Ambos com direitos políticos cassados.
Os três personagens passaram a vida execrando uns aos outros e tinham a perder com a aliança política: “O doutor Getulio sairá do seu túmulo para nos condenar”, esbravejou Leonel Brizola, que não quis saber de conversa.
A Frente Ampla foi a mais improvável das alianças políticas brasileiras. Sacudiu o país, como previu Tancredo Neves, animadíssimo com a ideia. Reuniu praticamente todas as correntes políticas — incluindo comunistas e trotskistas, com Mário Pedrosa à frente —, aglutinou grupos à direita inconformados com a ditadura, protagonizou os primeiros comícios oposicionistas desde o golpe militar, abriu a discussão política em reuniões públicas, debates e manifestações de rua. Fabricou um programa mínimo, capaz de reunir os opostos em torno de causas comuns pelas quais valia a pena lutar: restauração do poder civil, soberania nacional, anistia, pluripartidarismo, direito de greve, constituinte, eleições diretas.
“Era um projeto perigoso demais e não podia durar: com um decreto duro, o general Costa e Silva extinguiu a Frente Ampla em 5 de abril de 1968”
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Os militares jamais perdoaram Carlos Lacerda, a quem consideraram, desde aquele momento, um traidor: em dezembro de 1968, seu nome encabeçou a lista de cassações do AI-5 e ele foi preso. Nunca mais voltaria à vida política.
Com o tempo, a Frente Ampla acabou quase esquecida; virou um comentário breve na historiografia sobre o período. Mas, vista com olhos de hoje, talvez ela ainda se preste a oferecer algo essencial sobre o entendimento da democracia no país.
Numa situação de crise como a que vivemos atualmente, sobretudo nas circunstâncias em que a crise atinge o pensamento, a política e os valores, uma alternativa é recorrer ao passado para pensar com ele, sem se deixar dominar pela ilusão de que no tempo cronológico existe lugar para a repetição — afinal, o tempo não é retilíneo e a história é ingovernável.
Então, a experiência da Frente Ampla talvez sirva para informar a nós, no futuro, que democracia não é só um sistema baseado em instituições: eleições, voto, partidos, agências de governo. É igualmente um modo de vida e uma forma de sociedade, para usar a definição de Tocqueville. E que o vigor de uma sociedade democrática está ajustado ao cultivo de determinados princípios e valores políticos, entre eles a tolerância.
Virtude do entendimento, a tolerância só existe no encontro entre os divergentes. Significa a descoberta respeitosa do outro e se materializa no diálogo entre duas ou mais pessoas para que germine a prática democrática.
Não sei a opinião do leitor. Mas desconfio de que esteja na hora de nós começarmos a imaginar ideias impensáveis no Brasil.

Heloisa Murgel Starling, historiadora e cientista política, é professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

 

1 comment:

Alexandre said...

Se aliar com a direita é o caminho mais rápido pra fortalecer a extrema-direita.