June 16, 2017

Histórias que se encontram entre os moradores de rua




Sono às claras. Senhor dorme dentro de uma agência bancária na Avenida Graça Aranha, que concentra dezenas de moradores de rua durante a noite - Alexandre Cassiano / Agência O Globo

Márcio Prado, de 42 anos, é de Macaé. Vende livros e objetos reciclados nas ruas de Botafogo. A terra natal de Marcos Antônio de Oliveira, de 43, é Bom Jesus do Itabapoana, mas ele vive de bicos no Centro do Rio. Vindos do interior do estado, os dois chegaram à capital atrás das oportunidades nas obras da Olimpíada de 2016. Acabaram no sereno, sem trabalho formal. Vagam sem teto levando algumas das características mais comuns entre os moradores de rua da cidade.

De acordo com o perfil dessa população traçado pelas equipes de abordagem da Secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Márcio e Marco Antônio estão na faixa etária predominante entre os que não têm lar, dos 25 a 59 anos — que, no fim de 2016, eram 11.234 (78,67% do total). Os dois são negros, e, segundo a prefeitura, pretos e pardos somam 11.292 (79,08%) das pessoas que vivem nas ruas. Além disso, nasceram fora do município do Rio, como 6.778 (47,47%) dos que perambulam pela cidade. Alheios aos números, têm, entre si, outra coisa em comum: dizem que só voltam para casa de cabeça erguida.

— Não sou um cara que desiste, não. Acredito que dará tudo certo. Sou pedreiro, desenho, pinto... Vou arrumar trabalho. Por enquanto, meus parentes não sabem de minha situação. Não quero que eles saibam. A rua é violenta, as pessoas não se entendem bem — diz Marcos Antônio.
Márcio é da mesma opinião:

— Desde que cheguei, trabalhei numa lanchonete, num quiosque na praia e como auxiliar de obras. Vou conseguir. O mais difícil é a saudade de casa. Mas agora não vou voltar, não. Assim, humilhado, de forma alguma.

Enquanto não alcançam seus objetivos, os dois levam a vida “no corre”, o que, no linguajar das ruas, significa um trabalho informal, muitas vezes com duração de algumas horas. E sem “manguear”, ou seja, sem pedir esmolas. Mas, nesse caso, destoam da maioria. Só 17,72% (2.530) moradores de rua têm alguma ocupação. Os outros 82,28%, não.

Novato: há três meses na rua, Fabiano lê um livro deitado no chão, em Copacabana - Alexandre Cassiano / Agência O Globo

Por uma trilha parecida com a dos dois segue Fabiano de Azevedo, de 32 anos. Faz três meses que ele vive sem lar, só que por uma decisão voluntária, depois de se desentender com a família e de largar o trabalho de garçom em Maricá. Passou pelo Centro, pelo Aterro e, agora, vive nas calçadas de Copacabana. De noite, sua maloca fica nas proximidades da Praça Serzedelo Correa, onde aproveita as horas vagas para ouvir música num radinho e ler — ganhou livros de uma ONG. De dia, bem cedo, vai para a praia, onde conseguiu um bico num quiosque. Alguns dias, consegue ganhar até R$ 80.

— Assim como eu, aqui, em Copacabana, muitos moradores de rua vivem “no corre”. Não nos preocupamos com comida nem com produtos de higiene pessoal porque recebemos doações. Por isso, meu grande receio é me acostumar com a rua. Não quero. Vou juntar os trocados que ganho para tentar alugar logo um cantinho — diz Fabiano.

EM CADA BAIRRO, CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS

De fato, ter alguma ocupação é um dos aspectos que marcam a população de rua do bairro, afirma Jonathan Marques, coordenador da equipe de abordagem especializada da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. Há anos tentando convencer grupos a irem para abrigos, ele consegue traçar uma geografia particular do Rio.

Histórias. Márcio é um dos vendedores de livros das ruas de Botafogo - Alexandre Cassiano / Agência O Globo

Normalmente, diz Jonathan, a porta de entrada de quem fica sem lar é o Centro, que concentra a maior quantidade de moradores de rua (2.638, ou 18,47% do total). Recentemente, no entanto, com o Programa Centro Presente, Jonathan afirma que houve uma migração de parte deles para bairros próximos. De forma geral, adolescentes , grande parte usuários de drogas, deslocaram-se para Botafogo e Laranjeiras. Adultos optaram por Copacabana — bairro que, no fim de 2016, ocupava o segundo lugar no ranking da população de rua, com 928 pessoas (6,5% do total).
Número de moradores de 
Ainda na Zona Sul, a Glória costuma concentrar aqueles que vendem objetos nas calçadas. Na Zona Oeste, eles procuram pontos movimentados como a rodoviária de Campo Grande e o calçadão de Bangu. Na Zona Norte, o entorno de bairros como Madureira, Jacaré e Bonsucesso concentra usuários de drogas, principalmente nas proximidades de favelas que vendem crack.

As drogas também são o maior problema da população de rua na Zona Portuária e na Lapa. Em Cascadura, a principal questão é o alcoolismo. Entre os que falam sobre o assunto, as justificativas para o vício variam muito, porém boa parte afirma que o consumo é uma forma de amenizar a fome, o frio e a tristeza. No levantamento da secretaria, 76,77% (10.962 pessoas) declararam utilizar algum tipo de substância, lícita ou não. Cachaça é a mais comum. Maconha, cocaína, tíner e crack também aparecem na lista.

Mulher dorme sentada em ponto de ônibus de Copacabana - Alexandre Cassiano / Agência O Globo

ABRIGO PARA GRÁVIDAS
Foi justamente para abrigar usuárias de drogas grávidas ou que tiveram filhos recentemente que a prefeitura inaugurou, na semana passada, um abrigo em Campinho. Erika Alves Mendonça, de 36 anos e no sexto mês de gestação, foi a primeira a chegar. Antes, viveu uma trajetória de turbulências. Aos 17 anos, caiu no vício. Iniciou com a maconha; depois, o álcool e a cocaína. As desavenças com o padrasto pioraram tudo. E assim começaram as estadas na rua. Teve quatro filhos, nenhum deles criado por ela. Foi abusada sexualmente duas vezes. A última passagem ao relento completaria um ano este mês: dormia em frente ao Hospital Souza Aguiar, no Centro.
— Não desejo uma gravidez na rua nem para um cachorro. Sofri todo tipo de preconceito. As pessoas me chamavam de mendiga e cracuda porque hoje em dia, para a sociedade, todo mundo que dorme na calçada é viciado em crack — diz Erika, cuja família vive no Morro da Formiga, na Tijuca. — O mais difícil é voltar para casa. Bate a vergonha dos parentes e dos vizinhos.

Secretária municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Teresa Bergher reconhece a dificuldade de lidar com a questão. Ela defende que não adianta a prefeitura acolher essa população sem inseri-la socialmente e no mercado de trabalho. Teresa diz que vem buscando parcerias para a capacitação dos abrigados. Além disso, ressalta a retomada de um programa que patrocina a volta à terra natal daqueles que quiserem (este ano, 60 pessoas foram beneficiadas). Ela vem fazendo mudanças na estrutura da secretaria, como as abordagens na rua sempre acompanhadas por assistentes sociais, mas admite haver problemas e afirma que encontrou uma rede de abrigos em péssimas condições.

— Realmente, ficou defasado o número de abrigos e de funcionários quando se tem um aumento tão absurdo na população de rua. No entanto, vale lembrar que quantidade não é sinônimo de qualidade. Desde o início da nossa gestão, estamos investindo na capacitação dos agentes — garante a secretária.

JOVENS NAS RUAS

Um bom trabalho social pode ser o divisor de águas na vida de todos, sobretudo das 129 crianças e dos 396 adolescentes que vivem nas ruas, segundo a estimativa da prefeitura. Pode ajudar jovens como Rafaela dos Santos, de 19 anos, e Lucas Mendes, de 20, a darem uma guinada. Ambos vivem nas ruas e têm o sonho de se tornarem cantores. Ela, na adolescência, passou por vários abrigos da cidade. Agora, depois de completar 18 anos, dorme nas imediações da Praça da Cruz Vermelha. Ele saiu de casa, na comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, há um ano, depois de uma briga com a família. Dorme nas esquinas de Ipanema, onde conseguiu trabalho numa banca de jornais. Ainda lembra dos detalhes de seu primeiro dia na rua.

— Quando cheguei ao Rio, fui a Copacabana, deitei na areia da praia e pensei se conseguiria ter o que comer no dia seguinte. Eu ainda me preocupo com isso porque não nasci para roubar nem para traficar. Mas tenho um trabalho e componho minhas músicas. Um dia vou chegar lá.

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