OS MILITARES, INSUFLADOS PELOS SENHORES,
DERAM O GOLPE. MAS QUEM PUXAVA AS
CORDAS ERAM OS NORTEAMERICANOS
Luiz Gonzaga Belluzzo
No início dos anos 60, a sociedade brasileira vivia uma era de
saudável e promissora agitação política. Batizado, na época, como “luta
de classes”, o fenômeno era decorrência inevitável de quatro décadas de
industrialização, modernização econômica e rápida transformação social. O
progresso material das sociedades modernas suscita inconvenientes e
transtornos, mas é mobilizador de energias e ideias. Os sindicatos, as
associações de classe e as organizações estudantis fervilhavam. Os
centros acadêmicos, a UEE e a UNE participavam ativamente do debate
nacional.
Ainda não se sabe se a despeito ou por conta do jogo estratégico
entre as duas grandes potências, o pós-Guerra foi generoso com alguns
países da periferia, sobretudo com o Brasil. Entre seus pares, o país
tropical era líder no campeonato de taxas de crescimento e de
incorporação de novas atividades e de trabalhadores ao mundo da
indústria e das cidades. Havia entusiasmo e, provavelmente, muita
ilusão. Mas já disse alguém que as ilusões são necessárias e, em muitos
casos, estimulantes.
Era, então, possível e razoável imagi-
nar o País cada vez mais próximo de uma
sociedade justa e contemporânea, expur-
gada da herança colonial e de seus humo-
res subalternos. Alguns chamavam essa
esperança de socialismo. Outros almeja-
vam que a utopia se assemelhasse às con-
dições de vida e aos padrões de convivên-
cia que estavam em construção na Euro-
pa Ocidental com o avanço do Estado do
Bem-Estar Social.
nar o País cada vez mais próximo de uma
sociedade justa e contemporânea, expur-
gada da herança colonial e de seus humo-
res subalternos. Alguns chamavam essa
esperança de socialismo. Outros almeja-
vam que a utopia se assemelhasse às con-
dições de vida e aos padrões de convivên-
cia que estavam em construção na Euro-
pa Ocidental com o avanço do Estado do
Bem-Estar Social.
Na outra ponta do espectro político es-
tava a malta do fazendão subdesenvolvi-
do que combinava cosmopolitismo ame-
ricanista com a reconhecida ojeriza pe-
la difusão da luz elétrica e da água enca-
nada para o povo mais pobre. Seja como
for, a bandeira das forças progressistas
foi desfraldada na defesa das reformas de
base – agrária, urbana, bancária, traba-
lhista e previdenciária. As hostes conser-
vadoras e reacionárias, que nunca aban-
donaram a luta contra o projeto nacio-
nal de industrialização, brandiam os
chavões da ameaça comunista, do ouro
de Moscou, da “cubanização” do Brasil.
Sessenta anos depois, é recomendável
alguma frieza na análise: como todos os
periféricos, éramos, à esquerda e à direi-
ta, protagonistas dos conflitos que se de-
senvolviam nos palcos globais da Guerra
Fria. Vou retomar um texto já publicado
em nossa CartaCapital para amparar mi-
nhas digressões a respeito da importância
da participação norte-americana no golpe
civil-militar de 1964. Terça-feira, 7 de ja-
neiro de 2014, foi anunciada a “descober-
ta” de uma gravação reveladora. Nos idos
de 1963, o então presidente dos Estados
Unidos, John F. Kennedy, gravou a conver-
sa com seu embaixador no Brasil. Kennedy
perguntou a Lincoln Gordon se os EUA po-
deriam “intervir militarmente” no Brasil
para depor o presidente João Goulart. Às
vésperas do famigerado golpe, surgiu um
slogan premonitório: “Basta de interme-
diários, Lincoln Gordon para presidente”.
Em seu livro A Segunda Chance
do Brasil, subtítulo A Caminho
do Primeiro Mundo, publicado
em 2002, Gordon relata um
encontro na Casa Branca com
o presidente Kennedy: “Durante a reunião
na Casa Branca, eu alertei o presidente
Kennedy sobre a possibilidade de algum
tipo de ação pelos militares brasileiros e
ele perguntou qual deveria ser a nossa ati-
tude”. Depois de tergiversar, enrolar com
considerações a respeito da admiração de
Goulart pelo presidente norte-americano,
Gordon foi ao que interessava e concluiu:
“O mais importante é ao mesmo tempo or-
ganizar as forças tanto políticas quanto
militares para reduzir o poder de Goulart
[...] ou, em uma situação extrema, desti-
tuí-lo, se as coisas chegarem a esse pon-
to, o que dependeria de uma ação explíci-
ta de sua parte”. Minutos depois, o subse-
cretário para Assuntos Interamericanos,
Richard Goodwin, observou: ‘Podemos
muito bem querer que eles (militares bra-
sileiros) assumam o poder no fim do ano,
se eles puderem fazer isso”.
Na nota de rodapé da página 325 da pri-
meira edição do livro publicado pela Edi-
tora Senac, Gordon escreve: “Para minha
surpresa, revelou-se recentemente que o
presidente Kennedy tinha instalado um
aparelho de gravação no Salão Oval. Nes-
sa conversa de 30 de julho, que incluiu
também Richard Goodwin, foi a primei-
ra reunião a ser gravada. A transcrição
tem muitos hiatos (sic), alguns por ra-
zões de segurança, outros porque certas
passagens não puderam ser decifradas. A
maior parte desse material está disponível
agora nas páginas 9 a 25 de Timothy Naf-
tali (Org.) The Presidential Records, John
F. Kennedy, The Great Crisis, Vol. 1, 2001.”
Gordon conspirava abertamente com
as “forças democráticas” nativas, aquelas
que estão permanentemente a arquitetar
a supressão da democracia. Da conspirata
participavam naturalmente os homens
de bem: ricos de todos os gêneros, parte
da classe média ilustrada, semi-ilustrada
e deslustrada. Até mesmo os habitantes
de outras galáxias sabiam que senhores
da mídia tupiniquim estavam metidos
até a raiz dos cabelos nas conversações e
maquinações conspiratórias articuladas
por Gordon. É surpreendente que manifestem
surpresa com as palavras de Ken-
nedy registradas na gravação.
nedy registradas na gravação.
Segue o enterro: a situação política,
continua Gordon, “me levou a endos-
sar a sugestão da CIA de que fornecesse
dinheiro a candidatos amigáveis”. Para
tanto, a agência norte-americana de es-
pionagem e informação valeu-se do Ibad,
o Instituto Brasileiro de Ação Democrá-
tica, criado em 1959 por um certo Ivan
Hasslocher com o propósito de comba-
ter o governo Juscelino Kubitschek, que,
sabem todos, era um perigoso aliado do
comunismo internacional.
Os Estados Unidos haviam
patrocinado a deposi-
ção de Jacobo Árbenz na
Guatemala e instigaram a
queda de Juan Domingo
Perón na Argentina. O suicídio de Getúlio
Vargas, em 1954, e a coragem do então ge-
neral Henrique Batista Duffles Teixeira
Lott, ministro da Guerra, em 11 de novem-
bro de 1955, abortaram as tentativas de
interrupção da normalidade institucional
no Brasil. Mas, em março de1964, o País
entrou finalmente no roteiro dos “golpes
democráticos” gestados em Washington.
ção de Jacobo Árbenz na
Guatemala e instigaram a
queda de Juan Domingo
Perón na Argentina. O suicídio de Getúlio
Vargas, em 1954, e a coragem do então ge-
neral Henrique Batista Duffles Teixeira
Lott, ministro da Guerra, em 11 de novem-
bro de 1955, abortaram as tentativas de
interrupção da normalidade institucional
no Brasil. Mas, em março de1964, o País
entrou finalmente no roteiro dos “golpes
democráticos” gestados em Washington.
Está mais do que provado há tem-
pos que a participação da CIA e de ou-
tras agências norte-americanas no gol-
pe foi decisiva. Washington foi genero-
sa na transferência de tecnologia: envia-
ram experts nas técnicas de tortura, con-
forme depoimento insuspeito e digno de
muitos oficiais brasileiros que se recu-
saram a compactuar com os torturado-
res. Na Terra Brasilis, a camarilha do vi-
ra-latismo preparou seu arsenal golpis-
ta, amontoando os argumentos de sem-
pre para brecar o avanço dos movimen-
tos reformistas e progressistas. Ontem
como hoje, sacam da algibeira o nheco-
-nheco do “perigo comunista”.
No excelente livro 1964: História do Re-
gime Militar Brasileiro, Marcos Napolita-
no observa na lógica particular da classe
média brasileira, a ascensão dos “de baixo”
é sempre vista como ameaça àqueles que
estão nos andares de cima do edifício so-
cial. Como os que estão na cobertura têm
mais recursos para se proteger, quem es-
tá mais perto da base da pirâmide social
se sente mais ameaçado. Não por acaso, o
fantasma do comunismo encontrou mais
eco nesses segmentos médios. As classes
médias, bombardeadas pelos discursos
anticomunistas da imprensa e de várias
entidades civis e religiosas reacionárias,
acreditaram piamente que Moscou tra-
mava para conquistar o Brasil, ameaçando
a civilização cristã, as hierarquias “natu-
rais” da sociedade e a liberdade individual.
Vou relembrar a Marcha da Família
com Deus pela Liberdade, entre tantas
manifestações que alertavam para os ri-
cos da derrocada da sociedade brasileira
no abismo do socialismo ou coisa pareci-
da. No dia 19 de março de 1964, as ruas de
São Paulo foram tomadas por uma mul-
tidão capitaneada por entidades conser-
vadoras, entre tantas a União Cívica Fe-
minina, que abrigava em seu comando se-
nhoras da alta e da média-alta sociedade.
A multidão reuniu-se na Praça da Repú-
blica e marchou até a Praça da Sé, atraves-
sando o Centro da cidade. Observei a tigra-
da percorrendo a Rua Barão de Itapetinin-
ga. Lancei o olhar desde um andar do edi-
fício da Editora Brasiliense, na companhia
do meu companheiro de todas as horas, o
professor João Manuel Cardoso de Mello.
Terminada a procissão dos patriotas,
dona Stella, irmã do conhecido Paulo
Machado de Carvalho e admiradora de
Adolf Hitler, partiu em visita à família
Cardoso de Mello. Dona Adelaide, mãe
do professor João Manuel, indagou Stella
a respeito da Marcha:
– Stella, com foi a marcha das grã-finas?
Resposta:
– Grã-finas? Nada disso. Tinha até uns
pretos
Pano Rápido.
CARTA CAPITAL
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