Como a emissora tornou-se o braço mais estridente do bolsonarismo
Ana Clara Costa
Soprava
uma leve brisa noturna no Rio de Janeiro quando Tucker Carlson, a
estrela mais reluzente da televisão a cabo dos Estados Unidos, deixou
seu apartamento no hotel Fasano, no Arpoador, em direção ao aeroporto.
Naquela noite de junho, voou para Brasília onde, no dia seguinte,
entrevistaria pela primeira vez o presidente Jair Bolsonaro, no Palácio
do Planalto. Carlson aceitou o convite articulado pelo assessor
presidencial Filipe Martins, pupilo do falecido Olavo de Carvalho e fã
de Donald Trump e de seu estrategista de campanha, Steve Bannon. Na
quarta-feira, 29 de junho de 2022, dia da entrevista, o assessor estava
radiante. O presidente estava ansioso. E o jornalista estava cansado.
Durante a viagem, continuara apresentando o Tucker Carlson Tonight, seu programa diário na Fox News, a partir de um microestúdio montado no hotel, tendo a Praia de Ipanema como cenário.
Em
mais de uma hora de entrevista, da qual 29 minutos foram ao ar,
Bolsonaro sentiu-se ao lado de um aliado. Criticou a obrigatoriedade da
vacina, minimizou o racismo no Brasil, denunciou que as pesquisas
eleitorais são manipuladas. Carlson, cujo programa, nas palavras do New York Times,
“talvez seja o mais racista da história da tevê a cabo” dos Estados
Unidos, gostou do que ouviu e perguntou por que a Fox News, onde ele
exerce uma enorme influência na radicalização do conservadorismo
norte-americano, não estava instalada no Brasil para atender aos
telespectadores bolsonaristas. “A CNN está aqui”, disse. “O senhor teve
mais de 50 milhões de votos nas eleições. A CNN é um ator político aqui,
assim como a Globo. Mas não há canal de tevê para os seus eleitores.
Por quê?”
Bolsonaro começou adulando o apre-
sentador. “Se eu pudesse lançar um ape-
lo a você, eu poderia apenas dizer que
você seria muito bem-vindo. Você seria
um excelente contraponto aos outros
meios de comunicação.” Em seguida,
disse que “há muito poucos veículos sem
viés no Brasil. Então precisamos de
mais”, e fez uma recomendação: “Há um
programa, no canal Jovem Pan, chama-
do Os Pingos nos Is, e eles são excelentes.
Eles realmente mostram as coisas boas
que acontecem no país.” Tucker Carlson,
cujo programa tem a maior audiência da
tevê a cabo norte-americana, ouviu o elo-
gio sem esboçar qualquer reação.
Os Pingos nos Is também é um sucesso.
Criado em 2014 sob o comando do jorna-
lista Reinaldo Azevedo, que apresentou a
atração durante três anos, é um programa
transmitido ao mesmo tempo pela rádio
Jovem Pan, dona da maior audiência no
segmento de notícias em São Paulo, pela
tevê a cabo Jovem Pan, hoje o segundo
canal de notícias mais popular na tevê
paga, e pelo seu canal no YouTube, onde
tem mais de 100 milhões de visualiza-
ções mensais. É o único programa de de-
bate político na lista dos mais vistos que
não é exibido pela GloboNews, a maior
tevê de notícias a cabo do país. É ancorado
pelo jornalista Vitor Brown, com comen-
tários de uma ex-jogadora de vôlei, Ana
Paula Henkel, e outros três jornalistas –
José Maria Trindade, Guilherme Fiuza e
a estrela do programa, Augusto Nunes.
Não há contraditório. Todos os comenta-
ristas pensam a mesma coisa.
A pedido da piauí, a Novelo Data, uma
consultoria de análise de dados, fez
uma radiografia de Os Pingos nos Is. Exa-
minou 1 080 episódios, num total de
1 994 horas de programação. O material
foi ao ar entre 1 de janeiro de 2019, data
em que Bolsonaro tomou posse, e 30 de
junho passado, quando completou três
anos e meio de mandato. Nesse período
de 42 meses, Os Pingos nos Is cresceu
muito em audiência. Sextuplicou as visua-
lizações no YouTube e triplicou o número
de inscritos. Mais do que isso, fez uma
trajetória exemplar no processo de radica-
lização política, que começou com um
antipetismo virulento, como demonstrou
a reportagem A nova sinfonia paulistana,
na piauí_106, julho de 2015, e terminou
abraçando a extrema direita bolsonarista.
Oestudo realizado pela Novelo Data
mostra que, no começo do governo,
Os Pingos nos Is era um programa
moderadamente favorável a Bolsonaro.
Às vezes, até criticava o governo ou o go-
vernante. Em outubro de 2019, por exem-
plo, ao comentar um tuíte do presidente
associando o Supremo Tribunal Federal
(STF) a uma imagem de hienas, Augusto
Nunes afirmou que se tratava de “mole-
cagem” e “brincadeira perigosa”, e aler-
tou que “não se brinca com esse tipo de
declaração”. A essa altura, a Corte era
bastante mencionada no programa, mas
não ocupava o centro da pauta. Fora cita-
da 2 532 vezes ao longo de 343 episódios
até a metade de 2020. Também houve
críticas amenas à demissão de ministros e
às suspeitas de interferência do presidente
na Polícia Federal.
Em 2020, com a chegada da pande-
mia e a radicalização do discurso de Bol-
sonaro contra as medidas sanitárias, o
tom começou a subir nos programas da
Jovem Pan – até que chegou o dia 24 de
abril. Nessa data, o ex-juiz Sergio Moro
deixou o Ministério da Justiça, acusando
olsonaro de interferir na Polícia Federal
para proteger a família. O programa en-
tão entrou em curto-circuito. “O governo
que assumiu em 1º de janeiro de 2019,
sob o olhar esperançoso de milhões de
brasileiros que apostam pela vitória no
combate contra a corrupção, esse gover-
no terminou hoje”, decretou Nunes. Era
um sinal de que o programa tomaria um
rumo definitivamente crítico ao governo.
Aconteceu o contrário. “Quando o
Moro saiu, tínhamos a certeza de que
o governo tinha acabado”, diz um profis-
sional que integra a produção da emissora
e falou à piauí sob condição de anonima-
to. Naquela altura, Tutinha teve a mesma
certeza e chegou a decretar o fim do
apoio ao bolsonarismo, anunciando que
o novo tom seria dado pelo jornalista José
Maria Trindade em seu comentário em
Os Pingos nos Is. Mas antes que a ordem
fosse dada, o empresário foi bombardea-
do por informações de que a audiência
não havia desembarcado. “Nos comentá-
rios, víamos que a audiência seguia com
o Bolsonaro, não com o Moro,” relatou o
funcionário, que compilava as críticas e
xingamentos que se amontoavam no ca-
nal do programa no YouTube. Outra ob-
servação sensibilizou o bolso de Tutinha:
se a imprensa estava majoritariamente
contra o presidente naquele momento,
quem atenderia a audiência que ainda era
favorável a ele? Assim, na medida em que
foi constatando que a audiência abando-
nara Moro e mandara às favas seus pruri-
dos anticorrupção, continuando fiel ao
presidente, Os Pingos nos Is mergulhou
de vez no bolsonarismo – e o fez com
uma voracidade ideológica poucas vezes
vista na mídia brasileira.
O STF tornou-se o maior alvo do pro-
grama, sobretudo depois que Bolsonaro
ampliou a frequência e a virulência dos
ataques à Corte, a ponto de ameaçar o
ministro Alexandre de Moraes e lançar
o grito do “Acabou, porra!”. Quando fi-
cou claro que o STF era – como é até hoje
– o obstáculo mais sólido aos planos gol-
pistas de Bolsonaro, Os Pingos nos Is as-
sumiu a trincheira. Dessa época em
diante, até o dia 30 de junho passado, a
Corte ganhou perto de 5 mil menções,
um crescimento de quase 100%, e apa-
receu em 486 episódios. O STF, que antes
não devia ser desrespeitado, passou a ser
visto como “casa da sogra”, “ameaça ao
regime democrático” e “o mais feroz
partido de oposição ao Bolsonaro”.
Em julho de 2021, quando o presiden-
te fez uma live prometendo revelar provas
de fraude nas urnas, Nunes disse que não
esperava “nenhuma irregularidade docu-
mentada”, mas afirmou que era “fácil
addulterar o voto com qualquer sistema” e
que estava “intrigado com a resistência à
tentativa de melhorar o sistema de vota-
ção” por parte do STF. “Não dá para enten-
der por que eles são contra”, disse. “Isso é
muito estranho. E tudo que é estranho
precisa ser esclarecido.” Até então, o Tri-
bunal Superior Eleitoral (TSE) não era o
centro da pauta do programa. Entre o iní-
cio do mandato e a metade de 2020, teve
apenas 244 menções em 124 episódios.
Com a proximidade de uma eleição
presidencial em que Lula lidera em todas
as pesquisas e todos os cenários, ficou cla-
ro que o ataque à integridade das urnas
eletrônicas era o centro da estratégia gol-
pista de Bolsonaro – e o programa virou
sua câmara de eco. As menções ao TSE
escalaram para quase 2 mil e apareceram
em 279 episódios. O tribunal passou a ser
tratado como “autoritário”, as urnas torna-
ram-se “questionáveis” e, em que pese
Bolsonaro jamais ter apresentado um fia-
po de prova contra a votação eletrônica,
os comentaristas consideram que as frau-
des são uma hipótese plausível.
O ministro Edson Fachin, o presidente
do TSE que tem sido incansável na defesa
da urna eletrônica, é descrito como “ad-
vogado do MST”, o que é falso. O ministro
Luís Roberto Barroso, ex-presidente do
TSE, é o “advogado do Battisti”, em referên-
cia ao período em que participou da defe-
sa de Cesare Battisti, o ex-integrante de
um grupo armado na Itália, condenado à
prisão perpétua por terrorismo. Alexandre
de Moraes, que comanda o inquérito que
investiga as milícias digitais de Bolsonaro,
é “um homem despreparado”, “um vilão”
que adota “métodos mafiosos”.
Quem assistiu ao programa nesses três
anos e meio pouco ouviu falar de assuntos
como rachadinha, o esquema de corrup-
ção da família Bolsonaro que veio a públi-
co em dezembro de 2018. Foram apenas
144 menções entre janeiro de 2019 e ju-
nho deste ano. O orçamento secreto, ins-
trumento que o presidente criou para
comprar apoio no Congresso e cuja exis-
tência foi denunciada pelo jornal O Esta-
do de S. Paulo em maio do ano passado,
apareceu apenas quarenta vezes. A infla-
ção, que atingiu seu ponto mais alto desde
o Plano Real e corrói os planos de reelei-
ção de Bolsonaro, está entre os termos
mais mencionados do programa. Foram
1 866 vezes, mas que ninguém se engane:
a inflação que galvaniza a atenção do
Pingos nos Is é a da Argentina, país men-
cionado mais de 2 mil vezes no programa.
O presidente da Argentina, Alberto Fer-
nández, é de esquerda e amigo de Lula.
É comum que o programa mude de
assunto quando o tema principal é preju-
dicial à imagem de Bolsonaro, criando
uma cortina de fumaça. A análise da No-
velo Data mostra que, no dia da prisão de
Fabrício Queiroz, o miliciano da rachadi-
nha, o termo mais usado pelos comenta-
ristas foi “STF”. No dia em que a inflação
bateu recorde, o debate principal envolvia
os termos “Bolsonaro”, “Lula” e “STF”. No
dia da prisão de Milton Ribeiro, o ex-mi-
nistro da Educação suspeito de montar
um balcão de negócios no Ministério da
Educação, seu nome foi apenas o quarto
termo mais mencionado no programa,
enquanto “Bolsonaro”, “Lula” e “STF” do-
minaram o ranking de menções.
Embora os casos de corrupção tenham
se multiplicado no governo – o mais re-
cente revelou malas de dinheiro do orça-
mento secreto no Maranhão –, o tema foi
perdendo incidência no programa a par-
tir da segunda metade de 2020, depois da
saída de Moro do governo. O ministro
da Economia, Paulo Guedes, em que pe-
sem a inflação, o desemprego, os juros e
as cinco ocasiões em que o governo furou
o teto de gastos, também foi sumindo dos
comentários. Em compensação, “liberda-
de” e “liberdade de expressão” assumem
uma relevância que não tinham antes.
As menções aumentaram 153%. A mu-
dança acompanha o discurso de Bolsona-
ro, que foi gradualmente substituindo
“corrupção” por “liberdade”.
Cada tema precisa de um líder que o
represente. A “corrupção” era personifica-
da por Moro, apresentado no programa
Os Pingos nos Is como mestre planetário
do combate à corrupção, em linha com o
apoio dos lavajatistas a Bolsonaro. No lu-
gar da “corrupção” e de Moro, entraram
“liberdade” e Daniel Silveira (PTB-RJ), de-
putado federal de atuação apagada que, ao
ser preso pelo STF por ameaçar os minis-
tros do Supremo num vídeo publicado na
internet, alçou-se ao estrelato da Jovem
Pan e tornou-se um símbolo da “luta pela
liberdade”. Em Os Pingos nos Is, foi men-
cionado 1 219 vezes em 185 episódios.
Na grade do programa também en-
tram temas praticamente fora da agenda
ou com repercussão mínima nos demais
veículos de imprensa, sites ou redes so-
ciais. O “poder moderador” é um bom
exemplo. A expressão – que já apareceu
em 73 episódios do programa – é usada
para definir o papel que os bolsonaristas
atribuem às Forças Armadas, o de mo-
derar os conflitos entre os poderes civis.
A tese não tem fundamento constitucio-
nal, como já declararam os ministros do
STF, mas é assunto caro aos extremistas
que pregam “intervenção militar com
Bolsonaro”. Examinando-se as menções
à tese do “poder moderador” no Pingos
nos Is e como ela trafega nos canais da
extrema direita, constata-se que o pro-
grama não é sempre pautado pelos bol-
sonaristas, mas também os pauta.
Até março passado, os novos vídeos
defendendo o papel de árbitro das Forças
Armadas tinham 411 mil visualizações.
Em abril, quando Bolsonaro deu o indul-
to ao deputado Daniel Silveira, o símbolo
da “luta pela liberdade”, entraram doze
novos vídeos no YouTube sobre o assun-
to. Conseguiram reunir 2,1 milhões de
visualizações – mas apenas dois deles,
ambos feitos pela Jovem Pan, atraíram
quase 2 milhões. Um trazia uma entre-
vista dada ao programa Jornal da Manhã
pelo jurista Ives Gandra Martins Filho,
defensor do intervencionismo militar.
O outro era uma reprodução dos trechos
da mesma entrevista no programa Os
Pingos nos Is. Era tudo o que a bolha di-
gital do bolsonarismo queria ver e ouvir.
Um estudo encomendado pelo TSE, ao
qual a piauí teve acesso, reforça que o
programa é o principal difusor das ver-
sões bolsonaristas nas redes. No relatório,
Os Pingo nos Is é tratado como “mídia de
reframe”, expressão que os especialistas
usam para designar meios digitais que
reenquadram narrativas por interesse po-
lítico, sem compromisso com o rigor de
uma apuração jornalística, mas mantêm
a aparência de jornalismo. O programa,
diz o estudo, é a principal mídia de refra-
me da extrema direita no YouTube, com
uma audiência muito superior à do se-
gundo lugar, a Folha Política. (A esquer-
da também tem mídias de reframe. No
relatório, aparecem com essa classifica-
ção as tevês 247 e Afiada, uma costela do
finado Conversa Afiada.)
Desde que se bolsonarizou, de meados
de 2020 em diante, Os Pingos no Is cres-
ceu. Seu auge aconteceu na primeira
quinzena de setembro de 2021, quando o
presidente convocou seguidores às ruas na
preparação de um autogolpe e, do alto de
um carro de som na Avenida Paulista, em
São Paulo, disse que não cumpriria mais
decisões do ministro Alexandre de Mo-
raes, do STF. Um dia depois, recuou, e es-
creveu uma carta ao ministro dizendo que
suas palavras “decorreram do calor do
momento”, mas, a essa altura, o canal
do Pingos nos Is já tinha cumprido seu
objetivo: capturara 90 mil novos inscritos
no YouTube e seus vídeos alcançaram a
espetacular marca de 35 milhões de vi-
sualizações em apenas uma semana. De
todos os canais alinhados com o governo,
Os Pingos nos Is só ganhou menos assi-
naturas no YouTube do que o canal de
Gabriel Monteiro (PL-RJ), o vereador bolso-
narista processado por assédio sexual.
Com desempenho tão positivo, Os
Pingos nos Is tornou-se o carro-
chefe do investimento mais ambi-
cioso da Jovem Pan: virar uma emissora
de televisão no sistema a cabo. O projeto,
que custou 55 milhões de reais, transfor-
mou-se em realidade em outubro do ano
passado. Desde então, a Jovem Pan tem
programação de 24 horas na tevê a cabo,
com programas de notícias, opinião, en-
tretenimento e comentários esportivos.
Os Pingos nos Is é o único, entre os pro-
gramas políticos, que não tem contradi-
tório – todos pensam a mesma coisa,
todos defendem a pauta bolsonarista, to-
dos aplaudem a direita radical.
Os demais programas trazem uma voz
discordante para dar um colorido ao de-
bate. No 3 em 1, como o próprio nome
diz, três extremistas de direita (Rodrigo
Constantino, Marco Antônio Costa e Jor-
ge Serrão) duelam com o jornalista Fábio
Piperno, o único que não reza pela carti-
lha de Bolsonaro. No Jornal da Manhã,
os bolsonaristas Cristina Graeml e, até
pouco tempo atrás, Ricardo Salles, ex-
ministro do Meio Ambiente, contracena-
vam com a jornalista Amanda Klein, que
faz ponderações críticas ao presidente.
No Morning Show, até recentemente ha-
via um equilíbrio: Adrilles Jorge, aquele
que fez uma saudação nazista ao vivo, e
Zoe Martínez, ambos admiradores de
Bolsonaro, enfrentavam Guga Noblat e
Paula Carvalho, que faziam o contrapon-
to. Pela paridade de vozes, o Morning
Show era visto pela audiência como o
“programa de esquerda”. No final de ju-
nho, Salles e Jorge deixaram a rádio para
concorrer à Câmara dos Deputados.
Desde maio passado, o canal TV Jovem
Pan News superou a audiência da CNN
Brasil e assumiu o segundo lugar entre os
canais de notícia, ficando atrás apenas da
líder do segmento, a GloboNews, que per-
tence ao Grupo Globo. A TV Jovem Pan,
segundo a medição da Kantar Ibope Me-
dia, teve 0.13 de audiência, contra 0.5 da
GloboNews – cada ponto equivale a cerca
de 280 mil domicílios com televisores li-
gados nas quinze maiores capitais do país.
Com sua entrada no mundo da tevê a
cabo em 2021, a Jovem Pan tornou-se um
caso único no cenário de mídia do Brasil
porque transmite 100% de suas programa-
ções em múltiplas plataformas – no You-
Tube, na tevê, nas redes sociais e nas
rádios AM e FM. É difícil avaliar a audiên-
cia em todas essas plataformas, já que
cada uma usa diferentes métodos de me-
dição e o consumidor de um canal pode
ser o mesmo consumidor de outro canal,
mas estima-se que o “universo Jovem Pan”
atraia atualmente cerca de 50 milhões de
pessoas, entre telespectadores e ouvintes,
a cada mês. Com esse patrimônio digi-
tal, a Jovem Pan transformou-se, nos últi-
mos quatro anos, no polo de desinformação
mais poderoso do bolsonarismo.
Na noite de 20 de junho passado, o
empresário paulistano Antônio Au-
gusto Amaral de Carvalho Filho,
de 66 anos, conhecido como Tutinha,
resolveu celebrar os 80 anos do grupo Jo-
vem Pan em grande estilo. Afinal, a famí-
lia Carvalho voltara a ter uma televisão
em seu patrimônio, pela primeira vez em
três décadas, desde que, afundada em dí-
vidas, teve que vender a TV Record ao
bispo Edir Macedo, da Igreja Universal
do Reino de Deus. Para festejar a boa au-
diência e tentar ampliar seu faturamento
publicitário, organizou um evento para
apenas sessenta casais e deu uma orienta-
ção expressa ao seu diretor de marketing,
Marcelo Camargo: só convidar líderes de
empresas anunciantes, de preferência os
presidentes. Nada de diretores menores.
No Shopping Morumbi, Tutinha man-
dou alugar o salão que abrigava a experiên-
cia imersiva Beyond Van Gogh, na qual
quarenta projetores cobriam tudo – chão,
teto, paredes – com imagens em 3D dos
quadros mais célebres do pintor holandês.
Os convivas jantariam como que dentro
das obras de Van Gogh. Foi um fracasso.
Quase metade dos convidados não apare-
ceu. Entre os presidentes de empresas
anunciantes, José Domingos Alves, da
varejista Lojas Cem, e Michel Gaspar,
da recém-criada marca de cosméticos Er-
vik. A TecToy e a Honda Motor Company
mandaram seus gerentes de marketing.
O governador paulista, Rodrigo Garcia
(PSDB), estava lá, mas o prefeito de São Pau-
lo, Ricardo Nunes (MDB), não. Tutinha
ficou furioso. Marcelo Camargo, seu dire-
tor de marketing, amanheceu demitido.
Apesar da plateia mixuruca, Tutinha
não entregou os pontos, simulou contenta-
mento e enalteceu o próprio trabalho. “Eu
peguei a bucha só há oito anos e tenho
conseguido fazer bonito”, disse, em entre-
vista ao repórter da Jovem Pan que cobria
o evento para as plataformas do grupo.
“Tanto que meu pai tem me abraçado e me
dado parabéns.” Seu pai, Antônio Augusto
Amaral de Carvalho, conhecido como
Tuta, deixou oficialmente o comando da
empresa aos 83 anos, em 2014, quando a
saúde já não lhe permitia levantar-se da
cama. Hoje, aos 91 anos, alterna períodos
de lucidez com apagões e faz diálise dia-
riamente no Hospital Sírio-Libanês, em
São Paulo. A superação da figura paterna
tem sido o alfa e o ômega de Tutinha.
“Meu pai ficou doente e me convidou
para ser o presidente da rádio”, contou
Tutinha, em outro evento, realizado an-
tes, em 2017. “Eu falei: meu Deus do
céu! O homem só fez sucesso, fez televi-
são, montou a TV Record, criou os melho-
res programas de música, fez da Jovem
Pan a maior rádio do Brasil. Fui para lá e
quando eu peguei a rádio, eu falei: nossa,
preciso achar alguma coisa nova!”, disse
o empresário, num sotaque típico paulis-
tano que terminou eternizado pelo per-
sonagem Dr. Pimpolho, uma sátira do
humorista Felipe Xavier inspirada em
Tutinha, que representa o arquétipo do
chefe rico, grosseiro e explorador.
Tanto o pai quanto o filho decidiram
não cursar faculdade para se dedicar à em-
presa da família, mas as diferenças – de
gestão, de personalidade – entre ambos
sempre ficaram patentes. De estilo pater-
nal, Tuta gostava de sentar-se à mesa dos
funcionários e dar longas orientações, ao
mesmo tempo em que era rígido com ho-
rários e dedicação à rádio – “uma genero-
sidade severa”, conta um dos jornalistas
que conviveu com o patriarca. Pagava sa-
lários maiores, assinava a carteira e tinha
seus protegidos – entre eles, José Carlos
Pereira, chefe do jornalismo por mais de
vinte anos e considerado um “filho adoti-
vo” do patrão. Ao assumir em 2014, Tuti-
nha, com sua cabeça empresarial e seu
faro por dinheiro, escanteou o jornalista
veterano e demitiu todos os medalhões
mais bem remunerados. Eram outros tem-
pos. Fez novas contratações, todas tercei-
rizadas, com salários menores e nenhum
direito trabalhista – prática que tem se
disseminado entre veículos de imprensa.
“Tutinha estava sempre querendo
mostrar para o pai que era capaz, que
não era só um herdeiro”, afirma um di-
retor que deixou a Jovem Pan antes da
guinada bolsonarista. Um comentarista
que já não integra mais os quadros da
empresa lembra que sua primeira con-
versa com Tutinha, logo depois de ser
contratado, foi sobre “seu Tuta”, embora
não houvesse entre eles intimidade para
tratar de assuntos pessoais. “Tudo o que
eu faço é pelo meu pai, e ele nem liga”,
disse Tutinha, segundo a lembrança do
comentarista. O filho estava magoa-
do com a indiferença paterna quanto ao
crescimento que ele vinha promovendo
na empresa desde que assumira.
Na década de 1990, Tutinha trans-
formara a Jovem Pan FM em febre entre
os jovens, ao tocar na rádio as músicas
que viravam hits nas casas noturnas e
nas festas. As Sete Melhores da Jovem
Pan embalavam as noites da moçada e
se tornaram um negócio lucrativo, in-
cluindo métodos heterodoxos. Tutinha
foi o primeiro empresário do mercado
musical a institucionalizar o chamado
“jabá”, valor que as gravadoras pagavam
aos radialistas para que executassem as
músicas de seus artistas – e, com Tuti-
nha, quem passou a cobrar o jabá foi a
própria emissora. Tutinha evitava o ter-
mo. Preferia falar em “projeto de im-
plantação de um produto no mercado”.
Quando a cantora colombiana Shaki-
ra, em início de carreira, estava planejan-
do vir ao Brasil para lançar seu primeiro
disco, a gravadora Sony cercou Tutinha,
oferecendo o álbum e pedindo que sele-
cionasse as músicas de sua preferência.
Mas o empresário não se interessou. Pou-
co depois, ao passar pelo quarto de sua
filha Daniela, ouviu-a cantarolando o hit
Estoy Aquí. De imediato, pegou o CD que
a Sony lhe oferecera, escolheu as músicas
e fechou um acordo com a gravadora:
ganharia 1 dólar por CD vendido. O ál-
bum explodiu. Vendeu mais de 1 milhão
de cópias só no Brasil. Quando Shakira
finalmente chegou ao país, ficou hospe-
dada com a mãe na casa de Tutinha, no
Jardim América, em São Paulo.
O programa Pânico, criado para a rá-
dio, é outro acerto de Tutinha, que con-
seguiu vendê-lo para a RedeTV!. Ficou
oito anos em cartaz no canal, com suas
boas passagens de irreverência e seus pés-
simos momentos de um sensacionalismo
grotesco, como quando a apresentadora
Sabrina Sato masturbou um porco ao
vivo. Rendeu muito dinheiro. Pouco an-
tes do final do contrato com a RedeTV!,
Tutinha comprou uma townhouse, como
são chamadas as casas geminadas, de
quatro andares, em Nova York. Fica no
Upper East Side, uma das áreas mais
chiques de Manhattan. Com a valorização
do imóvel, associada à desvaloriza-
ção brutal do real, a residência de férias
que saiu por menos de 10 milhões de re-
ais hoje vale mais de 50 milhões de reais.
Quando Tutinha assumiu os negócios
do pai, em junho de 2014, o setor
radiofônico estava em declínio em
meio à transformação digital que se apro-
fundava no mercado de mídia, mas ainda
assim a Jovem Pan persistia e faturava na
casa dos 60 milhões de reais – cinco anos
antes, eram 45 milhões. Os custos, contu-
do, eram muito altos, e a família, com
alguma frequência, tinha de aportar di-
nheiro para fechar as contas no fim do
ano. Ao assumir, Tutinha decidiu dar-se
um prazo de três anos para fazer o negócio
decolar. “Se eu for mal em três anos, tchau.
Nova York que me espere porque eu não
fico aqui”, disse, em entrevista à própria
Jovem Pan, no dia que em foi oficialmen-
te anunciado como sucessor do pai.
Tutinha sempre quis fundar uma tevê,
tal como fizera seu avô, Paulo Machado de
Carvalho, que criou a TV Record, emisso-
ra que fez história ao promover os festivais
de música dos anos 1960. Em entrevista à
revista Playboy em 2006, quando tinha 50
anos, confessou seu sonho: “Eu fico ani-
mado porque o Roberto Marinho montou
a Rede Globo com 60 anos. Eu sou uma
pessoa ambiciosa.” Há oito anos, quando
assumiu a Jovem Pan, não tinha capital
para uma empreitada tão ousada, mas teve
uma ideia durante uma viagem a Nova
York na companhia de Roberto Araújo,
diretor executivo do grupo. Os dois visita-
ram uma loja de eletrônicos. Em entrevis-
ta no ano passado, no lançamento do
canal Jovem Pan News, Tutinha relem-
brou: “Vi uma câmera robótica e falei:
‘Roberto, olha o tamanho dessa câmera!
Será que cabe na mala?’ Ele respondeu:
‘Cabe, vamos pôr. Mas se a alfândega pe-
gar, a gente se ferrou!’ Pusemos as câme-
ras nas malas, trouxemos para o Brasil, fui
pego na alfândega, paguei – eu sempre
pago. Aí coloquei no estúdio e come
dar uma audiência forte. Falei: pô, por que
não montar uma tevê digital?”
Roberto Araújo, em outra entrevista,
complementou: “Essa nova fase começa
mais ou menos oito anos atrás, quando o
Tutinha resolve dar um choque no que
era a Jovem Pan e levar para um outro
patamar, fazendo um jornalismo mais
opinativo, porque naquela época foi
diagnosticado que, ao ir para o meio di-
gital, as pessoas buscam compartilhar
outros comentários, opiniões e formas
de ver a notícia, e não o hard news pelo
hard news.” A expressão em inglês signi-
fica, no jargão da imprensa, a notícia
factual, sem opinião ou análise. Em
2014, portanto, Tutinha havia enxugado
a empresa e instalado as primeiras câme-
ras nos estúdios de rádio. Faltava escalar
o time que faria a audiência bombar.
Começou contratando o jornalista Rei-
naldo Azevedo, que mantinha um blog
no site da revista Veja, em que comentava
notícias e tornou-se um estridente porta-
voz do antipetismo. Na Jovem Pan, Aze-
vedo começou como comentarista do
Jornal da Manhã e logo ganhou seu pró-
prio programa, Os Pingos nos Is, cujo
nome foi escolhido pela sua mulher. “Foi
uma hecatombe”, relembra um diretor,
que já não integra os quadros da empresa.
“Deu muito certo ali porque foi na veia.
Era exatamente o que as pessoas queriam
consumir”, resumiu o ex-executivo, refe-
rindo-se ao viés de direita que passou a
dominar os comentários na rádio
Em seguida, Tutinha chamou o histo-
riador Marco Antonio Villa, outro que
trabalhava na Veja. Comentando noticiá-
rio no Jornal da Manhã, Villa chegava
cedo, antes das seis da manhã, desfilava
pela redação no 24º andar do edifício da
rádio e se posicionava diante da janela de
onde se avistava a ciclofaixa da Avenida
Paulista, instalada na gestão de Fernando
Haddad (PT-SP) como prefeito. “Ele olhava
para a ciclofaixa e falava sozinho, recla-
mando e chamando Haddad de ‘Jaimi-
nho’”, conta um repórter que presenciava
a cena matinal. Jaiminho era um persona-
gem do humorístico mexicano Chaves,
exibido pelo SBT, que tinha uma bicicleta
mas não a usava. No programa, Villa tor-
nou-se uma estrela da direita hidrófoba.
“O Villa é louco de pedra. E taí. Ele é um
sucesso. Virou artista de novela da Globo.
Não pode mais sair na rua”, festejou Tuti-
nha, num evento também em 2017, refe-
rindo-se às filas que se formavam na porta
da rádio para tietar Azevedo e Villa, as
duas sensações da casa.
“Aí começou a virada da Jovem Pan.
Era uma posição política muito arriscada.
Várias vezes, em Brasília, eu fui pressiona-
do”, contou Tutinha. Mas, em 2014, deu-se
a grande frustração do empresário: Dilma
Rousseff foi reeleita, ao contrário do que
indicava o “datapovo” dos membros da So-
ciedade Harmonia de Tênis, o clube da
elite paulistana que Tutinha frequenta. Na
noite da vitória petista, Azevedo sugeriu
entrevistar o tucano Aécio Neve
Fez os contatos e, vinte dias
depois do segundo turno, o tucano estava
na bancada do Pingos nos Is. Foi recebi-
do na rádio como se tivesse sido o vitorio-
so na eleição. Tutinha chamou familiares
e amigos para irem ao estúdio conhecer o
tucano. Derramou-se em elogios a Aécio,
detonou Dilma e o PT e, daquele dia em
diante, encampou a tese do PSDB de que a
eleição fora fraudada, mas nunca compre-
endeu muito bem como as urnas eletrôni-
cas poderiam ter sido adulteradas.
Os estúdios da rádio tornaram-se en-
tão cadeira cativa de integrantes do Mo-
vimento Brasil Livre (MBL) e do Vem
Pra Rua, que tomariam a frente na mo-
bilização pelo impeachment de Dilma.
Kim Kataguiri, do MBL e hoje deputado
federal pelo União-SP, era presença fre-
quente na sala de Azevedo, onde troca-
vam ideias até a madrugada e depois
esticavam no Café Creme, tradicional
bar 24 horas próximo à redação. Nas
manifestações, os repórteres da Jovem
Pan ficavam nos carros de som do MBL
e do Vem Pra Rua. Villa discursou num
deles. “O Villa discursando na Paulista
era surreal, mas o Tutinha achava isso
fodido, achava que estava prestando um
serviço ao país”, diz uma jornalista que
testemunhou tudo e continua na rádio.
Embora orgulhoso dos rumos ideoló-
gicos da rádio, Tutinha interferia pouco
no conteúdo. “Era mais diretor artístico
do que diretor de jornalismo. Ele se preo-
cupava com a cor da gravata, o cenário,
esse tipo de coisa. E com os números,
claro”, conta um ex-subordinado do em-
presário. Quando interferia, era sem su-
tileza. No processo de impeachment,
quando o apresentador do Morning Show,
Edgard Piccoli, criticou uma reportagem
de capa da revista IstoÉ permeada de mi-
soginia, na qual se dizia que Dilma estava
em “surto” com “explosões nervosas”, Tu-
tinha ligou para Piccoli quando terminou
o programa. “Assim não vai dar. Por que
você está falando isso? Sou amigo do
dono da revista. Assim vou ter que te
mandar embora!”, bradou. (Piccoli dei-
xou a rádio quatro anos depois. Processa
a empresa por assédio moral. O caso cor-
re em segredo de Justiça no Tribunal Su-
perior do Trabalho, em Brasília.)
Certo de que descobrira o caminho
para o sucesso, Tutinha continuou cha-
mando outros profissionais para progra-
pessoas, cifra impressionante, acompa-
nharam a transmissão da prisão do ex-
presidente Lula, que se entregou aos
agentes da Polícia Federal na sede do
Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e foi
levado de helicóptero até Curitiba, onde
passou 580 dias detido. Tutinha estava
radiante. Teve um rompante de genero-
sidade. Deu um bônus de 500 reais a to-
dos que haviam trabalhado na cobertura.
Os Pingos nos Is, já então apresentado
por Felipe Moura Brasil e com comentá-
rios de Augusto Nunes e José Maria Trin-
dade, disparou e tornou-se o programa da
rádio mais assistindo no YouTube, des-
bancando o Jornal da Manhã.
No período eleitoral, Os Pingos no Is
não dava apoio escancarado a Bolsonaro,
mas Tutinha fazia questão de alardear sua
preferência. Ao perceber que as chances
de o tucano Geraldo Alckmin chegar ao
segundo turno eram nulas, Tutinha aban-
donou o PSDB e aderiu a Bolsonaro. À jor-
nalista Denise Campos de Toledo, então
comentarista de economia da rádio e
hoje na TV Gazeta, pediu que votasse em
Bolsonaro porque, caso contrário, a rádio
seria fechada pelo PT. “Ele [Bolsonaro] é
uma bosta, mas tem que votar. Você está
louca? Haddad não dá. Com Paulo Gue-
des, o mercado gosta dele. Vai ser bom
pra caramba!” Em suas redes sociais, um
mês antes da eleição, escreveu: “Dica de
investimento: compre dólar agora por
4,20 e vote em [João] Amoedo. Quando
Haddad for eleito, venda por 9,48”, suge-
rindo, a um só tempo, que apenas Bolso-
naro poderia derrotar o PT e, em caso de
vitória petista, o dólar dispararia.
Um dia depois do primeiro turno, Tu-
tinha fez um apelo a seus amigos do Fa-
cebook para que votassem em Bolsonaro,
ao compartilhar uma postagem de auto-
ria desconhecida sobre o PT. “É Bolsona-
ro ou ditadura petista”, escreveu, antes
de explicar que um golpe comunista
estava em curso – e tudo estava muito
bem detalhado no site do partido. O tex-
to citava páginas de um suposto progra-
ma de governo petista em que se falava
em “estatizar a Rede Globo”, “anular as
sentenças do mensalão”, “cassar o man-
dato de Jair Bolsonaro”, “dar o calote na
dívida externa” e transformar o Brasil
em “fiador” dos “países comunistas da
América Latina”. Em 30 de outubro,
com a eleição decidida, Tutinha inven-
tou que o cantor Caetano Veloso prome-
tera deixar o país em caso de vitória de
Bolsonaro, e escreveu: “Já vai tarde.”
Com o triunfo da extrema direita e
Moura Brasil no comando do Pingos nos
Is, o programa aproximou-se um pouco
mais do bolsonarismo. Aluno de Olavo
de Carvalho, o ex-astrólogo que funcio-
nou como guia ideológico do bolsona-
rismo até sua morte em 2021, Moura
Brasil estabeleceu pontes com a família
– o presidente e os filhos. Exibiu a pri-
meira entrevista em vídeo concedida
por Bolsonaro depois da facada em Juiz
de Fora, a menos de um mês do primei-
ro turno. No dia da vitória no segundo
turno, foi o único jornalista a transmitir
mas de opinião, sempre contando com o
aval de Reinaldo Azevedo. Contratou os
jornalistas Carlos Andreazza e Vera Maga-
lhães, e o humorista Marcelo Madureira,
ex-Casseta & Planeta. Os três integravam
o 3 em 1, um programa de debates. Tuti-
nha chamava o grupo de dream team
(time dos sonhos). Depois, começou a se
irritar com o fato de que não divergiam de
forma enérgica, nem resvalando nas bai-
xarias que fazem tanto sucesso nas redes
sociais. Nessa época, voltou a recorrer à
redação da Veja para fazer outra contrata-
ção: Augusto Nunes, que começou como
comentarista do Morning Show.
E queria mais. Sua intenção era con-
tratar Rodrigo Constantino, que chegou
a ser colunista de economia da Veja,
mas Azevedo não concordava com a es-
colha. “Sou um conservador informado,
não um reacionário babaca”, disse ele,
na época, para justificar o veto. Na opi-
nião de Azevedo, havia outros “reacio-
nários babacas” na lista de Tutinha,
como o jornalista Felipe Moura Brasil e
a futura deputada federal Joice Hassel-
mann, ambos também egressos da Veja.
Azevedo chegou a dizer para Tutinha
que se os três – Constantino, Moura
Brasil e Hasselmann – fossem contrata-
dos pela Jovem Pan, ele deixaria a rádio.
As divergências acabaram levando à
saída de Reinaldo Azevedo. Tutinha recla-
mava que o jornalista agia com “soberba”
e passara a se achar “maior que a rádio”.
Quando o assunto era a Operação Lava
Jato, Azevedo fazia críticas aos exageros
jurídicos do então juiz Sergio Moro, mas
Tutinha considerava tudo um tremendo
acerto. As coisas pioraram no dia em que
Marcelo Carvalho, irmão de Tutinha e
diretor comercial da rádio, pediu que Os
Pingos nos Is anunciasse um debate que a
rádio estava promovendo entre Jair Bolso-
naro e Villa, mas Azevedo recusou. Em
maio de 2017, a permanência do jornalista
tornou-se inviável quando a Lava Jato inter-
ceptou-o em conversas privadas com An-
drea Neves, a irmã de Aécio que acabara de
ser presa pela Polícia Federal sob suspeita
de pedir vantagens à JBS em nome do tu-
cano. (Andrea Neves ficou um mês presa.
Acabou absolvida da acusação em 2022.)
Com a saída de Azevedo, a porteira
abriu-se para a chegada de Rodrigo Cons-
tantino, Moura Brasil e Joice Hassel-
mann, que se distribuíram entre toda a
grade da programação. Tutinha dizia quc
estava ansformando o Brasil “para me-
lhor”. “Vamos ter coragem de mudar esse
país é agora, senão não muda mais”, disse,
na época. Na prática, era um sentimento
mais comercial do que político. Diz um
ex-diretor de jornalismo da Jovem Pan,
que trabalhou diretamente com Tutinha:
“É um cara de uma família conservadora
e tradicional paulistana, que não tem fun-
damento nem profundidade para tratar
de política, não lê muito sobre o assunto,
não gosta de ler nada. Não consegue pres-
tar atenção em nada por mais de alguns
minutos. Mas tem um feeling impressio-
nante para entender o gosto das pessoas.”
No processo de radicalização que le-
vou a emissora a apoiar inclusive as teses
golpistas de Bolsonaro, a Jovem Pan tro-
cou de equipe. De todas as estrelas da-
queles anos iniciais, ninguém mais está
na rádio: Reinaldo Azevedo trabalha na
BandNews FM, Marco Antonio Villa é
pré-candidato a deputado federal pelo
Cidadania, Felipe Moura Brasil está no
portal UOL, Joice Hasselmann virou depu-
tada federal bolsonarista, eleita pelo PSL-
SP (depois rompeu com o bolsonarismo),
e o humorista Marcelo Madureira traba-
lha na BandNews. Carlos Andreazza e
Vera Magalhães estão hoje no jornal
O Globo e na CBN. Magalhães também
apresenta o Roda Viva, na TV Cultura.
A exceção é Rodrigo Constantino, que
mudou para os Estados Unidos, mas
continua com fé no Brasil de Bolsonaro.
Participa do 3 em 1, que vai ao ar diaria-
mente à tarde – e fatura alto. Em fevereiro
de 2020, no jantar em sua homenagem
oferecido pelo empresário Flávio Rocha,
acionista da Riachuelo e um dos melhores
amigos de Tutinha, Constantino pegou o
microfone, falou por uns quinze minutos
e deu seu recado. Disse que precisava de
apoio para lutar pelos ideais liberais que
todos ali defendiam. Lutar contra o “mar-
xismo cultural” era difícil porque todos os
meios de comunicação estavam “impreg-
nados”. Para que pudesse continuar “den-
tro da grande mídia lutando pelos nossos
ideais”, ele precisava de ajuda.
Ali mesmo, os empresários passaram o
chapéu e recolheram doações. Desde en-
tão, Constantino está na lista dos consul-
tores remunerados do Instituto Liberal,
mantido pelo empresário Salim Mattar,
dono da Localiza e ex-secretário de Deses-
tatização do governo Bolsonaro. A partir
daí, redobrou sua missão de ser “uma
arma dentro da grande mídia comunista”,
na definição de Edgard Corona, dono das
academias Smart Fit, um dos empresários
bolsonaristas presentes no jantar. Hoje,
além de participar do 3 em 1, Constantino
pede patrocínio online. Oferece vários pa-
cotes. O mais barato custa 17,50 reais e dá
“acesso prioritário em mensagens envia-
das e aos [seus] vídeos e lives”. O mais caro
sai por 5 705 reais e dá “acesso direto ili-
mitado por telefone e direito a sugerir pau-
tas”. Constantino tem hoje 376 “patronos”.
No dia 7 de abril de 2018, a audiência
dos canais da Jovem Pan no YouTu-
be explodiu. Mais de 3 milhões de
pessoas, cifra impressionante, acompa-
nharam a transmissão da prisão do ex-
presidente Lula, que se entregou aos
agentes da Polícia Federal na sede do
Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e foi
levado de helicóptero até Curitiba, onde
passou 580 dias detido. Tutinha estava
radiante. Teve um rompante de genero-
sidade. Deu um bônus de 500 reais a to-
dos que haviam trabalhado na cobertura.
Os Pingos nos Is, já então apresentado
por Felipe Moura Brasil e com comentá-
rios de Augusto Nunes e José Maria Trin-
dade, disparou e tornou-se o programa da
rádio mais assistindo no YouTube, des-
bancando o Jornal da Manhã.
No período eleitoral, Os Pingos no Is
não dava apoio escancarado a Bolsonaro,
mas Tutinha fazia questão de alardear sua
preferência. Ao perceber que as chances
de o tucano Geraldo Alckmin chegar ao
segundo turno eram nulas, Tutinha aban-
donou o PSDB e aderiu a Bolsonaro. À jor-
nalista Denise Campos de Toledo, então
comentarista de economia da rádio e
hoje na TV Gazeta, pediu que votasse em
Bolsonaro porque, caso contrário, a rádio
seria fechada pelo PT. “Ele [Bolsonaro] é
uma bosta, mas tem que votar. Você está
louca? Haddad não dá. Com Paulo Gue-
des, o mercado gosta dele. Vai ser bom
pra caramba!” Em suas redes sociais, um
mês antes da eleição, escreveu: “Dica de
investimento: compre dólar agora por
4,20 e vote em [João] Amoedo. Quando
Haddad for eleito, venda por 9,48”, suge-
rindo, a um só tempo, que apenas Bolso-
naro poderia derrotar o PT e, em caso de
vitória petista, o dólar dispararia.
Um dia depois do primeiro turno, Tu-
tinha fez um apelo a seus amigos do Fa-
cebook para que votassem em Bolsonaro,
ao compartilhar uma postagem de auto-
ria desconhecida sobre o PT. “É Bolsona-
ro ou ditadura petista”, escreveu, antes
de explicar que um golpe comunista
estava em curso – e tudo estava muito
bem detalhado no site do partido. O tex-
to citava páginas de um suposto progra-
ma de governo petista em que se falava
em “estatizar a Rede Globo”, “anular as
sentenças do mensalão”, “cassar o man-
dato de Jair Bolsonaro”, “dar o calote na
dívida externa” e transformar o Brasil
em “fiador” dos “países comunistas da
América Latina”. Em 30 de outubro,
com a eleição decidida, Tutinha inven-
tou que o cantor Caetano Veloso prome-
tera deixar o país em caso de vitória de
Bolsonaro, e escreveu: “Já vai tarde.”
Com o triunfo da extrema direita e
Moura Brasil no comando do Pingos nos
Is, o programa aproximou-se um pouco
mais do bolsonarismo. Aluno de Olavo
de Carvalho, o ex-astrólogo que funcio-
nou como guia ideológico do bolsona-
rismo até sua morte em 2021, Moura
Brasil estabeleceu pontes com a família
– o presidente e os filhos. Exibiu a pri-
meira entrevista em vídeo concedida
por Bolsonaro depois da facada em Juiz
de Fora, a menos de um mês do primei-
ro turno. No dia da vitória no segundo
turno, foi o único jornalista a transmitir
diretamente de dentro da casa do futuro
presidente, na Barra da Tijuca, no Rio.
Embora estivesse enfrentando as misé-
rias de um divórcio litigioso de Flávia
Eluf, com quem fora casado, Tutinha não
tinha muitos motivos para reclamar no
fim de 2018. Bolsonaro havia vencido a
eleição, a audiência da Jovem Pan estava
nas alturas e, em dezembro, o Google, o
gigante da tecnologia, trouxe outra boa
notícia: anunciou oficialmente que a Jo-
vem Pan estava entre os primeiros veículos
de comunicação do Brasil que receberiam
financiamento da Google News Initiative,
um projeto de apoio à imprensa. A empre-
sa de Tutinha levou 300 mil dólares.
Logo ficaria ainda melhor.
Em março de 2019, o presidente execu-
tivo da Jovem Pan, Roberto Araújo, foi
convidado pelo YouTube para fazer
uma apresentação sobre o grupo na sede
do Google, em Palo Alto, na Califórnia.
Antes da viagem, Araújo e Tutinha fize-
ram uma descoberta que teria um impac-
to significativo no caixa da empresa. Em
conversas com os executivos do Google,
eles perceberam que o convite para ir a
Palo Alto decorria do fato de que a Jovem
Pan havia se transformado num caso
mundial de sucesso para o YouTube. Com
a exibição de conteúdo durante 21 horas
por dia, a Jovem Pan havia se tornado a
maior fonte de notícias no YouTube Brasil.
De imediato, Tutinha e Araújo enten-
deram que tinham mais poder de barga-
nha do que imaginavam para negociar os
anúncios publicitários em seus canais no
YouTube. Conseguiram o direito de ven-
der a publicidade em seus vídeos na plata-
forma. É uma grande vantagem, já que,
para a maior parte dos canais, quem detém
o monopólio da venda é o próprio Google.
Era o começo de um relacionamento pri-
vilegiado com a gigante da tecnologia.
Um dos benefícios é que canais da Jovem
Pan jamais podem ser retirados do ar por
ação do algoritmo, como acontece com a
maioria dos produtores de conteúdo que
violem as diretrizes do YouTube. Em vez
do algoritmo, entra a ação humana. Pri-
meiro, a área de trust and safety avisa a
equipe encarregada da parceria, que, por
sua vez, recorre a um vice-presidente do
Google para decidir se é o caso de derru-
bar o canal. Grandes emissoras de tevê
também usufruem o mesmo benefício,
mas nenhuma delas desafia tanto as dire-
trizes do YouTube. Com esse privilégio, a
Jovem Pan sofreu a punição uma única
vez: o canal do programa Direto ao Ponto
foi derrubado, mas por uma razão mais
prosaica. Havia violado direitos autorais.
“O laboratório para a Jovem Pan virar
tevê foi o YouTube, com uma ajuda muito
grande das equipes de parcerias do YouTu-
be”, diz uma das fontes. “Ouvia-se inter-
namente que a Jovem Pan poderia fazer o
que quisesse que o canal não cairia, que
eles tinham tratamento especial. E tinham
mesmo.” O privilégio abriu um campo de
experimentação. Ciente de que seus ca-
nais não seriam derrubados nem desmo-
netizados, a Jovem Pan passou a testar
tros para o grupo no YouTube, suas receitas
com a plataforma engordaram 50%, gra-
ças ao aumento de 32% em visualizações
e 49% em horas assistidas, que levantaram
cerca de 20 milhões de reais, ajudando o
faturamento total do grupo a ultrapassar
100 milhões de reais em 2021.
Uma estratégia bem-sucedida foi a cria-
ção de “cortes” do Pingos nos Is: são vídeos
curtos com as passagens mais polêmicas
do programa que ganham títulos chama-
tivos. “A gente começou a fazer testes para
ver o que funcionava melhor com o algo-
ritmo. E os ‘cortes’ deram muito certo em
audiência”, diz uma fonte que participou
da elaboração da estratégia que aumentou
a receita sem aumentar os custos. Tutinha
costuma dizer que um dia ainda ensinará
a Globo a fazer tevê com baixo custo de
produção. Sua operação é enxuta. Tem
quinhentos funcionários (quase todos ter-
ceirizados), está focada em audiência em
meios baratos (YouTube e redes sociais) e
paga salários baixos. O assistente de pro-
dução do Pingos nos Is, a joia da coroa da
emissora, ganha cerca de 2,5 mil reais, e
não vai para a redação porque não há vale-
transporte. Nesse regime, a Jovem Pan
lucrou 15,7 milhões de reais em 2021, 75%
a mais do que no ano anterior.
Com o governo Bolsonaro, o sonho
de Tutinha de ter um canal de te-
levisão ficou mais viável. Em 2019,
depois de uma audiência com o presiden-
diversos tipos de mensagem – incluindo
discurso de ódio e desinformação, que são
vetados pela plataforma. O tratamento
especial chegou a gerar conflitos internos
no YouTube entre os que defendiam a der-
rubada de canais da Jovem Pan e os que
achavam que deviam ser mantidos.
A piauí perguntou ao YouTube sobre
os critérios de derrubada de canais para
parceiros como a Jovem Pan. A platafor-
ma negou que a emissora esteja subme-
tida a regras mais brandas. “Aplicamos
nossas regras (que existem para proteger
a comunidade contra problemas como
conteúdo nocivo e assédio, entre outros)
de forma consistente em toda a platafor-
ma independentemente de quem seja o
criador do conteúdo.” Ainda segundo a
nota, “violações repetidas ou uma viola-
ção grave podem levar o canal a ser en-
cerrado”. O YouTube disse ainda contar
“com uma combinação de inteligência
de máquina, revisores humanos e de-
núncias de usuários” para identificar os
vídeos em desacordo com as regras.
Com a crescente radicalização do dis-
curso político no Brasil, o YouTube co-
meçou a tirar do ar vídeos antigos que
violassem suas diretrizes internas. Desde
o início de 2020, canais de extrema direita
que propagam desinformação já tiveram
mais de quatrocentos vídeos derrubados –
no caso da Jovem Pan, foram cerca de cin-
quenta. A queda, no entanto, tem ocorrido
bem depois do dano causado. No dia 18
de julho passado, quando Bolsonaro rece-
beu o corpo diplomático em Brasília para
mais uma vez dizer que as urnas eletrôni-
cas são fraudadas, o YouTube finalmente
tirou do ar a live do presidente de um ano
atrás, na qual ele repete a afirmação in-
fundada. Na época, a mesma live foi re-
produzida no canal do Pingos nos Is sobre
o título “LIVE BOMBA de Jair Bolsonaro”.
O vídeo ficou no ar até o dia 22 de julho,
quando foi finalmente retirado. Tinha
300 mil visualizações. Mas a íntegra de
Os Pingos nos Is daquela data, que contém
a live do presidente, continua no YouTube
com mais de 1,3 milhão de visualizações.
Uma penalidade mais branda que a
derrubada do canal são os chamados stri-
kes, nome dado à retirada de um vídeo
quando está no ar ou imediatamente de-
pois de sua transmissão no YouTube. Ao
final de três strikes, o canal pode ser proi-
bido de subir novos vídeos por um perío-
do determinado. No caso de Os Pingos
nos Is, um polo de desinformação sobre a
vacina, a pandemia e a credibilidade das
urnas, apenas um vídeo sofreu um strike
– e porque violara direitos de imagem ao
exibir um trecho do programa Roda Viva.
“A Jovem Pan se tornou um problema
para o YouTube”, diz uma das fontes liga-
das à empresa que conversou com a piauí.
“É uma das dores de cabeça que temos
no momento. Era muito interessante o
jornalismo combativo que eles faziam lá
atrás, com bons colunistas que acabaram
pulando fora por causa da radicalização.
Hoje é o oposto: não se dá destaque para a
Jovem Pan nos eventos e eles não são mais
chamados.” Embora os tempos sejam o
Com o governo Bolsonaro, o sonho
de Tutinha de ter um canal de te-
levisão ficou mais viável. Em 2019,
depois de uma audiência com o presidente
em Brasília, o empresário saiu deci-
dido a entrar no ramo da tevê aberta.
Apesar de uma audiência digital rele-
vante, o grosso do público da Jovem Pan
ainda era formado por homens de classe
AB, acima de 60 anos, um contingente
mais conectado à tevê convencional do
que a plataformas de vídeo como o You-
Tube. Por isso, Tutinha achava que ti-
nha um público em potencial, mas
faltava um canal: tentou o antigo canal
da MTV, emissora que fez sucesso exibin-
do videoclipes musicais nos anos 1990.
Como o governo comanda as con-
cessões de tevê aberta, Tutinha obteve
o aval do ministro da Comunicação,
Fábio Farias, em maio de 2021, para
assumir a nova tevê, caso seus donos
quisessem mesmo vendê-la. Apesar da
situação juridicamente complicada do
canal da MTV, as negociações caminha-
vam bem, cresciam as especulações de
que logo a Jovem Pan viraria tevê, e
Tutinha resolveu fazer um comunica-
do público. No dia 13 de junho, postou
em sua conta no LinkedIn, a rede so-
cial de contatos profissionais, uma nota
cuja íntegra vai a seguir na forma como
foi originalmente escrita:
Em breve a Jovem Pan que tem uma
historia de 77 anos vai virar TV, se tudo der
certo entraremos com uma rede de 45 emis-
soras abertas+net+Sky+Digital+115
radios+rede +internet +rede social+ pan-
flix e mais tudo que conseguir colocar. Um
momento especial pra mim e pro meus ir-
mãos que acreditaram no meu trabalho e
do Marcelo meu irmano que esta a frente
comigo dos negocios. Trazer de volta a TV a
familia Carvalho que um dia foi dona da
TV Record e um desejo de mts anos.
To muto feliz, trabalho como se fosse
um adolecente, muita energia, muita gra-
tidão, muita fe em Deus. Meus sonhos so
estão começando e eles nao tem limite
quando chegam no topo novos desafios
aparecem e vou com toda força pra cima.
Hoje uma equipe de 500 pessoas traba-
lham pra TV virar realidade, vamos errar,
vamos aprender mas vamos dar certo,
nem que eu coloque minha cama na Jo-
vem Pan e more la mesmo.
Tenho recebido mensagens do Brasil
inteiro, fans da JP que me dão muito orgu-
lho. Minha meta não e so grana quero
deixar um legado e ajudar o Brasil a virar
um grande pais.
Espero vcs em breve assistindo a JP de
qualquer lugar do Brasil e ate fora atraves
do Panflix. Agradeço humildente ao meu
Pai meu idolo todo meu esforço sempre foi
mostrar que ele me ensinou bem e que
suas licoes estao dentro do meu coracão,
carater, descencia, honestidade, caridade,
pensar no proximo, entender nossos ou-
vintes/espectadores e que ele tenham total
confiança na marca Jovem Pan eu jamais
vou trair meus ouvintes /telespectadores e
por fim eu sou de radio e o radio eu jamais
vou abandonar. Eu sou radialista.
Pra encerrar dizer a todos os meus ir-
maos radialistas que montem suas equi-
pes, coloquem suas ideias em pratica, nao
tenham medo de novos programas, novas
experiencias, cameras nos estudios e fa-
cam muitos videos e todos dias olhem com
atenção para o futuro ele esta mais rapido
que nunca, nao deixem que ele os engula.
Deus nos ajude sempre. Muito orgu-
lho de ser radialista. Obrigado Brasil
que é o meu Pais e que por ele eu lutarei
sempre. Amem.
Quem conseguiu decifrar o patoá
ficou certo de que o jogo estava ganho.
A confusão jurídica do canal, no entan-
to, agravou-se em agosto, quando a Jus-
tiça determinou em segunda instância
a cassação da concessão – e Tutinha
achou que o investimento seria arrisca-
do demais. Em questão de dias, desistiu
da tevê aberta e optou por negociar um
canal na tevê paga – e, no dia 27 de
outubro de 2021, fez a primeira trans-
missão da Jovem Pan no canal 576, na
Sky e na Claro. Para ampliar a audiên-
cia, comprou também um sinal de saté-
lite por meio do qual a tevê Jovem Pan
pode ser transmitida para quem tem
antena parabólica, como se fosse um
canal aberto. O mecanismo não funcio-
na bem nos centros urbanos, mas tem
grande penetração nos grotões do país,
onde há mais de 20 milhões de parabó-
licas em funcionamento.
“A tevê foi toda autofinanciada pela
rádio, pela família. Um negócio comer-
cial privado. Não teve ninguém que che-
gou com dinheiro”, diz o jornalista
Humberto Candil, ex-diretor de redação
da Jovem Pan, que, em razão de sua ex-
periência na Band, fora contratado para
fazer a transição da rádio para a tevê. “Foi
um esforço financeiro enorme a compra
e a importação de equipamentos, contra-
tação de funcionários, seis estúdios em
atividade e um em construção.” Candil
deixou a Jovem Pan em fevereiro, mas é
defensor do seu modelo. “Não é mais no-
ticiário factual que a audiência quer. Ela
quer análise e comentário com coragem.
As pessoas não suportam mais aquela
coisa de ficar em cima do muro”, diz.
O discurso radical não incomoda
Candil, para quem o único limite que
não pode ser ultrapassado é o da vida.
“Você não pode ir para o ar e mandar
matar alguém. Aí você vai ser demiti-
do”, diz. O resto está liberado. “Muitas
vezes os comentaristas falam coisas que
não estão dentro da linha da Jovem Pan.
Mas existe um respeito pela ideia. A Jo-
vem Pan sempre teve os dois lados. Me
diga um canal que tem uma Amanda
Klein?” Candil refere-se ao troféu anti-
bolsonarista da emissora: Amanda Klein
faz parte do Jornal da Manhã e é a úni-
ca jornalista do programa que se opõe
ao governo. Tutinha, quando indagado
sobre a parcialidade do seu grupo, recor-
re ao mesmo argumento. “Aqui todo
mundo pode falar o que quer. A Aman-
da Klein não fala o que quer?” Tutinha
hostiliza publicamente a jornalista.
Chegou a replicar em suas redes sociais
um vídeo em que o ex-ministro Ricardo
Salles rebate Klein de modo grosseiro.
No vídeo, sobrepostos à imagem, apare-
cem os seguintes dizeres: “PARA DE FALAR
BOBAGENS AMANDA KLEIN!”
O presidente Bolsonaro tem dado duas
grandes contribuições à Jovem Pan.
A primeira é financeira, ao irrigar os
cofres da emissora com verbas públicas
por meio de publicidade. Em junho,
quando entrou no ar a campanha do Au-
xílio Brasil e do programa habitacional
Casa Verde e Amarela, a Jovem Pan teve
195 inserções do governo federal. Algu-
mas, com mais de um minuto de dura-
ção, foram apresentadas por jornalistas
da casa, sem qualquer aviso ao telespec-
tador de que se tratava de uma propa-
ganda. Os anúncios apareceram com
frequência inédita. Só no dia 24 de ju-
nho, sexta-feira, foram catorze inserções
que duraram ao todo dezoito minutos.
Naquela mesma sexta-feira, o governo
não colocou um único anúncio na CNN
Brasil, nem mesmo na líder do segmento,
a GloboNews. No consolidado do mês de
junho, fica patente como o governo privi-
legiou a Jovem Pan, em detrimento da
concorrência. Na GloboNews, houve ape-
nas 76 inserções de órgãos públicos (do
governo, do Ministério da Cidadania, dos
Correios, do Ministério da Saúde). Na CNN
Brasil, foram 105 (do governo, dos Cor-
reios, do Ministério da Cidadania, do Mi-
nistério do Turismo e da Agência Nacional
de Energia Elétrica). Mas, na Jovem Pan,
foi um sucesso: 267 inserções (do próprio
governo, do Ministério da Cidadania, dos
Correios, do Banco da Amazônia).
É uma diferença grande em relação
aos tempos dos governos petistas. Tutinha
já disse que, quando começou sua guina-
da à direita, foi pressionado em Brasília.
“O ministro virava para mim e falava:
você é de direita! E eu retrucava: e você,
de esquerda, e daí?” Certa vez, segundo
duas testemunhas do encontro, o então
ministro da Secretaria de Comunicação
Social do governo Dilma, Edinho Silva,
pediu que Tutinha moderasse nas críticas
para ganhar publicidade dos Correios.
Como a rádio recebera apenas 500 mil
reais de publicidade do governo entre
2014 e 2015, Tutinha ouviu o tilintar das
moedas. Chamou o historiador Marco
Antonio Villa num canto e pediu que
baixasse a bola. Villa não lhe deu ouvi-
dos, Tutinha insistiu, mas não resolveu.
Os Correios só fizeram anúncios pontuais
na rádio até a chegada do atual governo,
quando os cofres de fato se abriram.
A generosidade do governo Bolsona-
ro não se reproduz no mercado privado.
Segundo um levantamento obtido pela
piauí, que inclui órgãos públicos mas
também empresas privadas, em maio a
GloboNews teve 96 anunciantes, com
3 584 inserções publicitárias ao longo
da programação. A CNN Brasil aparece
em segundo lugar, com 43 anunciantes
e 1 962 inserções. A Jovem Pan, embora
tenha ultrapassado a audiência da CNN,
só figura em terceiro lugar com apenas
25 anunciantes e 1 119 inserções. Boa
parte das empresas que aparecem na
tela da Jovem Pan é pouco conhecida
– como a Homeopatia Waldemiro Pe-
reira – ou abertamente ligada ao bolso-
narismo, como a rede de restaurantes
Coco Bambu e a Gocil, grupo de um
ex-policial militar que reúne empresas
do agronegócio à segurança.
Um ex-gestor da área comercial, que
trabalhou muitos anos na empresa, re-
latou à piauí as dificuldades de captar
clientes. “Quando ainda era só rádio, ven-
díamos os espaços no horário de futebol
ou nos intervalos das faixas musicais. Mas
na tevê não tem futebol nem música, en-
tão é mais difícil fugir da programação
política”, diz ele. “No caso da tevê, a gen-
te terminava argumentando que, no fim
do dia, as marcas queriam vender e bolso-
narista queria comprar. Éramos muito
cobrados para vender Os Pingos nos Is.
Mas quem vai querer anunciar naquilo?”
Até programas de entretenimento foram
contaminados pela política. “A gente ven-
dia o Morning Show como entretenimen-
to, mas eu te pergunto: é entretenimento
o Adrilles gritando uma hora e meia sobre
urna eletrônica?” Adrilles Jorge é um ex-
BBB que aproveitou a fama de subcelebri-
dade que ganhou na Globo para disparar
teses conspiratórias e conservadoras.
Tutinha já chegou a encomendar um
projeto comercial sobre a Amazônia,
para tentar um patrocínio da Natura,
marca de cosméticos. Mas esbarrou no
fato de que a maioria dos comentaristas
de sua grade despreza a preservação am-
biental. “Empresas preocupadas com
imagem não entram. Não vai ter anúncio
de Unilever, Procter & Gamble, Roche,
Nestlé, Natura, Magazine Luiza”, conta
o ex-gestor da empresa. A diretora de
mídia de uma grande agência de publi-
cidade de São Paulo explicou que, embo-
ra sofresse grande pressão da Jovem Pan
para comprar espaço publicitário para
seus clientes, os riscos não compensavam
a boa audiência. “Há um compliance
mundial que o cliente tem de respeitar.
Se o anúncio é veiculado em meio a bri-
gas, discurso de ódio, racismo ou misogi-
nia, a responsabilidade é nossa e vira um
problema global para a empresa”, explica
a diretora, que atende uma multinacio-
nal cobiçada pela Jovem Pan. Recente-
mente, ela fechou um pacote de anúncios
de uma marca do setor de turismo com a
CNN, embora a Jovem Pan a tivesse pro-
curado com proposta semelhante.
A segunda grande contribuição de Bol-
sonaro é seu constante estímulo ao au-
mento da audiência. Faz elogios públicos
ao Pingos nos Is, como no caso da entrevis-
ta ao jornalista norte-americano Tucker
Carlson, da Fox News. Mandou que todos
os aparelhos de tevê do Palácio do Planal-
to fiquem sintonizados no 576. No aniver-
sário de 80 anos do grupo, enviou um
vídeo de parabéns, dizendo tratar-se de
“uma empresa que cada vez mais des-
ponta na luta pela liberdade de expres-
são”. É comum que faça suas lives de
quinta-feira com uma caneca do Pingos
nos Is sobre a mesa. Saúda os comentaris-
tas do programa no final de sua transmis-
são. Ao encerrar a live do dia 15 de julho,
disparou: “Assistam aí o Augusto Nunes
até umas oito horas. Eles pegam uma re-
barba da live da gente. Comenta alguma
oisa.” Depois, emendou: “Tem um jor-
nalismo de excelente qualidade pela sua
isenção. É um exemplo de jornalismo.”
A “rebarba” é uma mostra da simbiose
entre as lives de Bolsonaro e Os Pingos
nos Is. Sempre que o presidente abria sua
transmissão às sete da noite, caía a audiên-
cia do programa da Jovem Pan, que co-
meçava uma hora antes. A produção
entendeu que as pessoas estavam migran-
do de um para o outro, esvaziando o ca-
nal da emissora. No início de 2020, surgiu
a solução: Os Pingos nos Is começou a
retransmitir a live toda ao vivo, qualquer
que fosse a sua duração, que nunca era
de tempo fixo. No restante das 2 horas de
programa, os comentaristas opinavam
sobre os tópicos abordados por Bolsonaro.
Com uma vantagem adicional: podiam
ainda fazer perguntas a Bolsonaro e vice-
versa. A partir de julho, em razão da lei
eleitoral, a transmissão foi interrompida.
Nesse sistema que se retroalimenta, os
assuntos se cruzam. Na semana em que o
site The Intercept Brasil publicou a notícia
de que uma juíza de Santa Catarina não
autorizara que uma menina de 11 anos
grávida de estupro fizesse um aborto, o
diretor do Pingos nos Is, Clayton Ubinha,
acionou Ana Paula Henkel, a ex-jogadora
de vôlei, no grupo de WhatsApp do pro-
grama. Perguntou se ela, militante antia-
borto, queria comentar o assunto. Henkel
disse que não. Na mesma noite, por volta
das 21 horas, Bolsonaro se manifestou
sobre o tema no Twitter, apoiando a de-
cisão da juíza. Pronto. Era a senha para
que o assunto ganhasse a Jovem Pan. No
dia seguinte, era só o que se falava na
emissora – e a maioria dos comentaristas
concordava que o aborto era ilegal por-
que o sexo fora consensual, ainda que
não existisse a figura legal do “sexo con-
sensual” com uma criança de 11 anos.
Ubinha, o diretor, também é respon-
sável pelo contato direto com o gabinete
presidencial para tratar de aspectos técni-
cos da live de Bolsonaro. Nessa função,
acabou ficando próximo dos assessores
do presidente. Quando Bolsonaro quer
fazer algum comentário sobre notícias
veiculadas na Jovem Pan, aciona o dire-
tor. Em maio, quando se discutia no pro-
grama Opinião se Bolsonaro apoiaria a
deputada federal Carla Zambelli (PL-SP)
ou a deputada estadual Janaina Paschoal
(PRTB-SP) para o Senado por São Paulo, o
presidente mandou dizer a Ubinha que
não apoiaria nenhuma das duas, mas o
apresentador José Luiz Datena, da Band.
O jornalista William Travassos interrom-
peu a programação para dar o recado de
Bolsonaro ao vivo. Dias depois, Datena
desistiu da candidatura.
Os Pingos nos Is até já mudou política
pública ao vivo. No dia 14 de setembro
de 2021, depois que o Ministério da Saúde
autorizara a vacinação de adolescentes
contra a Covid, Ana Paula Henkel citou
um trecho do plano de vacinação em
que dizia que a imunização era indicada
apenas para jovens acima de 18 anos.
Bolsonaro, que assistia ao programa, li-
gou para o ministro da Saúde, Marcelo
gesticulou, ao longo de toda a fala, insi-
nuando que o jovem estava louco ou
dizendo loucuras. Tudo foi filmado,
mas a Jovem Pan logo deletou o vídeo
de sua conta no YouTube.
Na mesma época, Tutinha mandou
tirar do ar o programa Eva, voltado para
o público feminino, depois que um epi-
sódio tratou do tema “masturbação”.
Em julho passado, no chocante episó-
dio em que uma mulher grávida foi es-
tuprada pelo anestesista Giovanni
Quintella Bezerra durante o parto, a
Jovem Pan exibiu as imagens sem tarja,
expondo a identidade da vítima. Houve
revolta nas redes sociais e um protesto
na frente da emissora. Em uma nota, a
empresa não se desculpou. Disse que as
mesmas imagens haviam sido exibidas
por outras redes. Entre as principais
emissoras, nenhuma mostrou as ima-
gens sem proteger a vítima.
Quem conhece Tutinha, no entanto,
arrisca que seu bolsonarismo é de oca-
sião. Seu negócio é dinheiro. Apesar das
verbas públicas, da audiência no YouTu-
be e do lucro de 15,7 milhões, Tutinha
acha que pode ganhar muito mais. Com
as dificuldades de atrair anunciantes no
mundo privado, o empresário trocou seu
responsável pela área comercial em abril
passado. Contratou José Carlos (Zeca)
Vianna, um executivo de vendas sem ex-
periência no mercado de mídia. Vianna
foi quem deu a ordem para que a emisso-
ra divulgasse um editorial defendendo a
urna eletrônica, o que chocou parte da
audiência e dos próprios comentaristas.
Deu a ordem porque, numa reunião
com um grande banco privado, desco-
briu que o radicalismo da emissora a ex-
cluía dos requisitos para receber anúncios
da instituição. Vianna também proibiu
que os comentaristas do Pingos nos Is vol-
tassem a pregar contra a vacina – o que
nem sempre é cumprido pelo jornalista
Guilherme Fiuza.
Em julho passado, em entrevista ao site
Notícias da TV, o presidente executivo Ro-
berto Araújo já afirmou que a Jovem Pan
“não tem lado” e disse que Lula, se eleito,
será “muito bem recebido”. Numa reunião
entre comentaristas da rádio e a direção,
ocorrida em 27 de julho, a produtora exe-
cutiva Mariana Ferreira disse com todas
as letras que o Pingos nos Is estava dando
problemas e vetou todos os comentaristas
Queiroga, para cobrar explicações. Em
seguida, mandou mensagem para Au-
gusto Nunes avisando que só adolescen-
tes com comorbidades seriam vacinados.
Os outros, não. O texto foi lido pelo co-
mentarista ao vivo. Pouco depois, Quei-
roga recuou e voltou a incluir todos os
adolescentes. A vacinação, por causa da
interferência do presidente, começou
com uma semana de atraso.
Quando, no início da pandemia, Os
Pingos nos Is decidiu mostrar a evolução
da mortalidade do vírus destacando o
número de “curados” em vez do de mor-
tos, o gabinete presidencial adotou a
ideia e ordenou que o Ministério da Saú-
de fizesse o mesmo. Quando uma repor-
tagem do portal Metrópoles mostrou
que o governo gastava mais de 15 mi-
lhões de reais com leite condensado, o
programa fez um bloco inteiro para ex-
plicar a razão do desembolso, e a expli-
cação passou a ser usada pelo próprio
governo para prestar contas à militância.
A ideia de descredibilizar a reportagem
partiu de Ubinha, o autor do título que
acompanhava o vídeo: “Oposição usou
fatos distorcidos para atacar o presidente
Bolsonaro.” Aos colegas, Ubinha costu-
ma dizer que o Pingos é “fundamental”
para “controlar a narrativa” do governo
no YouTube, atuando como linha auxi-
liar do bolsonarismo. Quando a cantora
Anitta divulgou seu apoio à candidatura
de Lula, o vídeo que mais teve engaja-
mento sobre o tema foi justamente o do
programa, superando aqueles publica-
dos pela imprensa e por apoiadores do
PT. O título dado pela Jovem Pan era:
“Após declarar apoio, Anitta pede que
Lula libere as drogas no Brasil.”
Funcionário da emissora desde 2007,
Ubinha faz um papel com o qual a maio-
ria dos jornalistas da redação não concor-
da. Por isso, sempre que sai de férias é um
martírio escalar alguém que aceite subs-
tituí-lo. Na redação, a equipe de comen-
taristas do programa é comumente
chamada de “aquele bando de malucos”.
Quem apoia a guinada bolsonarista inter-
namente costuma se defender dizendo
que, não fosse por isso, a empresa estaria
fadada ao fracasso. “A Jovem Pan fez da
defesa do Bolsonaro um negócio lucra-
tivo”, diz um graduado funcionário,
para quem a emissora – “pelos bons servi-
ços que presta” – deveria até ganhar mais.
No processo de bolsonarização, a
Jovem Pan comprou o pacote in-
teiro. O racismo não é um tema
bem-vindo na programação. Não tem
apresentadores negros. Quando, em 2019,
o programa Morning Show repercutiu o
episódio em que a empresária Donata
Meirelles foi fotografada rodeada de
mulheres negras trajadas de baianas,
emulando o arquétipo da sinhá rodeada
de mucamas, Tutinha se irritou. Um dos
dois únicos repórteres negros da reda-
ção havia sido escalado para falar sobre
o tema no programa. Enquanto ele fala-
va, Tutinha fez uma rara aparição no
estúdio. Sentou-se ao lado do repórter e
de extrema direita de participarem das
sabatinas eleitorais que serão promovidas
pela rede. O único a não ser excluído é o
debatedor Roberto Motta, considerado
o menos radical da turma. Para Tutinha,
a Jovem Pan é de “centro”. “Se o nosso
público amanhã mudar de lado, eu vou
mudar com ele. Mas eu faço meu jorna-
lismo pro público que ouve a Jovem Pan,
que vê a Jovem Pan e que entra nos canais
digitais da Jovem Pan. Isso dá uma vanta-
gem porque éramos praticamente eu e
O Antagonista. Agora, O Antagonista
mudou”, disse o empresário num vídeo
publicado em março no YouTube, refe-
rindo-se ao fato de que o site O Antago-
nista se afastou do governo Bolsonaro
desde a saída de Moro. “Não quer dizer
que a gente é bolsonarista”, acrescentou
Tutinha. “A gente não é nada. A gente é
uma emissora que fala a verdade.”
A verdade da Jovem Pan já foi celebra-
da aos gritos no último 1º de maio, na
comemoração do Dia do Trabalho. Em
cima de um carro de som, diante de uma
grande plateia de verde e amarelo na
Avenida Paulista, a deputada Carla Zam-
belli, maestrina da claque bolsonarista,
deu uma diretriz: “Vocês têm um desafio
para fazer. Liguem as televisões de vocês,
nas empresas de vocês, não em música,
não na Globo, não no esporte, mas em in-
formação de verdade. É assim que a gente
vai conseguir vencer. Convencendo cada
um.” Em seguida, entrou no ponto que
interessava: “Quem elegeu o presidente
Bolsonaro? A Jovem Pan? Quem aí gosta
da Jovem Pan? Então é o seguinte, aqui
um desafio pra vocês: põe no canal da
Jovem Pan, porra!” Os manifestantes co-
meçaram a gritar em uníssono: “Jovem
Pan, Jovem Pan, Jovem Pan!”
William Travassos, que naquele mo-
mento apresentava o JP Urgente, na Jo-
vem Pan News, agradeceu ao vivo: “Em
nome da família Jovem Pan, nós quería-
mos agradecer esse carinho do público
que está com a gente agora. Muito obri-
gado pela audiência dos senhores.” A gen-
tileza foi retribuída na convenção do PL,
realizada no Maracanãzinho, que oficia-
lizou a candidatura de Bolsonaro à reelei-
ção no final de julho passado. Uma faixa,
com letras pintadas nas cores da bandeira
nacional, informava: “Tamo junto – Ca-
pitão e Jovem Pan – Guilherme Fiuza,
Zé Maria e Augusto Nunes.
PIAUI