UM ESTUDO MOSTRA OS EFEITOS
SOCIAIS E CULTURAIS DOSINFLUENCERS
DO EMPREENDEDORISMO
p o r A N D R É B A R R O C A L
O Brasil é campeão mun-
dial de empregadas do-
mésticas. De um lado, a
atividade oferece sus-
tento a milhões de brasi-
leiras de baixa renda. De
outro, é uma herança es-
cravocrata. Em setembro,
havia 5,8 milhões de diaristas, segundo
o IBGE. Três em cada quatro trabalha-
vam sem carteira assinada. O ganho mé-
dio da categoria é inferior ao salário mí-
nimo, 1,2 mil reais por mês. Compreen-
sível que muitas tentem melhorar de vi-
da ao se apresentarem como mais do que
uma doméstica: uma personal cleaner, ou
“limpador pessoal”, em tradução literal.
É o caso de Adriana Serrano, de São Pau-
lo, e de Simone Lima, do Rio de Janeiro.
As duas oferecem seus serviços no Ins-
tagram. Adriana tem 2.119 seguidores e
Simone, 456 seguidores. “Se você procu-
ra qualidade é só me chamar, agora, se
procura quantidade, vai procurar outra.
Eu sei o que eu entrego, meu serviço tem
valor e não preço”, diz Adriana em uma
publicação. Em um post, Simone conta
que emprega “multiuso com diluição e
rodo limpa vidros”. Levar o próprio kit
de limpeza para a faxina faz parte da ten-
tativa de valorizar-se enquanto personal
cleaner, assim como a propaganda de que
não se oferece uma mera limpeza, mas
ergonomia, o arranjo de um ambiente de
modo a proporcionar mais bem-estar e
conforto a quem o frequenta.
A dupla de personal cleaners ilustra
o papel crescente das redes sociais no
mercado de trabalho e no avanço do em-
preendedorismo. Um estudo desenvolvi-
do por uma equipe liderada pela antro-
póloga gaúcha Rosana Pinheiro-Ma-
chado, professora na University College
Dublin, na Irlanda, identificou “uma mi-
gração em massa” para as redes sociais,
em especial o Instagram, algo acelerado
pela pandemia de Coronavírus de 2020.
“Essa mudança para o empreendedoris-
mo digital é um fenômeno relativamen-
te novo, que está remodelando drastica-
mente tanto os setores formais quanto
os informais de trabalho”, conclui o es-
tudo. “Uma reestruturação sem prece-
dentes e profunda das dinâmicas labo-
rais no Brasil.”
O estudo, que deve ser publicado nes-
te mês com o título Mídias Sociais como
Plataforma de Trabalho Digital, traz su-
gestões de políticas públicas. O motivo é
a constatação de que há perigos sociais,
psicológicos e políticos decorrentes da
“plataformização” do trabalho. Entre
os riscos estão aspirações irrealistas
potencial frustração por quem mergu-
lha no Instagram com a esperança de fi-
car rico da noite para o dia. Os pesqui-
sadores montaram uma base de dados
com 1 milhão de perfis no Instagram
criados por aspirantes a empreendedo-
res. Gente com no máximo 5 mil seguido-
res e que trabalha com revenda de produ-
tos fitness e bem-estar, venda de comida
(sanduíches, salgados, bolos, doces), pe-
quenos varejos (roupas e eletrônicos), ar-
tesanato, beleza (unhas, cabelo, maquia-
gem) e limpeza (diaristas empreendedo-
ras). De representantes desse público os
pesquisadores ouviram vários relatos de-
cepcionados com a estagnação de vida,
com o sucesso não alcançado.
Essa massa de 1 milhão de perfis
constitui o que o estudo clas-
sifica de “base da pirâmide”.
Dados do IBGE permitem uma
ideia sobre esse público. Nos le-
vantamentos mensais feitos pe-
lo instituto sobre o mercado de trabalho,
um dos grupos descritos é o “trabalha-
dor por conta própria”. Trata-se, na des-
crição do instituto, de “pessoa que tra-
balha explorando o seu próprio empre-
endimento, sozinha ou com sócio, sem
ter empregados e contando, ou não, com
a ajuda de um trabalhador familiar auxi-
liar”. Em setembro, último dado disponí-
vel, havia 25,3 milhões de brasileiros nes-
sa situação. É como se um em cada qua-
tro trabalhadores se virasse por conta. A
grande maioria (74%, ou 18,9 milhões) é
de informais, não possui CNPJ. A renda
média do trabalhador por conta própria
é de 2,6 mil reais por mês, o equivalente
a 83% da média geral de quem tem algu-
ma ocupação. Sem CNPJ, é ainda pior: 1,9
mil, ou 63% da média geral.
Enquanto a base da pirâmide empre-
endedora no Instagram se frustra, suces-
so e riqueza ficam com o topo. O que não
surpreende, dada a histórica desigual-
dade nacional. Recorde-se: em 2019, a
ONU apontou o Brasil como vice-cam-
peão mundial de concentração de renda
no 1% mais rico, atrás apenas do Catar.
A pirâmide do empreendedorismo-me-
ritocrático funciona mais ou menos as-
sim. Na base, estão trabalhadores de bai-
xa renda, que entram no Instagram para
vender a força de trabalho. À medida que
conseguem mais serviços e seguidores,
ocorre uma transição. O trabalho origi-
nal em si perde terreno, enquanto o in-
divíduo se torna propagandista de mar-
cas e produtos e vendedor de um método
de atuação na rede social. A turma do to-
po pertence a esse último tipo. São perfis
com mais de 200 mil seguidores.
O estudo sobre a plataformização do
trabalho debruçou-se sobre o perfil de
outros 562 perfis do topo, considerados
“influenciadores digitais”. Influencers
são uma mistura de garoto-propaganda
e guru de autoajuda. Ganham dinheiro
com publicidade disfarçada ou escanca-
rada de marcas e produtos, com venda de
cursos sobre como subir na vida etc. Uma
pesquisa de 2022, feita por uma multina-
cional especializada em dados e informa-
ções, a Nielsen Media Research, apontou
o Brasil como recordista de influenciado-
res no Instagram, 10,5 milhões, o tama-
nho da população de Portugal. Quando
o YouTube e o TikTok entravam na con-
ta, eram 13 milhões de influencers, e aí o
País era medalha de bronze.
É tanta gente dedicada a ser
influenciador digital que a atividade foi
reconhecida pelo Ministério do Trabalho
em fevereiro de 2022, tempos de Jair
Bolsonaro. À época, o governo inseriu-a
na Classificação Brasileira de Ocupações,
lista de uso estatístico e administrativo.
Logo após a inserção, pipocaram no
Congresso projetos destinados a dar um
passo além e regulamentar a profissão,
ou seja, estabelecer direitos e obrigações.
A iniciativa é apoiada pela, digamos,
categoria, a julgar por uma pesquisa
deste ano feita por uma empresa que
atua no ramo do marketing digital, a
Influency.me. Por esse levantamento,
96% dos influenciadores entrevistados
consideram que exercem uma profissão
e 80%, que ela merece regulamentação.
Todos os projetos existentes na Câma-
ra dos Deputados estão na Comissão do
Trabalho, aos cuidados de Clodoaldo Ma-
galhães, do PV de Pernambuco. São bas-
tante similares. Descrevem o que é um
influenciador digital, definem compor
tamentos a ser seguidos (atitude ética,
respeito à privacidade e à honra de tercei-
ros, respeito a direitos autorais) e proí-
bem outros (perseguir ou discriminar
por motivos políticos, religiosos, raciais
e de gênero). Um dos projetos, de autoria
de Rafael Prudente, do MDB do Distrito
Federal, trata especificamente do “cria-
dor de conteúdo” e é o mais detalhado.
Para exercer a atividade, define a propos-
ta, o criador precisa ter mais de 16 anos,
CPF e regularidade fiscal, estará sujei-
to a processo cível e criminal, caso pro-
voque danos a terceiros, e deve “respei-
tar as normas de conduta ética e moral”.
Ética não é o forte do topo da pirâmide
empreendedora no Instagram, aqueles
562 perfis examinados por Rosana
Pinheiro-Machado e sua equipe. “O
ecossistema de empreendedorismo di-
gital é dominado por um pequeno gru-
po de influenciadores conectados em re-
de que controlam o mercado e, muitas ve-
zes, se envolvem em práticas antiéticas”,
afirma o estudo. É essa rede que faz do
Brasil um caso único no mundo, na ava-
liação da antropóloga. “Influenciadores
muitas vezes produzem postagens de éti-
ca questionável, seja por disfarçar a in-
tenção de vendas, por promessas irreais
de enriquecimento ou por textos publici-
tários que apelam para o medo, a vergo-
nha e a culpa”, prossegue o documento.
Joel Jota, de 43 anos, foi nadador e ho-
je é um dos maiores influencers do Ins-
tagram. Seu perfil tem 5,5 milhões de
seguidores. Ele quase foi um dos padri-
nhos da delegação brasileira que dispu-
tou a Olimpíada de Paris neste ano. Ha-
via sido convidado pelo Comitê Olímpi-
co Brasileiro, o COB. Desistiu após ter re-
cebido muitas críticas por se apresentar
como um atleta de um nível que ele ja-
mais alcançou de fato. Foi chamado de
“charlatão”, inclusive. “O problema está
na mentira. Não existe problema algum
em não ter chegado à Seleção (olímpica
de natação) ou não ser atleta de ponta. A
questão aqui é que esse cidadão vende o
que não foi. E vou além, ele não é psicólo-
go”, declarou publicamente Joanna Ma-
ranhão, uma das mais celebradas nada-
doras do País, quinto lugar em uma das
provas da Olimpíada de 2004, em Atenas.
Bettina Rudolph é outro caso de éti-
ca duvidosa, ao menos no passado. Aos
27 anos, possui 1,2 milhão de seguidores
no Instagram. Gosta de “riqueza osten-
tação”, uma das marcas dos influencers
brasileiros do Instragram, atitude que
contribui para criar ilusões na base da pi-
râmide. “Gastei 23 mil reais em vinho”,
publicou na rede social recentemente. “O
que alguns chamam de ‘ganância’ eu cha-
mo de não aceitar viver na mediocrida-
de”, dizia em outro post. Bettina ficou fa-
mosa em 2019 como estrela de um vídeo
de uma dessas empresas do dito “merca-
do”, a Empiricus. Nele, dizia ter acumu-
lado mais de 1 milhão de reais em três
anos, com um investimento inicial de só
1,5 mil. O Procon pediu à polícia uma in-
vestigação criminal contra a Empiricus
por propaganda enganosa. Algum tempo
depois, Bettina gravaria outro vídeo para
pedir desculpas pelo anterior.
O“topo” da pirâmide empre-
endedora-meritocrática no
Instragram é dominado por
uma visão política de extre-
ma-direita. Segundo o estu-
do a respeito de plataformi-
zação do trabalho, 87% dos influencers
professam ideias do gênero. Dois exem-
plos citados no documento: “hiperindi-
vidualismo” e “crença generalizada em
uma forma distorcida de meritocracia”.
Significa que os influenciadores ignoram
que os seguidores vivem em sociedade e
experimentam problemas comuns que
requerem soluções coletivas. Se o indi-
víduo enfrenta dificuldade, é culpa de-
le e só dele, e para contorná-la só cabe a
ele. Qual seria o motivo desse domínio
da extrema-direita? “Os que chegaram
primeiro (ao Instagram) constituíram
um campo, o campo de Pablo Marçal”
diz Pinheiro-Machado, para quem a es-
querda deveria deixar de encarar o “em-
preendedorismo” como tabu.
Marçal foi candidato a prefeito de São
Paulo em outubro pelo nanico PRTB. Fi-
cou a apenas 57 mil votos de ir ao segun-
do turno em uma cidade de 11 milhões de
moradores. Logo à sua frente, Guilher-
me Boulos, do PSOL. O que se vê no Ins-
tagram enquanto ecossistema domina-
do pela extrema-direita sugere que era
impossível Boulos conquistar eleitores
de Marçal no duelo final contra o prefei-
to Ricardo Nunes, do MDB. Nem mesmo
a li-e da qual o deputado participou com
o coach em 25 de outubro, antevéspera
do pleito, tinha condições de virar o jo-
go. Um dia após a “sabatina”, uma pesqui-
sa Datafolha indicou que 76% dos eleito-
res marçalistas votariam em Nunes, re-
eleito com folga.
No dia do anúncio do vence-
dor da eleição nos Estados
Unidos, a quarta-feira 6,
Wendell Carvalho, um dos
maiores influenciadores di-
gitais do Brasil, 9,2 milhões
de seguidores no Instagram, escreveu
na rede social: “Donald Trump é eleito
presidente dos EUA. É, companheiro...
sem TSE não vai”. O texto era acompa-
nhado de uma foto do presidente Lula, o
aludido “companheiro”. Na eleição bra-
sileira de 2022, Carvalho tinha decla-
rado apoio público a Bolsonaro. Paulo
Guedes, ministro da Economia no go-
verno do capitão, será um dos palestran-
tes de um evento periódico que o influen-
ciador promove para ensinar a enrique-
cer e a ter uma “vida épica”, um de seus
bordões. O evento Imersão Million, se-
rá de 6 a 8 de dezembro, em São Paulo.
Há três ingressos diferentes, ao preço de
1.697 reais, 2.997 reais e 6.997 reais ca-
da. O mais caro dá direito a um tête à tête
com o coach. Em sua página pessoal na
internet, Carvalho afirma ter treinado
340 mil alunos e faturado 450 milhões
de reais em seis anos. Obra que ele, um
evangélico, acredita ser divina. “Tudo é a
graça de Deus”, diz em um de seus vídeos.
Religião, conservadorismo e valores
familiares são outra marca da visão e do
estilo de vida dos influenciadores digitais
do topo da pirâmide. A gaúcha Andressa
Mallinski, de 28 anos, vende-se como
“leoa” em seu perfil no Instagram, de 288
mil seguidores. Ela promove um evento
similar ao de Carvalho, o “Leoa Expe-
rience”, cuja próxima edição será entre
16 e 17 de novembro, em Porto Alegre.
São dois tipos de ingressos: de 1.997 e de
2.334 reais. Pelo que se vê nas imagens da
edição de 2023, o evento lembra um cul-
to religioso. O site que o descreve traz, in-
clusive, um “aviso médico”, em razão do
“forte impacto emocional” sobre as par-
ticipantes. Mallinski também é aberta-
mente de extrema-direita. Participou há
dois meses de um ato de Bolsonaro em
São Paulo, no qual o ex-presidente pe-
dia anistia aos condenados pelo quebra-
-quebra de 8 de janeiro de 2023 em Bra-
sília. “Lutando nesse 7 de Setembro pa-
ra salvar o que ainda não está perdido.
Minha ideologia é fundamentada em li-
berdade, trabalho duro e conquista. Não
em ladrão e invasor que manipula o po-
vo com esmola”, escreveu no Instagram.
A cearense Lívia Brasil, de 29 anos, é
do mesmo ramo, e com mais alcance. Seu
perfil no Instagram tem 1,7 milhão de se-
guidores, razão para ter aparecido em
2023 numa lista da revista *orbes com
os maiores influencers do Brasil. Em 23
e 24 de novembro, promoverá um “Fes-
tival das Imparáveis”, com o mesmo ob-
jetivo do “Leoa Experience”: ganhar di-
nheiro com a venda de um método capaz
de fazer mulheres enriquecerem. Esteve
recentemente em Mônaco e publicou um
post ostentação: “São 12 mil milionários
morando nessa cidade, imagina o nível
das conversas e crescimento? Eu só pu-
de chegar a lugares assim porque inves-
ti em sentar nas mesas certas e apren-
der com quem tava na minha frente”. Em
outro post, uma ex-aluna, Taiana Disaro,
afirma ter largado um emprego CLT em
um banco para ser rica de outra forma.
O ESTUDO
COORDENADO POR
ROSANA PINHEIRO
MACHADO APONTA
PERIGOS SOCIAIS,
PSICOLÓGICOS
E POLÍTICOS
DECORRENTES DA
“PLATAFORMIZAÇÃO”
DO TRABALHO
A carteira de trabalho é satanizada
no ecossistema do Instragram, em es-
pecial pela turma do topo, conforme o
estudo sobre plataformização do traba-
lho. “O mundo do marketing digital re-
força uma perspectiva na qual o emprego
formal (CLT) é associado à vergonha, po-
breza e monotonia”, anota o documento.
“Influenciadores frequentemente defen-
dem o empreendedorismo e o trabalho
autônomo como alternativas superio-
res, reforçando a ideia de que as prote-
ções trabalhistas formais são desneces-
sárias, o que desestimula esforços cole-
tivos para melhorar os direitos e as con-
dições dos trabalhadores.”
O sentimento anti-CLT propa-
lado pelos influencers digitais
colide com a visão majoritária
dos trabalhadores por conta
própria. No início do ano, o
Ibre, Instituto Brasileiro de
Economia da Fundação Getulio Vargas,
fez uma pesquisa com quem trabalha por
conta própria. A ONU tem defendido que
estatísticas melhores podem gerar ou
aperfeiçoar políticas públicas de apoio.
De 1.108 entrevistados, 66% disseram
ter incerteza todo mês quanto à renda
que vão obter, enquanto 45% entraram
nessa situação por necessidade, não por
opção. Mais, 67% gostariam de trabalhar
com carteira profissional assinada, índi-
ce que aumenta quanto menor é a renda
mensal do entrevistado: 75% entre quem
ganha até um salário mínimo.
Em entrevistas para a pesquisa, Pi-
nheiro-Machado ouviu relatos de pro-
fessoras sobre crianças e jovens que
abandonam a sala de aula para tentar
ganhar dinheiro fácil no mundo digi-
tal. Um levantamento de 2022 da empre-
sa Inflr, dedicada a aproximar marcas
e influencers, dizia que 75% dos jovens
brasileiros gostariam de ser influencia-
dores. Não só o presente do País sente o
forte impacto da plataformização do tra-
balho. O futuro também. Daí o estudo
da antropóloga e sua equipe recomen-
dar uma visão das redes sociais como
espaços laborais dignos de regulação. A
reportagem consultou o Ministério do
Trabalho quanto à existência de estudos
e pesquisas oficiais a respeito do tema.
Até o momento, não existem.
CARTA CAPITAL
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