March 6, 2016

O sonho esmorece, em um dia triste


Ancelmo Gois

Lula, acho, colhe o que plantou. O que ele fez é feio, embora não seja novo aqui na Terra. Ele aceitou favores pessoais milionários de empreiteiras. Não há almoço grátis, ainda mais com essa turma do cimento. A conta, pode crer, foi incluída no preço de uma obra pretérita ou futura. Foi o meu, o seu, o nosso dinheiro que bancou a reforma do apartamento de Guarujá e do sítio de Atibaia.

Insisto: muitos dos que o acusam já fizeram a mesma safadeza. Mas a promiscuidade dos outros não o absolve. Pelo contrário, acho. Frustra corações e mentes de milhões de brasileiros, notadamente dos mais jovens, que acreditaram num projeto generoso e socialmente inclusivo do PT. E frustra, principalmente, quem acreditou neste retirante nordestino que venceu desafios gigantes e chegou a comandar a sétima maior economia do planeta.

Ao chegar ao poder, em 2003, Lula encantou o Brasil e o mundo ao manter a política econômica do governo anterior e, com a casa arrumada por FH, acelerar as políticas sociais. Fez isto sem deixar de ser o Lula de sempre. Aquela foto dele carregando um isopor na base naval de Aratu, na Bahia, ilustra o que quero dizer. E isto num país em que as pessoas, quando ficam ricas, passam a jogar tênis e golfe (nada contra, mas estes não são os esportes preferidos dos jovens do sertão pernambucano).

O encanto com Lula fez até esquecer defeitos velhos. Ele não poderia ter aceitado a Bolsa Ditadura por ter ficado 31 dias na prisão, em 1979. Até para evitar ouvir de Millôr “Que dizer que aquilo não era ideologia, era investimento”.

Também não deveria ter deixado dona Marisa, assim que chegou ao Palácio do Planalto, fazer um canteiro de flores imitando a estrela do PT.

Aquele é um imóvel público, e não de um partido. Foi o ovo da serpente, que sinalizou em seguida o aparelhamento da máquina pública pelo PT e aliados.

Ainda assim, acho, ontem foi um dia triste. Se o sonho não morreu, esmoreceu. Não sei o que pensa hoje FH. Mas, em julho, em entrevista à revista alemã “Capital”, o tucano, mesmo achando impossível que Lula não soubesse de nada, ponderou: “Lula é um líder popular. Não se deve quebrar esse símbolo, mesmo que isso fosse vantajoso para o meu próprio partido.”

O GLOBO, 5 DE MARÇO DE 2016 

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