June 4, 2017

Professores sob vigilância contante


Professores dizem sofrer censura de pais e alunos nas salas de aula

Profissionais de educação são acusados de promover doutrinação ideológica


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Quando escolhe a roupa que usará durante um dia de aula, Miguel (nome fictício), professor de Português e Literatura de duas escolas privadas, deixa as camisas vermelhas de lado. Nas duas vezes em que as vestiu no trabalho, foi chamado pelos alunos de petista. Era brincadeira, mas ele não baixa a guarda. Os estudantes já se queixaram dos debates conduzidos por Miguel em sala sobre temas como racismo e homofobia. Outros docentes já passaram por situações mais dramáticas — tiveram trechos de aulas gravados e divulgados nas redes sociais, onde foram acusados de promover doutrinação ideológica. 
 
— A sala de aula é o reflexo da sociedade em muitos sentidos. A polarização é explícita, e o professor deve ser um mediador para que nenhuma voz seja calada — analisa Miguel. — Mas às vezes o aluno fica incomodado, caso a turma tome uma posição diferente à dele. Neste caso, o professor que media o debate fica com fama de doutrinador, e isso não pode acontecer.

Embora nunca tenha recebido queixas diretas dos pais de seus alunos, Miguel sabe que muitos podem ficar contrariados quando ele tenta expandir sua matéria. Alguns pais querem que os filhos aprendam quem é o escritor Graciliano Ramos, mas preferem ignorar a informação de que ele era comunista, por exemplo.

Atualmente, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei alinhados com o movimento Escola Sem Partido. Na Câmara dos Deputados e no Senado as proposições passam pela avaliação de comissões. Entre os tópicos estabelecidos pelos projetos, está a defesa da “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. As propostas proíbem ainda que os professores façam propaganda político-partidária e “incitem” alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas. No projeto que tramita no Senado, o texto menciona ainda que o poder público não se envolverá em questões relacionadas à orientação sexual e proíbe a aplicação da Teoria de Gênero nas escolas.

Além das proposições em âmbito nacional, há projetos parecidos em instâncias estaduais. O caso mais emblemático, relativo à “Lei da Escola Livre”, aprovada em Alagoas, chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em março, o ministro Luís Roberto Barroso concedeu liminar suspendendo a nova legislação. Em sua decisão, Barroso destacou a importância da liberdade de aprender e ensinar, e o pluralismo de ideias. A liminar de Barroso já está pronta para ser encaminhada ao plenário do STF, mas ainda não há previsão de quando será votada. Na mesma Corte, tramita ainda uma Ação de Inconstitucionalidade a respeito do mesmo projeto.

Auxiliar de coordenação de um colégio da Zona Sul do Rio, uma educadora que também não quis se identificar recebe e-mails com denúncias sobre o conteúdo transmitido nas aulas. É, segundo ela, um fenômeno recente, mas que forçou mudanças na linha pedagógica da instituição.

— A escola está com menos liberdade de atuação. Até dois anos atrás, podíamos fazer uma videoconferência sobre qualquer tema que estivesse acontecendo no mundo. Hoje, temos que mostrar à direção, submeter à aprovação dos pais, analisar com que série vamos trabalhar — revela. — As famílias tinham mais confiança em nós. O medo da esquerda está fazendo os pais conservadores buscarem colégios tradicionais.

De acordo com o Sindicato Estadual de Profissionais de Educação do Rio, os pais de alunos estão sendo motivados “por parlamentares de direita” a processarem professores que participem de greves. Os estudantes, por sua vez, são estimulados a gravar o conteúdo de docentes considerados “de esquerda”. Foi o caso de Valéria Borges, que dá aulas de História em um colégio estadual em Niterói.

Em um áudio de pouco menos de três minutos, Valéria diz para alunos do 3º ano do ensino médio que a maioria dos seguidores do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) é “asquerosa, nojenta, homofóbica, racista, preconceituosa”. A professora também é acusada de traçar um paralelo entre os eleitores do parlamentar e os jovens militantes do ditador Adolf Hitler — embora ela diga que “a questão do seguidor do Bolsonaro é diferente do seguidor de Hitler”.

— Foram dois minutos e 44 segundos descontextualizados de uma exposição de 40 minutos sobre regimes totalitários — explica. — Alguns alunos me disseram no intervalo da aula que eu estava sendo gravada. Eles e outros professores me deram apoio.

O vereador Carlos Jordy (PSC), que divulgou a gravação em uma rede social, considera que Valéria e diversos professores “violam princípios constitucionais sob o escudo da liberdade de expressão”.

Valéria: fala sobre Bolsonaro foi gravada por estudante - Analice Paron

— A liberdade de expressão é para o Facebook e o botequim ou em qualquer outro lugar em que o professor não tenha a audiência cativa dos alunos — diz Jordy. — Os alunos estão sendo manipulados e influenciados. Quem expõe opinião contrária é mandado para fora da sala.

Para o sociólogo da UFRJ Paulo Baía, as diretrizes defendidas pelo Escola Sem Partido vão contra a produção de conhecimento:

— Essa prática da intolerância acaba ferindo a liberdade de cátedra e expressão. Todos têm direito a uma liberdade de manifestação como têm direito ao contraditório. Toda ação de cercear isso é uma ação de censura e que atenta contra a produção de conhecimento. É uma ação para cortar o pensamento crítico. É a imposição de um pensamento acrítico, pré-definido, que vai formar cidadãos sem capacidade de análise e comparação.

Há dez anos nas salas de aula, uma professora que preferiu não se identificar conta que a sensação de vigilância durante as aulas cresceu exponencialmente nos últimos anos. De acordo com ela, o acirramento dos ânimos na sociedade contribuiu para que os estudantes levassem o embate para a escola.

— Trabalho com produção de texto, então, inevitavelmente discussões ideológicas são muito recorrentes na minha aula. Em vários momentos me sinto pressionada. Fico constantemente me policiando para que em momento nenhum eu fale algo que possa ser mal interpretado. Sinto a questão da vigilância e me sinto limitada quando produzo determinados materiais — afirma.

DIREITOS HUMANOS EM DISCUSSÃO

Responsável pelas aulas de redação de uma escola particular do Rio, a professora diz que os temas censurados por alunos e pais chegam a assuntos que deveriam ser do interesse de todos, como os direitos humanos.

— É uma questão de resistência continuar levantando a discussão e evitando que haja esse tipo de reducionismo. A confusão que existe de que discutir direitos humanos é uma posição de esquerda é muito complicada para a promoção da cidadania. Muitos alunos não querem falar sobre o tema por vê-lo como uma pauta da esquerda. Entender que essa discussão é humana e independe de partido é primordial para que tenhamos espaço de sala de aula para trabalhar questões fundamentais.

No site do movimento “Escola Sem Partido”, uma aba chamada “Flagrando o doutrinador” estabelece comportamentos dos professores que os alunos podem identificar como doutrinação. Cita, por exemplo, o tópico “se desvia frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional”. Em outra parte do site, o “Planeje sua denúncia” ensina os alunos a registrarem falas dos professores que sejam “representativas da militância política e ideológica”, entre outros pontos. O GLOBO entrou em contato com Miguel Nagib, idealizador do movimento, que não quis dar entrevista.

Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Fernando Penna argumenta que o Escola Sem Partido distorce as funções da escola.

— Eles dizem, por exemplo, que uma pessoa pode estar sendo vítima de doutrinação quando o professor desvia da matéria para falar sobre o noticiário. Dialogar com a realidade do aluno é algo corriqueiro em sala de aula, e, muitas vezes, isso é uma demanda dos alunos. É um projeto que elimina a dimensão educacional da escola — diz.

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