Em sete horas de depoimento, o líder
sem-terra joga a última pá de cal na defunta CPI do MST
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A
Era para ser uma arapuca. Na
terça-feira 15, o deputado e
ex-ministro Ricardo Salles,
relator da CPI do MST, e
seus aliados estavam prepa-
rados, ou assim pensavam, para empa-
redar João Pedro Stedile, a mais emble-
mática liderança dos sem-terra. Por
quase sete horas, um ascético Stedile
submeteu-se a um interrogatório digno
de uma comédia-pastelão.
Na verdade, quase ninguém estava in-
teressado nas respostas. Enquanto bol-
sonaristas de todas as estirpes insulta-
vam o convidado, Salles aproveitou os
holofotes para dar pistas do que preten-
de escrever no relatório final, obra qua-
se exclusiva de sua imaginação. O ex-mi-
nistro acusou o movimento de explorar
os assentados e cometer crimes. Tentou
arrancar do depoente a origem do finan-
ciamento ao grupo e fez perguntas des-
conexas. Uma delas? Existe na China al-
go parecido ao MST? Sereno e didático,
Stedile respondeu: “Não, eles fizeram a
reforma agrária em 1949”. Acostumado a
frequentar ambientes mais hostis, o líder
sem-terra não se deixou abalar. Às vezes
benevolente, às vezes professoral, apro-
veitou a oportunidade para espalhar li-
ções sobre conflitos agrários, concentra-
ção de terra, história e desigualdade. No
fim, venceu por nocaute e despejou a úl-
tima pá de cal em uma CPI que morreu
por inanição e ainda não se deu conta.
Diante das acusações de comércio ile-
gal de terra, Stedile colocou em dúvida o
viés da comissão, criada para dar palan-
que ao bolsonarismo em busca de uma
causa. “Temos 500 mil famílias assen-
tadas e 60 mil acampadas. Se vocês bo-
tassem uma amostra aleatória de 1%,
daria 5 mil famílias que teriam de ou-
vir. É evidente que esses casos que en-
contraram, não quero julgar se verda-
deiros ou não, podem existir por conta
da categoria sociológica que expliquei, o
lúmpen proletariado. Mas não podemos
atribuir alguns casos como se aquilo fos-
se geral. A natureza vai em determina-
do ponto dos eixos, mas isso não signi-
fica que seria maioria”, explicou, antes
de sugerir à Câmara a contratação de
uma universidade para fazer uma pes-
quisa de campo com os acampados e as-
sentados e ter uma mostra significativa
da realidade na base do MST. Salles caiu
na própria armadilha depois de enume-
rar dados sobre o agronegócio e permitir
os comentários do convidado. Mais uma
aula sobre o conceito de latifúndio, agro-
negócio, agricultura familiar e as maze-
las sociais no campo.
Entre uma resposta e outra, Stedile
aproveitou para estocar o ex-ministro do
Meio Ambiente, a quem acusou de des-
conhecer a realidade ambiental e rural
do Brasil profundo. Após repetir as mes-
mas perguntas na tentativa de incrimi-
nar o MST e sem ter mais o que dizer, Sal-
les quis saber o motivo de o movimen-
to não ter realizado mais ocupações du-
rante o governo Bolsonaro. “Primeiro,
por conta da pandemia de Covid-19, não
íamos estimular nenhum tipo de agru-
pamento. Depois, por causa do governo
fascista que queria resolver tudo na vio-
lência. Ninguém é louco, sabia que corria
risco de vida.” Coube aos bolsonaristas
Éder Mauro (PL-PA), Evair Vieira de Me-
lo (PP-ES), Rodolfo Nogueira (PL-RS) e
Coronel Assis (União Brasil-MT) os ata-
ques mais baixos contra o líder sem-ter-
ra, chamado de “bandido, vagabundo e
delinquente”, e o MST, comparado ao
“narcotráfico e quadrilha organizada”.
Em vários momentos, Salles insi-
nuou ter provas contundentes contra
integrantes do MST, parlamentares in-
cluídos, e ameaçou enumerá-las no re-
latório final, que reservará um capítulo
específico aos supostos autores dos cri-
mes. “Vamos dar nomes, fatos e casos.”
O teor do texto do deputado é um segre-
do de polichinelo: tende a criminalizar o
movimento e associá-lo ao governo Lu-
la, ao PT e ao PSOL. Ao mesmo tempo,
até os tapetes verdes do Congresso sa-
bem que a obra-prima do ex-ministro
terá o destino da lata de lixo. A base go-
vernista obteve uma pequena maioria
na comissão e o presidente da Casa, Ar-
thur Lira, em vias de fechar um acordo
de “governabilidade” com o Palácio do
Planalto, decidiu largar os bolsonaris-
tas à deriva. No início do mês, após ar-
ticulação do líder do governo, José Gui-
marães (PT-CE), oito parlamentares do
Centrão de oposição foram substituídos
por nomes alinhados a Lira.
A manobra levou Salles a ensaiar um
piti. O relator ameaçou abreviar o tempo
da CPI, prevista para acabar em 14 de se-
tembro, com possibilidade de prorroga-
ção por 60 dias. A ideia de antecipar o re-
latório para a quarta-feira 16 acabou, po-
rém, abortada. “Não faz sentido alongar
uma comissão cuja maioria dos mem-
bros é governo e ligada umbilicalmen-
te ao MST (sic). Há uma movimentação
dos partidos que querem ser governo pa-
ra consolidar apoio e formar bases que
o Centrão sempre negociou”, reclamou.
Depois de voltar atrás e manter os pra-
zos anteriores, o deputado agendou uma
nova diligência para o sábado 26, no sul
da Bahia. A estratégia é associar os sem-
-terra baianos aos governos petistas no
estado. O relator também tentou convo-
car o ministro da Casa Civil, Rui Costa,
ex-governador baiano, mas teve os pla-
nos frustrados por Lira, que derrubou
a convocação. Na manhã da quarta-fei-
ra 16, aliás, o comando da CPI reuniu-se
com Lira para tentar reassumir o con-
trole da situação. Os bolsonaristas pre-
tendiam convencer o presidente da Câ-
mara a desfazer as substituições de inte-
grantes da comissão. O desfecho depen-
de agora da disposição do Palácio do Pla-
nalto em atender às demandas do Cen-
trão na reforma ministerial.
Há três meses em funcionamento,
a CPI realizou diligências no Pontal do
Paranapanema, em São Paulo, no fim de
maio, e em Alagoas e Goiás, em 11 e 14 de
agosto. No Pontal, por ignorância ou má-
-fé, visitaram dois acampamentos, o Ol-
ga Benário e Miriam Farias e a Fazenda
Santa Mônica, sem ligação com o MST.
A comitiva parlamentar foi acusada ain-
da de invadir as casas sem autorização.
Em Alagoas, parlamentares estiveram
no município de Atalaia e descumpri-
ram a rota aprovada anteriormente, nos
assentamentos Ouricuri I, II e III. “Eles
izeram diligência sem informar qual se-
ria o roteiro aos demais integrantes. É
abuso de poder”, dispara Sâmia Bomfim,
representante do PSOL na comissão. A
deputada e outras colegas têm sido alvo
de misoginia, em especial por parte do
Coronel Zucco, presidente da CPI.
Jornalistas foram proibidos de acom-
panhar a comitiva, talvez para não tes-
temunharem a intimidação de acampa-
dos, conforme denúncias posteriores. Há
outros desmandos. Em Goiás, Adriana
Accorsi, do PT, integrante da comissão,
foi impedida de participar de uma reu-
nião. A comitiva foi acusada de invadir as
casas do acampamento Dona Neura, na
Fazenda São Lukas, na busca por “pro-
vas” contra o movimento. No mesmo dia,
o Incra deu início do processo de conver-
são da área em assentamento. “As dili-
gências têm uma característica muito co-
mum, inclusive comum à própria natu-
reza da CPI, que é ter pouco foco, muita
intencionalidade em criminalizar e par-
tir de pressupostos bastante preconcei-
tuosos em relação aos territórios e às fa-
mílias. Há um abuso de poder e um auto-
ritarismo bastante exacerbado por par-
te especialmente dos que conduzem as
diligências, na figura do presidente e do
relator, usando em muitos momentos
uma pressão moral sobre as lideranças
ou mesmo sobre as famílias”, acusa Ceres
Hadich, da direção nacional do MST.
Segundo a militante, as diligências
não são combinadas com a totalidade
dos integrantes da CPI e ficam a cargo
de Salles e Zucco, alinhados com gru-
pos políticos vinculados a delegacias e
governos locais, com o objetivo de per-
seguir ou desmoralizar o movimento.
“O único objetivo é criminalizar o MST
e impor limites à reforma agrária, uma
política tão necessária em nosso país.
Mas assim, como nas outras CPIs, va-
mos seguir nosso caminho, lutando pela
democratização do acesso à terra. Con-
tinuaremos defendendo a democracia
e combatendo todas as injustiças so-
ciais”, destaca Ayala Ferreira, coorde-
nadora Nacional de Direitos Humanos
do MST. “Pelo histórico do relator e pela
forma parcial com que conduziram es-
ta CPI, teremos um relatório que pouco
contribuirá para enfrentar os problemas
reais no campo brasileiro.”
Para Sâmia Bomfim, a CPI não tem
mais força e só serve para produzir ma-
terial midiático e movimentar a rede
bolsonarista. “A comissão perdeu com-
pletamente o sentido e consideramos es-
se fato uma vitória muito grande. Eles ti-
nham a maioria, tinham a presidência, a
relatoria, o tema era favorável a eles, por-
que partia do pressuposto de criminali-
zar o movimento social, e estão saindo
desmoralizados, correm o risco de per-
der o relatório e ainda não vão conseguir
emparedar o governo Lula, um dos ob-
jetivos.” Um relatório paralelo elabora-
do por parlamentares progressistas, diz
a deputada, será apresentado como op-
ção de voto em separado, na tentativa de
substituir o parecer de Salles, caso este
seja, de fato, derrotado. A CPI do ex-mi-
nistro, tudo indica, terá o mesmo desti-
no das quatro anteriores que pretendiam
demonizar os sem-terra. Vai gerar algu-
ma espuma e nenhuma consequência.
Na quarta-feira 16, enquanto a CPI se
recompunha do depoimento de Stedile
do dia anterior, mais de 100 mil campo-
nesas realizavam a 7ª Marcha das Mar-
garidas na Esplanada dos Ministérios.
As campesinas cobravam a retomada da
reforma agrária e mais políticas públicas
direcionadas às mulheres do campo.
CARTA CAPITAL
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