April 19, 2024

A fome como arma

 

 A tragédia humanitária em Gaza intensifica-se
e a falta de alimentos destrói famílias e esperanças
 

P O R   P E T E R   B E AU M O N T

 E   K A A M I L A H M E D

 Duzentas e cinquenta calorias representam duas fatias de um pão integral comum vendido em supermercados: 12% da ingestão nutricional diária recomendada. Hoje, no norte de Gaza, dominado por um nível “catastrófico” de fome, como definiu a ONU, representa a ingestão calórica de um dia inteiro. Seis meses após o início da resposta militar de Israel, na sequência do brutal ataque do Hamas às comunidades fronteiriças do sul de Israel em 7 de outubro do ano passado, no qual 1,2 mil judeus foram mortos, na maioria civis, e quase 250 foram sequestrados como reféns, a fome aguda domina a faixa costeira

Para quem tem dinheiro, a comida é perigosamente escassa. Para aqueles que não têm nenhum – e depois de ­Israel obstruir a entrega de ajuda humanitária durante meses, segundo funcionários da ONU e de outras agências –, encontrar sustento é uma questão de vida ou morte. De acordo com o IPC, o mecanismo de monitoração da fome apoiado pela ONU, 1,1 milhão de palestinos, metade da população de Gaza, viverá numa penúria catastrófica dentro de três meses, se as coisas permanecerem no estado atual­ e a violência não aumentar. “Antes da guerra, tínhamos boa saúde e corpos fortes”, disse recentemente uma mãe à agência humanitária britânica Oxfam. “Agora, quando olho para meus filhos e para mim, perdemos muito peso. Tentamos comer tudo o que encontramos, plantas ou ervas comestíveis, apenas para sobreviver.”

Outra mãe de seis filhos repetiu esse
relato à Organização Mundial da Saúde e
explicou que nos mercados as plantas sil-
vestres estão principalmente disponíveis
a altos preços, “sem legumes, frutas, su-
co... sem lentilhas, sem arroz, batatas ou
berinjelas, nada”, levando muitos a sobre

viver à base de malva, uma erva daninha
comum. Numa Gaza arruinada e sitiada,
constantemente sob a ameaça de bombas,
artilharia e drones, a vida é definida por
um refrão repetido por muitos: “Ainda es-
tou vivo. Continuo a respirar”.

 
“Não sei se ainda sinto outra coisa
além de medo, tristeza e frustração”, afir-
ma Mohammed Mortaja, um entre as cen-
tenas de milhares de deslocados para a ci-
dade de Rafah, no sul do país, ainda hoje
sob a ameaça de uma nova ofensiva israe-
lense. “Todas as manhãs o sol nasce e vo-
cê está vivo. Sua jornada diária é perma-
necer vivo, na busca por água e comida e
a fugir dos bombardeios e da ocupação.”
Mortaja diz estar totalmente foca-
do na sobrevivência e não presta mais
atenção nas notícias. Depois de seis lon-
gos meses, a esperança também foi pos-
ta de lado, substituída por uma sensação
entorpecida de deslocamento. “Não sou
mais iludido por palavras como ‘trégua’
ou ‘cessar-fogo’. Não me importo com na-
da, apenas procuro o que pode saciar mi-
nha fome e minha sede e espero ansiosa-
mente por minha morte.”

Mais de 33 mil palestinos foram mor-
tos no enclave, incluídas mais de 13 mil
crianças, segundo o Ministério da Saúde
de Gaza. Em seis meses de conflito vio-
lento, após anos de bloqueio israelense à
faixa costeira, que serviu mais para for-
talecer o Hamas do que para prejudicá-
-lo, Gaza hoje é definida mais pelo que foi
perdido do que pelo que resta de uma so-
ciedade outrora vibrante. Blocos de apar-
tamentos e bairros inteiros foram arra-
sados. Os hospitais, reduzidos a ruínas,
estão cercados por cães e cheiram a esgo-
to. As universidades foram explodidas e
a agricultura destruída. A eletricidade e,
com ela, a capacidade de processar água
potável e residual, foram fatalmente in-
terrompidas, contribuindo para a propa-
gação descontrolada de doenças.

 
No mês passado, imagens analisadas
pelo Centro de Satélites das Nações Uni-
das indicaram que 35% dos edifícios da
Faixa de Gaza foram destruídos ou dani-
ficados na ofensiva. A vida foi atomizada,
pois a guerra levou mais de 80% da po-
pulação de 2,3 milhões a abandonar suas
casas e procurar abrigo, principalmente
no sul, em condições insalubres de super-
lotação. As entregas de ajuda humanitá-
ria foram estranguladas por Israel, que
fechou as passagens terrestres, enquan-
to as recentes operações de lançamento
aéreo são em escala limitada e muitas ve-
zes causam mortes por problemas com
falhas nos paraquedas e a queda de ali-
mentos e remédios no mar.

 
A questão em Gaza é para onde irá
a guerra agora. Uma avalanche de con-
denações internacionais de Israel pe-
la morte recente de sete trabalhadores
humanitários da instituição beneficen-
te World Central Kitchen, num ataque
prolongado de drones que atingiu seus
carros, um após o outro, segue-se à re-
volta pelo elevado número de mortos e
a fome crescente. Embora Tel-Aviv, sob
pressão dos Estados Unidos depois da
morte dos trabalhadores humanitários,
tenha concordado em abrir mais pas-
sagens fronteiriças para permitir mais
ajuda humanitária, algumas autorida-
des internacionais como o alto repre-
sentante de política externa da União
Europeia, Josep Borrell, acreditam ser
insuficiente, e tarde demais para evi-
tar a inanição. “Israel e seus aliados de-
vem garantir que a ajuda possa fluir li-
vremente para evitar a fome, e que ha-
ja um sistema de proteção para os tra-
balhadores humanitários que garanta
nossa segurança. Acima de tudo, preci-
samos de proteção para os civis pales-
tinos, que foram mortos indiscrimina-
damente nos últimos seis meses”, afir-
mou o norueguês Jan Egeland, secretá-
rio-geral do Conselho para Refugiados.

 
Juntamente com a ameaça de fome,
a maior questão é o que acontecerá em
Rafah, onde vivem 1,5 milhão de cida-
dãos. O primeiro-ministro de Israel,
Benjamin Netanyahu, reafirmou a in-
tenção de atacar a cidade, apesar das
objeções de Washington e de outros alia-
dos. Ahmed Masoud, ativista dos direi-
tos humanos atualmente em Rafah, de-
pois de ter sido deslocado seis vezes nos
últimos seis meses, experiência típica,
afirma ter perdido 40 amigos, sua ca-
sa e seu emprego. Agora, teme perder a
saúde mental. “Tudo o que pensamos é
como permanecer vivos, lutando para
conseguir água e comida. Quando che-
ga a noite, pensamos mais em ser mor-
tos, especialmente porque ouvimos 24
horas por dia, sete dias por semana, o
som dos aviões de guerra israelenses,
especialmente dos drones”, descreve
Masoud. “Tenho muita sorte de ainda
ter a cabeça e não a ter perdido ainda.”

 
Rafah deixou, no entanto, de ser uma
zona segura, embora nunca tenha esta-
do isenta de ataques aéreos, e a popula-
ção diz haver rumores de uma iminente
invasão israelense. “Tudo está destruí-
do ao nosso redor. Sentimos que a qual-
quer momento eles entrarão”, afirmou
outro palestino morador da cidade, que
não quis ser identificado. “Esperamos
pela evacuação de Rafah a qualquer mo-
mento. Provavelmente, iremos em dire-
ção ao mar, à praia.” Segundo Masoud,
todos esperam uma invasão, mas não sa-
bem para onde ir.

 
O sentimento de medo corrosivo e
generalizado levou aqueles que têm
contatos no estrangeiro a fazer apelos
desesperados, pedindo dinheiro em-
prestado para pagar as propinas exigi-
das pelos “intermediários” egípcios, às

ezes dezenas de milhares de dólares
por família, para atravessar a fronteira.

 
“O governo norte-americano quer um
plano claro para evacuar os retidos pa-
ra locais seguros. Para ser sincero, não
sei de que ‘área segura’ estão falando”,
diz Masoud. “É um medo muito grande,
mas estamos acostumados a ser mor-
tos, a ouvir notícias tristes, não temos
nada a perder. Então aqui estamos, à es-
pera do nosso destino.”

 
Apesar da crescente pressão interna-
cional a favor da interrupção dos com-
bates, entre elas a recente aprovação de
uma resolução do Conselho de Segu-
rança da ONU, as negociações de ces-
sar-fogo se concentraram na libertação
de dezenas de reféns israelenses detidos
pelo Hamas, muitos dos quais teriam

morrido em cativeiro, que permanecem
presos, apesar do enorme sofrimento. O
Hamas diz que as forças de Israel devem
deixar Gaza. Israel diz que deve concluir
a destruição do Hamas.

 
Apesar das alegações por Israel de
que matou cerca de 13 mil combaten-
tes inimigos e desmantelou as capa-
cidades militares do grupo na maior
parte de Gaza, não há, porém, sinais
de que o Hamas esteja acabado, e seus
integrantes se reagrupam em áreas
onde Israel havia declarado vitória.

 
Michael Milshtein, ex-oficial de alto
escalão da inteligência militar israe-
lense e especialista em estudos pales-
tinos na Universidade de Tel-Aviv, diz
que Israel enfrenta duas opções desa-
gradáveis: aceitar um acordo de reféns
e cessar-fogo que reconheça a sobrevi-
vência do Hamas, ou intensificar a cam-
panha militar e conquistar Gaza na es-
perança de que o inimigo seja destruí-
do. A expectativa de que a abordagem
atual dos militares israelenses possa
destruir o Hamas ou forçá-lo a se ren-
der, afirma, é “excesso de otimismo”.

 
Amos Harel, do jornal israelense
Haaretz, foi ainda mais contundente e
descreveu uma guerra estagnada, tro-
pas esgotadas e uma insensibilidade ca-
da vez maior em relação às vidas palesti-
nas, onde “a ideia de que ‘não há inocen-
tes em Gaza’” é comum entre os solda-
dos. “Hoje está claro para todos, exceto
para os seguidores cegos, que as promes-
sas de ‘vitória total’ que o primeiro-mi-
nistro Benjamin Netanyahu fazia todos
os dias são totalmente inúteis.”

 
Por enquanto, tudo o que se pode di-
zer com alguma certeza é que uma guer-
ra lançada com expectativas irreais vai
arrastar-se ainda por mais tempo em meio
ao crescente isolamento internacional de
Israel. E que aqueles que pagam o preço
mais alto são os civis palestinos de Gaza.  
 

CARTA CAPITAL 

 

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