ENQUANTO O PCC PROSPERA, A POLÍCIA
PAULISTA ATERRORIZA A POPULAÇÃO
PERIFÉRICA COM O AVAL DA GESTÃO
TARCÍSIO DE FREITAS, LAMENTA OUVIDOR
MARIANA SERAFINI
Recentemente, o ouvidor das Polícias de São Paulo, Cláudio Aparecido da Silva, envolveu-se em uma acalorada discus
são com policiais que rondavam o velório
do menino Ryan da Silva Andrade Santos,
de 4 anos, atingido por um disparo de fu-
zil durante uma desastrada operação da
PM em Santos. Nos últimos meses, torna-
ram-se recorrentes os episódios de intimi-
dação aos familiares de vítimas da violên-
cia policial, lamenta o ouvidor, igualmen-
te preocupado com o aumento de 78% das
mortes causadas pelas forças de seguran-
ça do estado de janeiro a agosto de 2024,
na comparação com o mesmo período do
ano anterior. Para Silva, o fenômeno es-
tá diretamente relacionado à postura le-
niente do governador Tarcísio de Freitas
e de seu secretário de Segurança Pública,
o capitão reformado Guilherme Derrite,
sempre dispostos a justificar os abusos da
tropa. “O problema é que, na prática, não
há efetiva fiscalização da atividade poli-
cial – ninguém para garantir que ela cum-
pra sua função de forma ética e responsá-
vel. Isso é extremamente grave, desespe-
rador e beira a barbárie.” Confira, a seguir,
a entrevista concedida a CartaCapital.
CartaCapital: Por que o senhor
acompanhou o cortejo do menino Ryan?
Cláudio Aparecido da Silva: Nós, da
Ouvidoria, e ativistas de direitos huma-
nos já conhecíamos dona Beatriz, mãe de
Ryan, desde a morte de seu marido, Leo-
nel, também assassinado pela polícia no-
ve meses antes. Decidimos acompanhar o
cortejo da família até o Cemitério da Areia
Branca. Ao chegarmos, uma viatura esta-
va bloqueando um cruzamento na comu-
nidade. Fui até o Cabo Silveira, que afir-
mou estar ali para “garantir tranquilida-
de”, mas não impediria ninguém. A passa-
gem do cortejo pela comunidade foi como-
vente. As pessoas choravam no ponto de
ônibus, nos comércios. Teve uma escola
que todos os alunos e professores saíram
para se solidarizar. Afinal, era uma crian-
ça de 4 anos que estava sendo sepultada.
CC: Quando a presença da polícia
passou a incomodar?
CAS: Mesmo se tratando de um caso de-
licado como esse, a polícia fez ronda os-
tensiva durante todo o percurso. Veio
até uma viatura do Batalhão de Ações
Especiais, o Baep. Passaram na contra-
mão, cortando outros veículos. Tenta-
ram impedir o cortejo de prosseguir, li-
beraram só o carro funerário. Um poli-
cial chegou a ameaçar uma fotógrafa do
ornal O Globo com um fuzil. Ao chegar-
mos, havia muitos policiais, dentro e fo-
ra do cemitério. Dona Beatriz ficou tão
abalada que precisou de cadeira de ro-
das. Na saída, ainda presenciei a violen-
ta abordagem de um policial da Força Tá-
tica, que me acusou de estar atrapalhan-
do o trabalho dele. Eu revidei: “Quem es-
tá tumultuando são vocês. Isso agora é
política de governo? A polícia mata e vai
ao enterro da vítima? Intimida os fami-
liares?” A situação só se acalmou quando
uma capitã ordenou a saída das viaturas.
CC: Em outubro, policiais envolvidos
na morte de dois jovens apareceram no
velório deles e ainda agrediram familia-
res. Isso tem acontecido muito?
CAS: Nesta gestão, essas ocorrências têm
se repetido. Na Operação Verão, começa-
ram a surgir reclamações de familiares.
Houve casos de policiais multando motos
de quem chegava ao cemitério, confiscan-
do camisetas em homenagem às vítimas e
até filmando o sepultamento. Temos re-
gistros e fotos desses episódios. Além dis-
so, durante a Operação Verão, nos nega-
ram acesso aos boletins de ocorrência. Os
únicos que conseguimos foram por meio
dos familiares, pois a Polícia Militar e a
Secretaria de Segurança Pública não nos
forneceram. No caso do Ryan, essa situa-
ção se repetiu. Essas práticas revelam um
desdém pela Ouvidoria e pela transparên-
cia. Outra queixa surgiu no Morro São
Bento, em Santos. Não permitem corte-
jos na comunidade, especialmente quan-
do a vítima faleceu durante uma operação
policial. As famílias pagam caro por essa
cerimônia, mas não conseguem realizar
o cortejo devido às restrições impostas.
CC: Ou seja, a polícia está violando
o direito ao luto das famílias?
CAS: Exatamente. No caso de Ryan, en-
caminhamos um ofício ao ministro Luiz
Roberto Barroso, do Supremo Tribunal
Federal, e também pediremos providên-
cias ao Ministério Público. Nas opera-
ções em comunidades da Baixada San-
tista, tem sido comum a presença de po-
liciais sem câmeras corporais, contra-
r iando a recomendação do magistrado.
No ofício, além de relatar o que ocorreu
no funeral de Ryan, denunciamos o uso
inadequado das câmeras nas abordagens.
Elas estavam desligadas e guardadas no
bolso da farda, temos imagens para pro-
var. Segundo a equipe do ministro, a Polí-
cia de São Paulo comprometeu-se a abrir
um Processo Administrativo Disciplinar
para apurar a conduta desses agentes.
CC: As câmeras podem ser desliga-
das? Qual é o protocolo?
CAS: As câmeras corporais são consi-
deradas equipamentos de proteção in-
dividual, semelhantes ao colete ou à bo-
ta. Elas devem ser fixadas na região do tó-
rax, pois estudos indicam que essa posi-
ção captura melhor as circunstâncias das
ocorrências. Atualmente, a polícia pau-
lista utiliza câmeras da Axon, que fazem
gravação ininterrupta. O novo modelo,
que permitirá ao policial desligar o apa-
relho, ainda não foi implementado. As
câmeras em uso têm dois modos: um de
gravação contínua, em baixa resolução e
sem som, e outro acionado pelo policial,
que grava em alta resolução e com áudio.
CC: De janeiro a agosto, as mortes
causadas por policiais em serviço au-
mentaram 78,5% em São Paulo, na
comparação com o mesmo período do
ano passado. O que explica esse au-
mento da letalidade policial?
CAS: Essa alta está diretamente relacio-
nada à política de segurança adotada pela
atual gestão. A postura do governador, ao
desconsiderar as denúncias de abusos da
polícia, envia uma mensagem clara para a
tropa de que pode agir sem temer conse-
quências, pois o governo aprova esse com-
portamento. Quando soube que entidades
pretendiam acionar o Conselho de Direi-
tos Humanos das Nações Unidas, Tarcísio
de Freitas chegou a debochar: “Pode ir à
ONU, à Liga da Justiça, ao raio que o parta,
que não tô nem aí”. A atitude do secretário
de Segurança Pública, Guilherme Derrite,
também contribui. Ele interveio nas in-
vestigações das operações Verão e Escudo,
promovendo a troca de 34 dos 63 coronéis
da cúpula da PM, colocando em postos de
comando oficiais da Rota e do Batalhão de
Choque, com históricos de excessos. Isso
reforçou a sensação de impunidade den-
tro da corporação. Além disso, a gestão do
coronel Fábio Amaral na Corregedoria re-
sultou em queda nas demissões, sugerindo
conivência do órgão de controle.
CC: No caso de Ryan, Derrite ainda
acusou os críticos de fazer “vitimismo
barato”...
CAS: As respostas do secretário e do res-
ponsável pela comunicação da PM, co-
ronel Emerson Massera, são absurdas.
O secretário minimiza a situação, en-
quanto o porta-voz da corporação afir-
ma que os policiais envolvidos naquela
ocorrência foram afastados para “pre-
servação deles”, como se eles fossem as
vítimas, e não o menino de 4 anos atingi-
do por um disparo de fuzil. E, para com-
pletar, ainda aproveitou a ocasião para
defender a retomada do debate sobre a
redução da maioridade penal. É um ab-
surdo! A falta de empatia com a família
da criança é chocante. Será que querem
reduzir a maioridade para 3 anos? Ryan
tinha 4. São distorções sem limites.
CC: Como estão as investigações
sobre as operações Escudo e Verão,
que resultaram em 84 mortes pela po-
lícia na Baixada Santista entre julho de
2023 e abril de 2024, segundo a ONG
Conectas?
CAS: Tentamos nos habilitar para
acompanhar as investigações, não conse-
guimos acesso aos inquéritos. O juiz não
permitiu. Apesar dos nossos argumen-
tos, o Ministério Público manifestou-se
favoravelmente à restrição. No despacho,
o MP alegou exercer o papel de controle
externo da atividade policial, o que nos
deixou sem informações diretas. O que
conseguimos apurar foi apenas por meio
das famílias, que nos trazem algumas in-
formações, ou pela mídia, quando há al-
gum desfecho nos casos.
CC: Recentemente, o coronel Mello
Araújo, vice-prefeito eleito de São
Paulo e ex-comandante da Rota, disse
que a abordagem policial deve ser di-
ferente em bairros ricos e na periferia.
CAS: O coronel Mello Araújo foi hones-
to ao deixar claro como orienta a atuação
da polícia, ou pelo menos como orienta-
va enquanto estava na ativa. Isso nós de-
vemos louvar, a honestidade. Mas ele es-
tá falando de uma instituição que tem a
responsabilidade de proteger todos, sem
distinção. O direito à vida, que o pequeno
Ryan não teve, é um direito fundamental
garantido pela Constituição. Quando um
comandante, um secretário, um governa-
dor ou qualquer pessoa em posição de po-
der endossa esse tipo de postura, a men-
sagem que passa é de que a polícia pode
agir à vontade. O problema é que, na prá-
tica, não há efetiva fiscalização da ativida-
de policial, ninguém para garantir que ela
cumpra sua função de forma ética e res-
ponsável. Isso é extremamente grave, de-
sesperador e beira a barbárie.
CC: Infelizmente, boa parte da
população ainda é seduzida pelo dis-
curso de que “bandido bom é bandido
morto”. Como mudar essa cultura?
CAS: Precisamos enfrentar essa menta-
lidade, pois vivemos em um Estado De-
mocrático de Direito, não em um regime
ditatorial. Há várias questões que devem
ser abordadas para reverter esse tipo de
pensamento e transmitir uma mensagem
clara de que as forças policiais não podem
agir dessa maneira — não só em São Pau-
lo, mas em todo o Brasil. Um passo crucial
é extinguir os efeitos do Decreto 667/69,
que institui as polícias militares como
braço auxiliar do Exército e as coloca em
uma lógica de combate contra um “inimi-
go comum”. O resultado dessa visão está
presente todos os dias nas ruas, nos mor-
ros, nas periferias. Estamos retrocedendo
com a atual gestão. Em termos de letalida-
de policial, voltamos 20 anos na história.
CC: Uma polícia violenta é mais efi-
caz no combate ao crime?
CAS: De modo algum. Essa gestão não
trouxe resultados concretos na redução da
criminalidade. Embora tenha havido uma
queda tímida nos índices de roubo e furto,
a violência continua em níveis alarmantes:
mulheres vítimas de agressões, assaltos
em plena luz do dia, o crime organizado ca-
da vez mais fortalecido, a insegurança nas
periferias. Isso mostra que a política de
segurança do estado não tem sido eficaz.
Quando um secretário considera “nor-
mal” a morte de uma criança pelas mãos
da polícia, ele legitima uma tropa descon-
trolada. Recentemente, um policial entrou
num alojamento e matou o colega que es-
tava dormindo. Por muitos anos, não se ti-
nha notícia de um policial da Rota morto
em serviço. Nessa gestão, já tivemos dois.
O caso do Ryan, de 4 anos, é outra triste
novidade. Não me recordo de uma crian-
ça tão pequena morrer nas mãos da polí-
cia em São Paulo. E o secretário Derrite,
ao se calar, contribui para essa tragédia.
CARTA CAPITAL
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