Rotina de mortes, que força meninos e meninas passarem próximos a cadáveres, pode prejudicar formação de filhos de moradores
Desolador. De olhos vendados, crianças atravessam viela onde havia corpo ensanguentado - José Lucena / Estadão
Um gesto de amor pelos filhos. Assim a psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)Marcia
Ganime, especialista em psicoterapia da infância pelo Instituto de
Psiquiatria da UFRJ, definiu a atitude da mãe das crianças, flagradas em
foto publicada nesta terça-feira na primeira página do GLOBO, que
resolveu cobrir os olhos dos filhos com peças de roupas para evitar que
eles vissem, na manhã de anteontem, um corpo crivado de balas e coberto
de sangue nas vielas da Rocinha, a caminho da escola. A cena expõe a
violência que já faz parte da história de vida de milhares de crianças
da favela.
LEIA TAMBÉM: Rocinha tem nove escolas fechadas e mais de 2,7 mil sem aulas.
— Não se pode esconder a realidade das crianças, mas elas
não precisam ficar expostas à violência de forma tão agressiva.
Processar a violência para uma criança é mais difícil porque ela está em
formação — analisou Marcia, acrescentando que crianças submetidas a
situações violentas tendem a ser mais assustadas, agressivas, a ter
distúrbios alimentares e dificuldade para dormir.
Localizada nesta terça-feira, a mãe das crianças, de 50
anos, não quis comentar o caso. Um vizinho contou que ela vive da venda
de colares e pulseiras artesanais para turistas que visitam a favela.
Com o dinheiro, ela não só sustenta os quatro filhos, mas também cuida
de três netos. Para não faltar nada à família, ela também recolhe
latinhas de alumínio para reciclagem.
A foto que retrata como a guerra na Rocinha impacta as
crianças da comunidade foi feita pelo repórter fotográfico José Lucena,
da agência Fotoarena. A rotina de tiroteios virou uma preocupação para
os pais das crianças. Leonora, de 12 anos, aluna do 4º ano na Escola
Municipal Francisco de Paula Brito, diz que sente muito medo quando os
confrontos começam. Ela diz que se esconde dentro de casa, na localidade
conhecida como Dionéia.
— Fico muito triste. Atrapalha meus estudos. Nessas horas,
fico torcendo para que os tiros acabem logo — disse a menina, que ontem
ia para o trabalho com o pai.
A neuropsicóloga do Solace Institute Paula Emerick observa
que “uma criança em contato com situações de violência intensa pode ter
mais propensão ao consumo de drogas”:
— A gente sabe que a droga tem um efeito anestésico, de tirar a pessoa da realidade.
Larissa, de 11 anos, que mora com cinco irmãos, conta como lida com a violência:
— Quando começa a confusão, pego minhas bonecas e fico
brincando. Isso me distrai. Eu não sei por que os tiros começam e nem
por que terminam — contou ela que estuda na Escola Municipal
Shakespeare, próximo ao Hospital da Lagoa.
Michele, de 14 anos, é nova na Rocinha. Chegou há cerca de
um mês de Fortaleza e estuda numa escola da Gávea. Ontem, ela, assim
como 2.769 estudantes de nove unidades da favela e do entorno, não
tiveram aulas. Michele lamentou a perda de um dia de estudo:
— Moro com uma tia e um irmão. Quando ela sai para
trabalhar, ficamos sozinhos. Aprendemos que não devemos ficar perto de
janelas durante tiroteios. Sinceramente, não sei o que fazer. Vim para
estudar, mas as aulas estão sempre suspensas. Eu e meu irmão ainda
estamos aprendendo a viver na Rocinha.
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