Sequestrada pela ditadura na
porta da maternidade, Rosângela Paraná
procura os pais biológicos há dez anos
P O R R E N É R U S C H E L
Rosângela procura uma his-
tória, a sua própria história.
Ela não sabe exatamente a
sua idade nem a cidade on-
de nasceu. Não sabe quem
são seus pais biológicos nem avós, se tem
irmãos ou tios. Para entender o presen-
te, vasculha o passado. Os dados do re-
gistro de nascimento são falsos. Foram
criados para dar legalidade a uma ado-
ção ilegal. Rosângela só tem certeza de
que, recém-nascida, foi usurpada de sua
família pela ditadura. O pai adotivo, ex-
-militar, trabalhou por muitos anos co-
mo motorista do general Ernesto Geisel,
à época presidente da Petrobras e que vi-
ria ocupar a Presidência da República de
1974 a 1979. O enredo dessa história está
repleto de fatos secretos, acobertados
por mentiras e falsidades.
Tudo começou em julho de 2016, pou-
cos meses após o lançamento do roman-
ce Depois da Rua Tutoia, no qual o jor-
nalista Eduardo Reina envereda pela fic-
ção para contar a história de um bebê se-
questrado pela ditadura e entregue a um
empresário paulista que financiava a re-
pressão. A filha de Rosângela leu o livro e
procurou o autor. “Stheffane relatou al-
guns fatos e pediu para ajudá-la a encon-
trar os pais biológicos de sua mãe.”
Aquele foi o ponto de partida de ou-
tro livro do jornalista, desta vez uma
obra não ficcional, Cativeiro Sem Fim,
livro-reportagem que narra não ape-
nas a história de Rosângela, mas de ou-
tros 18 brasileiros sequestrados pela di-
tadura quando ainda bebês. “Tudo que
sei da minha vida devo ao Eduardo, ele
sabe mais de mim do que eu mesma”, diz.
A mulher retratada neste texto foi re-
gistrada no Rio de Janeiro como Rosân-
gela Serra Paraná. No documento, consta
que nasceu em 1º de outubro de 1963, mas
a certidão só foi lavrada em 22 de setem-
bro de 1967, quase quatro anos depois. O
local de nascimento informado é a Rua
Marquês de Abrantes, nº 260, no bairro
do Flamengo, mas o logradouro jamais
abrigou uma maternidade ou serviu de
residência à família Paraná. Na verdade,
o imóvel pertence ao Instituto de Previ-
dência dos Servidores Públicos cariocas,
atual Rio Previdência, desde 1958.
O pai adotivo, já falecido, Odyr de Pai-
va Paraná, motorista e ex-militar, filho
do sargento Arcy Oscar Paraná, neto do
major Manoel Paraná, colega de turma
do general Ernesto Geisel e sobrinho do
médico-general Manoel Hemetério de
Oliveira Paraná, que mesmo na reserva
manteve estreito relacionamento com
os militares da ditadura. A mãe, Nilza da
Silva Serra, também falecida, vivia com
Odyr seu segundo relacionamento e não
podia ter filhos, o que reforça a suspeita
da adoção ilegítima da criança.
Da infância Rosângela guarda apenas
flashes de memória. O excesso de medica-
mentos a que foi submetida desde crian-
ça, o medo e a depressão transformaram
sua vida em um enorme martírio. Quando
morava em Quintino, no subúrbio cario-
ca, o lar estava sempre repleto de amigos,
jogos de azar e bebidas alcoólicas, recor-
da. “Em minhas memórias, estou quase
sempre dormindo. Minha rotina era vol-
tar da escola, almoçar, brincar um pouco e
logo em seguida minha ‘mãe’ me dava um
remédio que me fazia dormir até de noite.
Jantava e voltava a dormir. Algumas ve-
zes, de tanto remédio, cheguei a apagar, a
desabar no chão, sem sentido.”
Nessa época, o pai adotivo de Rosân-
gela havia dado baixa no Exército, mas
acumulava dois empregos, um como mo-
torista em uma empresa de ônibus cole-
tivos e outro no Ministério de Minas e
Energia. Foi quando serviu ao então
presidente da Petrobras, general Ernes-
to Geisel. Além de motorista, Odyr era
uma espécie de “faz-tudo”. Não tinha ho-
rário para servir o general. Era chama-
do a qualquer hora do dia ou da noite, in-
clusive domingos ou feriados. Em alguns
fins de semana, a família o acompanhava
ao sítio de Geisel, em Teresópolis, na re-
gião serrana do Rio de Janeiro.
Somente em setembro de 2013 desco-
briu não ser filha biológica do casal Odyr
e Nilza. Em sua página no Facebook, uma
“prima” escreveu que ela deveria ser gra-
ta à família Paraná por tê-la tirado de
sua mãe, “uma prostituta e subversiva”.
“Meu mundo virou de cabeça para bai-
xo, principalmente depois que conversei
com as tias Odilla e Odilma, que confir-
maram a história da adoção.” Odilla che-
gou a revelar que a data do nascimento
no registro é falsa, e foi escolhida para
homenageá-la, era o dia de seu aniversário
“O ano também seria uma invenção.”
Rosângela apressou-se a procurar o
meio-irmão, que confirmou a narrativa
das tias, mas alertou que “ninguém da fa-
mília iria dizer nada, porque existe um
pacto em relação ao assunto”. Ele acres-
centou que a mãe biológica dela era uma
mulher “jovem e muito bonita”, e o pai
estaria preso. Passados dez anos da reve-
lação, ela não conseguiu descobrir mais
quase nada. “Desde então, nunca mais
fui a mesma. Aliás, nunca fui. Sou o que
quiseram que eu fosse, aquilo no que me
transformaram”, desabafa.
O jornalista Eduardo Reina enfren-
tou as mesmas hostilidades quando ten-
tou apurar os fatos. Na busca por informa-
ções, encontrou apenas o silêncio da famí-
lia. Uma “tia” de Rosângela confirmou a
versão de que a mãe seria “uma badernei-
ra” e que seu irmão pegou a criança em um
hospital do Rio de Janeiro, mas se nega a
dizer o nome. Afirma ainda que o “bebê foi
dado na porta da maternidade” e que Arcy,
o “avô” militar, sempre insistiu para que
ninguém comentasse que ela era adotada.
Passados tantos anos, qual o sentido
de manter esse mistério? Alguns episó-
dios ocorridos tanto com a vítima quan-
to com o jornalista dão indícios de que to-
da essa trama não pode vir à tona. Rosân-
gela chegou a receber ameaças para não
levar adiante sua história. Ambos rece-
beram informações plantadas para desa-
creditar tudo o que foi investigado.
Rosângela continua em busca de res-
postas. “Procurei ajuda de muitos, mas
poucos me estenderam a mão. Só quero
saber a minha origem, quem são meus
pais e o que fizeram com eles. Se tenho
irmãos, quem é minha família, para po-
dermos comemorar juntos as datas es-
peciais. Quero abraçar minha mãe, sen-
tir seu cheiro, me sentir protegida, ama-
da. Ou, simplesmente, saber qual é o meu
verdadeiro sobrenome.” •
CARTA CAPITAL
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