October 13, 2017

No fundo do mar


Marcus Faustini

Como o prefeito é capaz de se pronunciar como protetor da infância se não está nas ruas acolhendo centenas delas?

Uma das maiores obscenidades do Brasil é contra suas crianças, pobres, em situação de vulnerabilidade social. Nas grandes cidades, como no Rio de Janeiro, o número de crianças e adolescentes que moram nas ruas, expostas à própria sorte, persiste. Viver em situação de rua cria um círculo de exposição a assédios que abala a dignidade humana e seduz para práticas de delitos. Não é comum assistirmos a virulentas manifestações contra essa situação e, agravando a situação, presenciamos um desmonte de políticas públicas de direitos para essas crianças.

Não são raras as vezes em que prevalece uma perversidade como reação quando o assunto é criança de rua: culpar os próprios meninos e meninas por estarem nessa situação e incentivar o tratamento delas como lixo da sociedade que deve ser jogado para debaixo do tapete. Muitos querem distância disso! A naturalidade com que esta fratura social é aceita, como se fosse apenas mais uma característica inevitável de nossos tempos, revela mais um aspecto da estrutura de desigualdade do país que acredita ser plausível a existência de gente sem acesso a dignidade mínima. É vergonhoso pensar que o número de crianças nas ruas cariocas esteja perto de poucas centenas, e nenhuma alternativa que promova rotas de fuga seja a aposta a ser feita.

Na cidade do Rio de Janeiro, gestores de programas governamentais e projetos apontam nas redes sociais o esvaziamento de centros de acolhimentos para essas crianças nos últimos meses. Um dos exemplos é o projeto Casa Viva, rede de abrigos anteriormente apoiados pela prefeitura e que agora estão fechados. As centrais de recepção de crianças e adolescentes em situação de rua estão lotadas e não existe nenhum lugar de acolhimento e encaminhamento em funcionamento. Mas, seguindo a regra de como o país ignora esse drama, esse desmantelo segue invisível, sem pressão da opinião pública. Ao mesmo tempo, o atual prefeito não pensou duas vezes em publicar um vídeo nas redes sociais em que, de forma irônica, diz que não vai aceitar as exposições artísticas que, em sua visão, incitam a pedofilia e zoofilia na cidade. Termina dizendo que o lugar delas seria “o fundo do mar” — numa referência ao Museu de Arte do Rio, o MAR, que teria se colocado como possível expositor da “Queermuseu”, com obras de artistas que supostamente violam princípios morais e religiosos. Ao mesmo tempo, o vídeo pegou carona na reação, iniciada pelo MBL e Bolsonaro, a uma performance no MAM (SP), onde um artista nu convida o público a mexer no seu corpo. Um outro vídeo que mostra uma criança acompanhada da mãe junto com o artista em ação disparou violentas reações nas redes e estimulou uma ação com agressão física a funcionários do MAM.

Como parte da sociedade pode ter uma reação tão arrebatadora a obras de arte e ficar quieta com crianças expostas nas ruas? Como o prefeito da cidade é capaz de se pronunciar como um protetor da infância se não está nas ruas procurando soluções e acolhendo centenas delas?

Depois de deixar acabar a comida das unidades de acolhimento a moradores de rua, adultos e crianças, nos últimos meses, a prefeitura mobilizou a Igreja Universal pedindo doação para esses espaços. Na opinião de algumas pessoas que trabalham com ações de proteção a infância e juventude — que preferem não se identificar por receio de represálias — existe um claro desmonte da política pública para repassá-la a grupos religiosos. Dados da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos apontam que existiam cerca de 11 mil pessoas morando nas ruas da cidade até o final do primeiro semestre de 2017, sendo cerca de 9% de crianças, adolescentes e jovens. Um quadro capaz de ser revertido.

O bonde que Crivella pegou, reagindo a obras de arte, faz parte de uma estratégia de setores conservadores da política brasileira para crescerem no meio da descrença generalizada a que assistimos com a política. Mais uma vez, usam da criação de tensões com a arte, criando inimigos, para se promoverem como guardiões da moral, do bom costume e receberem adesão aos seus grupos e posteriores candidatos. E, com isso, esvaziam a política como o espaço de possibilidade de diminuição das desigualdades sociais e proteção de direitos. Ficam repetindo a lógica do bem contra o mal para esconder fragilidades de seus projetos de poder que passam longe de melhorar a vida das pessoas.

Está claro que a revolta produzida com a exposição “Queermuseu” e com a performance no MAM é fake, produzida, não tem como intenção a defesa de direitos para a infância. Em cada palavra dita nesse episódio existe a estimulação à violência nas redes e nas ruas. O papel de um gestor, nesse caso, seria juntar as instâncias da arte e de direitos da infância para encontrar uma saída.

Desejar que coisas estejam no fundo do mar é um ato falho, ao gosto de práticas autoritárias, aquelas que jogam as diferenças em calabouços ou no fundo do mar.

O GLOBO, OUTUBRO 2017 

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