Viviam entre nós o conto de Clarice Lispector, a crônica de Rubem
Braga e Antonio Maria, Guimarães Rosa, a euforia cinéfila, os museus
de arte moderna, as
exposições de Lina Bo Bardi.
Houve até um toque português. Na Bahia, um filósofo refugiado da
ditadura de Salazar, Agostinho da Silva, difundia o sebastianismo
pessoano de “Mensagem”. O sonho Brasil era vendido em qualquer padaria.
João Gilberto foi um sobrevivente dessa miragem. Síntese do artista moderno,
reorganizou a tradição do samba
e construiu um caminho contrário à autossacralização dentro do
território seguro da bossa nova. No México, quem diria, gravou boleros. A
influência intergeracional de João comprova as possibilidades culturais
de sua ruptura em diálogo contínuo com outras utopias, sem excluir as
que ainda não existiam.
Vertentes distintas e conflitantes da música popular se tocam na
assimilação do trauma de “Chega de Saudade”, de 1959, “O Amor, o Sorriso
e a Flor”, de 1960, e “João Gilberto”, de 1961. O roqueiro Raul Seixas,
que atacava os bossa-novistas baianos, reconheceria ao jornal Pasquim
que “gostava de João Gilberto, gostava muito”.
Caetano Veloso, com certeza o
discípulo mais amado por João,
assumiu o músico como filtro estético e humano de seu próprio projeto
pessoal. Mesmo Paulinho da Viola, formado na escola de Jacob do Bandolim
e César Faria, sentiria seus impactos tardios.
A bossa nova encarnou a utopia brasileira para a geração do cinema
novo, empenhada em acrescentar dissonâncias —conflitos e mazelas
sociais— à leitura artística do país integrado enfim ao mundo, nas
beiradas do golpe de 1964.
Essa visão estabelecida do programa cinema-novista merece um olhar
cauteloso, pois João, Tom e o grupo da bossa nova não estavam alheios
aos absurdos brasileiros e, em alguns momentos, houve até uma
feliz contaminação de ideários.
Só em 1962 dois filmes exemplificam essa proximidade de projetos.
“Cinco Vezes Favela” ganha a colaboração de Carlos Lyra, um dos
criadores do Centro Popular de Cultura e compositor da “Canção do
Subdesenvolvido” ao lado de Chico de Assis. E “Porto das Caixas”, de
Paulo Cesar Saraceni, flutua na trilha musical de Tom Jobim.
O cineasta
Glauber Rocha
não gostava de bossa nova e preferia o modernismo musical de
Villa-Lobos. Ao conhecer João Gilberto nos Estados Unidos, em 1969, saiu
seduzido pela esfinge, a ponto de escrever um roteiro jamais filmado em
que o músico perfeccionista seria capaz de incendiar cidades.
Os escritores reconheceriam os efeitos de seu uso clarificador da língua portuguesa. A obra de
Carlos Drummond de Andrade,
seu poeta-modelo, sem dúvida contribuiu para o reposicionamento da
palavra em seus planos musicais. Os concretistas sacaram na hora. O
poeta
Augusto de Campos,
autor de “Balanço da Bossa e Outras Bossas”, de 1968, tornou-se seu
primeiro intérprete de envergadura (mais tarde, Walter Garcia daria
contribuições finas), estabelecendo os vínculos do artista com a música
moderna.
O tropicalismo floresceu num Brasil já autoritário, perto do abismo
do AI-5, e encontrou sua senda entre João Gilberto e Glauber Rocha.
Outra vez, o bruxo de Juazeiro estava na encruzilhada.
“O tropicalismo foi um movimento romântico-destrutivo, mas a bossa
nova foi um movimento clássico construtivo”, definiu Caetano, num texto
de 1984 sobre os 25 anos de carreira do mestre que o convocara a deixar
de vez o exílio em Londres.
João continuava olhando. Em sua
estranha reaparição
neste ano, na circunstância triste dessa morte, a ideia de um Brasil
promissor nos interpela. O pensamento utópico produziu desastres no
século 20, mas evitou tantos outros em seu efeito saneador nas
vanguardas artísticas.
Agora, uma ilustração da distopia. O atual presidente da República, Jair Bolsonaro, precisou ser provocado para
comentar a morte de João Gilberto.
“Era uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá OK?”,
disse. Mais que anti-JK, Bolsonaro é o antipresidente bossa nova, o
retrato da fissura no destino brasileiro, o vácuo apontado contra os
indígenas, os negros, os gays, os professores, as florestas e os rios.
“Morte do Leiteiro”, de Drummond, era um dos poemas favoritos de João
Gilberto. “Há no país uma legenda,/ que ladrão se mata com tiro./ Então
o moço que é leiteiro/ de madrugada com sua lata/ sai correndo e
distribuindo/ leite bom para gente ruim.”
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