A execução da ialorixá Bernadete Pacífico é mais um capítulo da violenta novela que assombra os baianos
FABIOLA MENDONÇA
O brutal assassinato da ialo-
rixá Bernadete Pacífico, lí-
der quilombola da comuni-
dade Pitanga dos Palma-
res, em Simões Filho, re-
gião metropolitana de Salvador, coroa a
condição de insegurança pela qual os
baianos são submetidos e consolida a
Bahia como o estado mais violento do
Brasil, conforme revelado, em julho, pe-
lo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
em seu Anuário, a mapear a violência no
País. Mãe Bernadete, como era conhecida,
foi executada na quinta-feira 17 com 14 ti-
ros dos mais de 20 disparados pelos as-
sassinos, que até a conclusão desta repor-
tagem não haviam sido identificados. O
motivo do crime continua um mistério.
A principal linha de investigação
aponta para uma disputa de terra, uma
vez que a área do quilombo desperta co-
biça de ruralistas, interessados tanto na
exploração de madeira quanto no merca-
do imobiliário. A ialorixá vinha receben-
do ameaças de morte há seis anos e, de-
pois do assassinato do seu filho Gabriel,
outra respeitada liderança quilombola,
foi incluída no Programa de Proteção de
Testemunha. O crime está sendo inves-
tigado, sob sigilo, tanto pela Polícia Ci-
vil da Bahia quanto pela Polícia Federal.
“O Brasil é um país tão absurdo que,
mesmo quando fazem ameaças a um de-
fensor dos direitos humanos, as condi-
ções estruturais não permitem a pro-
teção das pessoas. Não queremos mais
mártires. Queremos que os defensores
dos direitos humanos possam atraves-
sar esse caminho em direção a uma so-
ciedade mais justa vivos e juntamente
conosco. Eu assumo a minha responsa-
bilidade, em nome do Estado brasileiro.
Nós não podemos aceitar essas falhas”,
lamentou Sílvio Almeida, ministro dos
Direitos Humanos.
O secretário de Justiça da Bahia, Felipe
Freitas, também reconhece a fragilidade
do programa. “A morte de uma defensora
de direitos humanos é inaceitável, ainda
mais se ela vinha sendo ameaçada. O go-
verno federal e o da Bahia estão revisan-
do todos os protocolos de proteção. Uma
tragédia como essa precisa fazer com que
a gente aprimore o programa, aprimore as
medidas de proteção, aperfeiçoe as ações
de policiamento em todo o País.”
Sílvio Almeida cobra do governo baia-
no uma explicação sobre o alto índice de
violência no estado, principalmente a le-
talidade em decorrência da ação policial.
No início de agosto, após o assassinato de
31 pessoas durante uma ação policial, Al-
meida acionou a Ouvidoria Nacional de
Direitos Humanos para apurar o caso
e para acompanhar a atuação da PM da
Bahia, considerada a mais letal do País,
superando até mesmo a do Rio de Janeiro.
Em julho, foram registradas 64 mor-
tes por parte de policiais baianos, de
acordo com levantamento feito pelo Ins-
tituto Fogo Cruzado. Em 2022, segun-
do o Fórum de Segurança Pública, a po-
lícia baiana matou ao menos 1.464 “sus-
peitos”, enquanto, no Rio de Janeiro, o
saldo foi de 1.330 mortes. Os dois esta-
dos, juntos, contabilizaram no ano pas-
sado 43% dos homicídios em decorrên-
cia da intervenção policial. Em meio ao
caos, o governo estadual minimiza os da-
dos da violência ao tentar desclassificar
o Anuário de Segurança Pública e sair em
defesa da Polícia Militar, sob a justifica-
tiva de sempre haver danos colaterais no
combate ao crime organizado.
Em nota circulada depois da divulga-
ção do Anuário, a Secretaria de Seguran-
ça Pública afirmou que “não coloca ho-
micídio, latrocínio ou lesão dolosa segui-
da de morte praticados contra um ino-
cente na mesma contagem dos homici-
das, traficantes, estupradores e assal-
tantes, entre outros criminosos, mor-
tos em confrontos com a polícia”. Ques-
tionado por CartaCapital, o órgão desta-
cou a “alta produtividade” dos policiais
que, “mesmo assim, diariamente, aca-
bam conduzindo as mesmas pessoas, que
na maioria das vezes acumulam diver-
sas passagens pelo mesmo tipo de crime”.
Segundo a secretaria, houve redução
de mortes violentas no estado: foram re-
gistradas 6.666 em 2016, ante 5.167 casos
no ano passado. Para Samuel Vida, pro-
fessor da Faculdade de Direito da UFBA,
coordenador do Programa Direito e Rela-
ções Raciais e membro do Afro Gabinete
de Articulação Institucional e Jurídica, o
Aganju, os mais de 16 anos dos sucessivos
governos do PT na Bahia deram continui-
dade à mesma linha adotada nos governos
carlistas, liderados pela oligarquia coman-
dada pelo já falecido Antônio Carlos Ma-
galhães, legitimando a violência policial.
Assistimos desde 2007, quando Jaques
Wagner assumiu o primeiro governo, uma
escalada nessa direção. Em vários mo-
mentos tivemos reuniões com Wagner, de-
pois com Rui Costa, questionando as es-
colhas, apontando outros caminhos, su-
gerindo outras possibilidades. Algumas
políticas foram adotadas na contramão
de tudo que foi historicamente defendi-
do pelo PT na Bahia. Uma delas foi desa-
tivar um grupo de repressão ao crime or-
ganizado”, lembra Vida, destacando que, à
época, a principal modalidade de violência
que atingia a população negra era produ-
zida por grupos de extermínio. “Uma das
primeiras medidas de Wagner foi acabar
com esse grupo e remeter a apuração dos
crimes de extermínio para uma delegacia
especializada em proteção à vida, que aca-
bou por diluir esse trabalho”, diz o pesqui-
sador, ressaltando que o governo Wagner
nem sequer trocou o Comando da Polícia
Militar que herdou do seu antecessor, o go-
vernador Paulo Souto, mantendo a mesma
linha de atuação policial.
Um dos episódios mais relevantes que
marcam a violência policial na Bahia nas
gestões petistas é a Chacina Cabula, de
2015, que deixou o saldo de 12 mortos.
Na época, o então governador Rui Costa
comparou a atuação dos policiais a um
jogo de futebol. “É como um artilheiro
em frente ao gol que tenta decidir, em
alguns segundos, como é que ele vai
botar a bola dentro.” A justificativa, co-
mo em outros casos, foi de que as víti-
mas tinham envolvimento com o crime
organizado, alegação depois desmenti-
da. “Dos 12 jovens, somente um deles ti-
nha uma passagem policial por briga no
Carnaval, algo que pode acontecer com
qualquer baiano”, denuncia Vida, desta-
cando que o ex-governador apoiou o pa-
cote anticrime de Sergio Moro, a propor
o chamado excludente de ilicitude, espé-
cie de carta branca à polícia para matar.
Terceiro governador petista a coman-
dar o estado nos últimos anos, Jerônimo
Rodrigues saiu em defesa da polícia quan-
do uma equipe de jornalistas fazia uma
reportagem sobre a violência na Bahia.
“Respeitem a nossa Polícia Militar, o que
vocês estão fazendo é irresponsabilida-
de”, disse. “Há uma situação muito esqui-
sita na Bahia, porque temos um governo
do PT desde 2007 que negligencia a se-
gurança pública de uma forma geral, mas
em particular a violência policial. Se fosse
um governo bolsonarista, seria comple-
tamente natural, mas, realmente, num
governo de esquerda é uma situação trá-
gica”, desabafa o cineasta Bernard Attal,
diretor do filme O Descanso, que relata
a história de mais uma vítima da polícia
baiana. O documentário de 2014 narra
o desaparecimento de Geovane, um jo-
vem negro da periferia de Salvador, que
foi abordado e morto pela PM baiana.
“A polícia baiana tem um procedimen-
to específico de atuação em determinados
espaços urbanos, que é direcionado a cer-
tos setores da população, a subcidadania.
Nesses espaços, a abordagem policial po-
de se iniciar com a muito comum agres-
são verbal e culminar com a eliminação
física. O policiamento é militarizado, os-
tensivo e belicoso, aspectos que na ativi-
dade policial têm sido os responsáveis pe-
la maior letalidade”, analisa o sociólogo
Antônio Lima, autor dos livros Ras-
tros de Fogo e Sangue e Rotas Alteradas.
Mariana Possas, professora do Depar-
tamento de Sociologia da UFBA e pesqui-
sadora do Laboratório de Estudos Sobre
Crime e Sociedade, classifica como um
“grande mal-entendido” o discurso de
que o papel da polícia é combater crime,
ainda que se produza violência, narrativa
que, muitas vezes, é adotada também por
governadores. “É, no fundo, não mexer
na estrutura. E mexer estruturalmente
significa produzir algum tipo de contro-
le, observar e fiscalizar o serviço da po-
lícia, exigindo, por exemplo, como meta
de desempenho, a redução da letalidade”,
afirma. “Somos um país recordista de ho-
micídios, que também tem a polícia mais
violenta. Esses números fazem parte de
um mesmo fenômeno. A gente olha a po-
lícia combater determinadas facções e
acha que isso vai reduzir os homicídios,
quando, na verdade, só aumenta”, acres-
centa Possas, lembrando que, para pensar
no problema da violência na Bahia, assim
como no País como um todo, é preciso re-
ensar o papel da polícia na sociedade.
O cientista político Cláudio André de
Souza, professor da Universidade da In-
tegração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira (Unilab), reconhece os
elevados índices de violência na Bahia,
mas explica que não se trata de um pro-
blema localizado e cita o estímulo à vio-
lência durante os quatro anos do gover-
no Bolsonaro. Referindo-se ao assassi-
nato de Mãe Bernadete, ele afirma exis-
tir um clima de impunidade que impe-
ra no País, mais um incentivo para os
criminosos. “Há uma perseguição, um
cenário que se acirrou ainda mais por
conta do bolsonarismo, que legitimava
a ocupação irregular da terra e sua ex-
ploração comercial de maneira danosa.”
João Jorge, presidente da Fundação
Palmares, lembra que o histórico de vio-
lência na Bahia perpassa todos os gover-
nos, mas que teve uma escalada princi-
palmente na era Bolsonaro. “Depois de
ouvir o presidente falar tanto em armas
e propagar a violência, olha aí o preço que
a sociedade brasileira está pagando. Es-
tamos nos matando. A Bahia virou uma
máquina de matar pessoas pretas e po-
bres. Nos bairros ‘nobres’, nunca vemos
gente sendo atingida por uma bala perdi-
da, parece que há um escudo invisível.”
A secretária de Promoção da Igualda-
de Racial da Bahia, Ângela Guimarães,
também atribui o aumento da violência
ao governo Bolsonaro e diz não haver res-
posta fácil, nem mágica, para resolver os
ataques contra a população negra e peri-
férica no estado. “Atuamos por meio de
campanhas de enfrentamento ao racis-
mo no sentido de transformar um cons-
ciente coletivo, porque, na prática, na vi-
são de grande parte da população, ainda
vigora uma compreensão de que violên-
cia se combate com mais violência”, la-
menta. “A gente combate violência com
distribuição de renda, com geração de
emprego, com educação de qualidade,
com acesso a equipamentos públicos, de
saúde, de cultura, de esporte e de lazer.”
Pressionado, Jerônimo Rodrigues
tenta minimizar o desgaste e vem apre-
sentando medidas para reduzir as esta-
tísticas de violência. Uma delas é a im-
plantação de câmeras nas fardas dos po-
liciais, recurso que deve ser instalado já
nos próximos meses. Nas últimas sema-
nas, ele tem participado de eventos para
entrega de viaturas e armamento às cor-
porações. “Estamos entregando viaturas
para toda a Bahia, algumas semiblinda-
das. Estamos fazendo agenda constan-
te de segurança pública”, disse o gover-
nador na terça-feira 22, em evento para
a entrega de veículos e equipamentos no
município de Teixeira de Freitas. •
CARTA CAPITAL
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