Dorrit Harazim, O Globo
Difícil dizer qual a imagem mais aterradora. A maciça torre residencial envolta em labaredas, com seus 24 andares de vida interior em desespero, iluminando a noite londrina de horror, gritos, sirenes e impotência. Ou a mesma estrutura, à luz do dia, eviscerada, de pé feito túmulo silencioso. Uma assombração sombria.
Ambas também podem ser olhadas como monumento, ou ruína, da ideologia de combate a regulamentações na área de proteção social. Uma das pedras de toque dos governos neoliberais reza que normas reguladoras impedem a liberdade e prejudicam a produtividade. Na Inglaterra, um dos atrativos do Brexit foi acenar com menos normas impostas pela União Europeia, menos inspeções, mais independência para encontrar atalhos.
Três anos atrás, o ministro da Habitação, Brandon Lewis (hoje ministro da Imigração de Theresa May), rejeitou a proposta que obrigaria construtoras a instalar sprinklers anti-incêndio em futurasn edificações. Deixou ao senhorio a opção de fazê-lo ou não, e vetou a medida como parte do plano May de combate à burocracia. “Introduzimos a regra ‘entra uma, saem duas regulamentações’, segundo a qual sempre que o governo adotar uma nova norma, vamos identificar duas existentes, e extingui-las”, explicou.
O conjunto habitacional de baixa renda Grenfell Tower foi erguido em 1974 na parte pobre do Royal Borough of Kensington and Chelsea — ou seja, fora das vistas, mas não tão distante, do setor nobre do distrito onde oligarcas russos e fortunas árabes compram as propriedades (com sprinklers) mais cobiçadas.
Estima-se que nos 120 apartamentos do Grenfell moravam cerca de 600 pessoas. Não se sabe o número exato, pois formavam o típico grupo de gente de raças, origens e dificuldades variadas que pode abrigar cinco ou mais sob o mesmo teto.
Também o número de mortes continua indefinido. De início falou-se em 17, sendo os adultos que saltaram para a morte ou as crianças jogadas da janela os primeiros identificados. Nos dias seguintes, o número já havia saltado para 50, porém ainda é muito provisório. Devido à ferocidade das chamas, uma identificação a curto prazo será difícil. A procura por desaparecidos, também, pois muitos moradores falam inglês precário, temem se apresentar às autoridades. A agonia da incerteza está longe do fim.
Em torno de um dado, porém, parece haver consenso: a causa. Reformado no ano passado para retirar-lhe o visual de espigão social de concreto, e ao mesmo tempo diminuir-lhe o consumo de energia, o Grenfell teve seus dois mil metros quadrados de paredes externas revestidas com painéis de alumínio Reynobond.
Segundo o fabricante dos painéis, o modelo escolhido para a reforma era o único a conter polietileno (plástico), portanto inflamável. Cada unidade custou duas libras esterlinas (R$ 8,50) menos do que os outros dois modelos de alumínio, resistentes a fogo. Assim, pelos cálculos do “The Times” londrino, a incorporadora do edifício fez uma economia de pouco mais de £ 5 mil ao escolher um revestimento proibido nos Estados Unidos em prédios de mais de 12 metros de altura, considerados “inflamáveis” na Alemanha e causa de incêndios em quatro outros países.
Existem perto de quatro mil conjuntos habitacionais semelhantes ao Grenfell na Grã-Bretanha, dezenas deles reformados e revestidos de placas contendo plástico. Imagine-se o estado de ansiedade em que se encontra essa população de inquilinos.
Não que o sentimento de abandono e insegurança seja novo nessas habitações populares. Já em 1999 um relatório parlamentar intitulado “Potencial Risco de Disseminação de Incêndio Causado por Sistemas de Revestimento Externo” alertava para o perigo. Com sinistro presságio final: “Não desejamos que seja necessário ocorrer um incêndio de grande porte, com muitos mortos, para a adoção de medidas razoáveis visando diminuir o riscos”, concluía o levantamento de 18 anos atrás. Nada foi feito.
Em 2013, esse relatório ignorado voltou à pauta com o incêndio no conjunto habitacional Lakanal House, situado no sul de Londres. Nele haviam morrido três mulheres e três crianças. À época, a juíza Frances Kirkham recomendara a instalação de sprinklers nas moradias sociais verticais, e foi igualmente ignorada
.
Também basta entrar na página eletrônica do Grupo de Ação dos moradores de Grenfell para ver que as autoridades do distrito, a agência responsável pela manutenção do prédio, e o senhorio receberam pelo menos dez solicitações de ajuda. Tudo em vão. Com esse pano de fundo, a primeiraministra Theresa May achou prudente esquivar-se da indignação dos moradores. Foi ao local da tragédia, mas limitou seu engajamento aos bombeiros, médicos e serviços de emergência. Estava devidamente escoltada e prometeu um “inquérito profundo para apurar as responsabilidades”
Já a rainha nonagenária e o prefeito trabalhista Sadiq Khan encararam o horror mais de frente. A monarca foi levar conforto à comunidade abalada, coisa que sabe fazer como ninguém — mesmo que sejam apenas palavras. O prefeito materializou-se sem qualquer escolta, expôs-se à indignação popular e procurou responder à cobrança maior — respostas urgentes, já.
Do outro lado do Atlântico, o presidente Donald Trump acaba de nomear Lynne Patton para dirigir o Serviço Federal de Moradias Sociais de Nova York — o maior braço regional do Ministério de Habitação. Patton jamais pôs os pés em alguma moradia de baixa renda. É organizadora de eventos, sobretudo de torneios de golfe da rede Trump, e foi cerimonialista do casamento de Eric, filho caçula do presidente.
O posto estava vago desde janeiro. Para uma cidade como Nova York, onde 400 mil pessoas ocupam moradias sociais e outros 235 mil recebem subsídios no aluguel, mau sinal. Como diz o “The Guardian” em editorial, “o que é chamado de burocracia muitas vezes consiste na proteção pública essencial para a salvaguarda de vidas, do futuro e do mundo”.
Ilustração André Mello
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