Opiniões positivas sobre o regime se multiplicam, assim como o voto em políticos que não escondem sua admiração pelo ditador
Por Janaina Figueiredo
Após o projeto de uma nova Constituição ter sofrido uma esmagadora derrota nas urnas em setembro do ano passado (38,11% a favor e 61,89% contra), e com o governo de esquerda do presidente Gabriel Boric em baixa, o pinochetismo — que nunca desapareceu — saiu do armário no Chile. A avaliação é compartilhada por cientistas políticos e jornalistas locais ouvidos pelo GLOBO, e confirmada por pesquisa realizada pela Mori Consultores.
No ano em que se completam cinco décadas do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, em que o Palácio de la Moneda organizará eventos de repúdio em grande escala, dados da Mori mostram que apenas 42% dos chilenos consideram que o ditador Augusto Pinochet (1973-1990) destruiu a democracia do país. Há dez anos, o percentual era de 63%, e em 2006, ano da morte de Pinochet, atingiu 68%.
A mesma pesquisa indicou que 36% dos chilenos acreditam que o ditador salvou o Chile do marxismo. Em 2013, o percentual foi de 18%. A evolução da opinião da sociedade sobre o que aconteceu há 50 anos acompanhou o crescimento da extrema direita no país, e de lideranças como a do ex-candidato à Presidência José Antonio Kast, fundador do Ação Republicana.
Kast, que em 2016 rompeu com o partido de direita tradicional União Democrática Independente (UDI), não está sozinho. Empoderados pelo resultado do plebiscito de 2022, no qual foi derrotado um projeto que pretendia substituir a Constituição herdada de Pinochet e em cujo processo de elaboração a direita teve pouca participação, dirigentes de vários partidos justificaram o golpe nos últimos meses. Cinco décadas depois de Pinochet ter bombardeado o Palácio de la Moneda e iniciado uma das ditaduras mais sanguinárias que a América Latina viveu nas décadas de 1970 e 1980, a direita chilena está disputando seu legado.
Saudades do ‘meu general’
O ressurgimento com força do pinochetismo, afirma o jornalista Néstor Aburto, diretor de conteúdo da Rádio Bio Bio, “acontece num país no qual cada vez se ouve mais a frase ‘se meu general vivesse isso não aconteceria’. Os chilenos que agora não se constrangem em expressar opiniões positivas sobre o ditador, acrescenta Aburto, referem-se a questões como o aumento da violência, a presença de imigrantes latino-americanos e os problemas econômicos.
A cientista política Marta Lagos, diretora da Latinobarometro e da Mori, considera o fenômeno político uma “derrota cultural da esquerda”.
— A direita se apropriou da agenda dos 50 anos do golpe e conseguiu instalar a ideia de que o problema foi Salvador Allende, e não Pinochet — afirma Lagos, referindo-se ao presidente socialista derrubado e que se suicidou durante o ataque ao palácio.
Para ela, “à medida que o país se aproxima do 11 de setembro, cada vez mais pinochetistas saem do armário”.
— A direita nunca foi democrática. Em 1990, quando Pinochet deixou o poder [após perder um plebiscito em 1988, no qual obteve 44,01%], um general me disse que os militares estavam apoiando o processo de transição porque a democracia estava na moda. Kast tirou todas essas pessoas do armário — aponta a diretora da Mori, que frisa: — Continuamos vivendo sob a sombra do pinochetismo.
O senador Iván Moreira, da UDI, admite que em outras épocas muitos evitaram mencionar o golpe por temor de perder votos. Hoje, argumenta, “está ressurgindo um olhar mais objetivo sobre o que aconteceu em 1973”.
— Sou pinochetista, sempre defendi o governo militar, mas lamentavelmente a direita chilena andou se escondendo, — aponta Moreira.
Sua visão, compartilhada por muitos, é de que “sem Allende não teria existido Pinochet”. E de que “Pinochet salvou uma geração de chilenos de terminar em mãos do marxismo”. Perguntado sobre as graves violações dos direitos humanos durante a ditadura, Moreira concorda que a direita demorou muito tempo para reconhecer o que tinha acontecido, e hoje não justifica as violações cometidas.
— Aprendemos a lição, no Chile nunca mais haverá uma intervenção militar, os problemas da democracia devem ser resolvidos com democracia e não como se fez em 1973. Mas eram outras as circunstâncias, e Pinochet foi um bom presidente, que fez o Chile crescer durante duas décadas — diz o senador da UDI.
‘Estadista jamais’
O integrante mais votado da nova Assembleia Constituinte, que está elaborando um novo projeto de Constituição a ser submetido a plebiscito em dezembro, Luis Silva, afirmou recentemente que Pinochet foi um “estadista”. Num ambiente de crescente debate por conta dos 50 anos do golpe, o presidente Boric respondeu que “Pinochet foi um ditador corrupto e um ladrão, estadista jamais”.
Em 27 de junho, o Uruguai, governado pela centro-direita, lembrou o golpe de Estado do mesmo dia, em 1973. Como destaca o cientista político uruguaio David Altman, que há 20 anos mora no Chile, ninguém no país justificou a ação dos militares.
— No Chile, os defensores do golpe andavam mais moderados, baixaram o tom, mas agora o pêndulo está se mexendo e se vê uma luta pelo legado de Pinochet — sustenta Altman, que é professor da Universidade do Chile.
Em 11 de julho, a Câmara dos Deputados aprovou, por 67 votos contra 48, um projeto de resolução que veta a presença de Pinochet em documentos sobre presidentes da República na Biblioteca do Congresso. O debate foi iniciado pela deputada comunista Lorena Pizarro, que afirmou que a ditadura iniciada em 11 de setembro de 1973 “transformou o país em cenário de extermínio, dor, tortura, assassinatos e desaparecimentos de pessoas”. Já o deputado republicano Johannes Kaiser disse que “muitos teriam preferido continuar na luta armada”.
O Chile discute, 50 anos depois, se o golpe foi ou não aceitável. Mais de 30 anos após a redemocratização do país, conclui Lagos, a esquerda ainda não conseguiu instituir como fato histórico que Pinochet foi um ditador.
Sua visão, compartilhada por muitos, é de que “sem Allende não teria existido Pinochet”. E de que “Pinochet salvou uma geração de chilenos de terminar em mãos do marxismo”. Perguntado sobre as graves violações dos direitos humanos durante a ditadura, Moreira concorda que a direita demorou muito tempo para reconhecer o que tinha acontecido, e hoje não justifica as violações cometidas.
— Aprendemos a lição, no Chile nunca mais haverá uma intervenção militar, os problemas da democracia devem ser resolvidos com democracia e não como se fez em 1973. Mas eram outras as circunstâncias, e Pinochet foi um bom presidente, que fez o Chile crescer durante duas décadas — diz o senador da UDI.