October 11, 2017

Infância marcada: uma cena difícil de esquecer

Rotina de mortes, que força meninos e meninas passarem próximos a cadáveres, pode prejudicar formação de filhos de moradores

 

 Desolador. De olhos vendados, crianças atravessam viela onde havia corpo ensanguentado - José Lucena / Estadão

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Um gesto de amor pelos filhos. Assim a psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)Marcia Ganime, especialista em psicoterapia da infância pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ, definiu a atitude da mãe das crianças, flagradas em foto publicada nesta terça-feira na primeira página do GLOBO, que resolveu cobrir os olhos dos filhos com peças de roupas para evitar que eles vissem, na manhã de anteontem, um corpo crivado de balas e coberto de sangue nas vielas da Rocinha, a caminho da escola. A cena expõe a violência que já faz parte da história de vida de milhares de crianças da favela.

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— Não se pode esconder a realidade das crianças, mas elas não precisam ficar expostas à violência de forma tão agressiva. Processar a violência para uma criança é mais difícil porque ela está em formação — analisou Marcia, acrescentando que crianças submetidas a situações violentas tendem a ser mais assustadas, agressivas, a ter distúrbios alimentares e dificuldade para dormir.

Localizada nesta terça-feira, a mãe das crianças, de 50 anos, não quis comentar o caso. Um vizinho contou que ela vive da venda de colares e pulseiras artesanais para turistas que visitam a favela. Com o dinheiro, ela não só sustenta os quatro filhos, mas também cuida de três netos. Para não faltar nada à família, ela também recolhe latinhas de alumínio para reciclagem.


A foto que retrata como a guerra na Rocinha impacta as crianças da comunidade foi feita pelo repórter fotográfico José Lucena, da agência Fotoarena. A rotina de tiroteios virou uma preocupação para os pais das crianças. Leonora, de 12 anos, aluna do 4º ano na Escola Municipal Francisco de Paula Brito, diz que sente muito medo quando os confrontos começam. Ela diz que se esconde dentro de casa, na localidade conhecida como Dionéia.

— Fico muito triste. Atrapalha meus estudos. Nessas horas, fico torcendo para que os tiros acabem logo — disse a menina, que ontem ia para o trabalho com o pai.

A neuropsicóloga do Solace Institute Paula Emerick observa que “uma criança em contato com situações de violência intensa pode ter mais propensão ao consumo de drogas”:

— A gente sabe que a droga tem um efeito anestésico, de tirar a pessoa da realidade.
Larissa, de 11 anos, que mora com cinco irmãos, conta como lida com a violência:


— Quando começa a confusão, pego minhas bonecas e fico brincando. Isso me distrai. Eu não sei por que os tiros começam e nem por que terminam — contou ela que estuda na Escola Municipal Shakespeare, próximo ao Hospital da Lagoa.

Michele, de 14 anos, é nova na Rocinha. Chegou há cerca de um mês de Fortaleza e estuda numa escola da Gávea. Ontem, ela, assim como 2.769 estudantes de nove unidades da favela e do entorno, não tiveram aulas. Michele lamentou a perda de um dia de estudo:

— Moro com uma tia e um irmão. Quando ela sai para trabalhar, ficamos sozinhos. Aprendemos que não devemos ficar perto de janelas durante tiroteios. Sinceramente, não sei o que fazer. Vim para estudar, mas as aulas estão sempre suspensas. Eu e meu irmão ainda estamos aprendendo a viver na Rocinha.

 

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