Por Ana Flávia Gussen...
Prometi que meu luto vira-
ria luta. Mas superar um
luto com tanto sentimen-
to de revolta é muito duro
(…) Eles mataram várias
pessoas ali”, desabafa Kátia Castilho, fi-
lha de Irene, uma das vítimas da Prevent
Sênior durante a pandemia. Além de re-
ceber o kit Covid, com hidroxicloroqui-
na, ivermectina e azitromicina, em mar-
ço de 2021, quando estava claro que os
medicamentos não possuíam qualquer
eficácia contra a Covid-19, Irene teve sua
saúde negligenciada até o último mo-
mento. A paciente foi mandada para ca-
sa diversas vezes e teve pedidos de exa-
mes negados. Nem quando a situação se
agravou (50% do pulmão comprometi-
do), o plano privado tomou as providên-
cias corretas. Após espera de 12 horas na
fila, Irene, enfim internada no Hospital
Sancta Maggiore, em São Paulo, acabou
medicada com flutamida, remédio po-
tencialmente letal por ter como efeito co-
lateral a hepatite. A equipe médica sabia
que a doente tinha metade do fígado
comprometido e que o tratamento era
experimental, mas manteve as doses do
medicamento por dez dias sem autoriza-
ção expressa da família.
A história de Irene é uma entre cente-
nas de vítimas da Prevent Sênior, acusada
por duas CPIs, uma no Senado e outra na
Câmara de Vereadores de São Paulo, de
cometer mais de 50 tipos de crimes e de
omitir sete de nove mortes de idosos cau-
sadas por uma pesquisa a respeito do uso
de cloroquina. Omissão que serviu aos in-
teresses de Jair Bolsonaro, defensor do
kit Covid e da imunidade de rebanho
em substituição à vacinação em massa.
O número de famílias cujos direitos
contratuais e humanos foram negados
pela operadora durante a pandemia po-
de, no entanto, ser bem maior do que se
imagina. Levantamento exclusivo obtido
por CartaCapital revela que, entre 2020
e 2022, a empresa foi alvo de mais de 600
ações por recusar medicamentos, cirur-
gias e internações, a despeito de laudos
médicos favoráveis, e suspender trata-
mentos oncológicos. A Prevent Sênior,
em nota, refutou a interrupção de aten-
dimento a pacientes de câncer, mas es-
ta revista reuniu dezenas de processos
em que clientes do plano ingressaram na
anos vítima de um linfoma teve o atendi-
mento em casa rejeitado, embora o serviço
constasse das cláusulas do contrato. Em
outro, um homem de 65 anos com câncer
de próstata reclama da recusa de uma la-
paroscopia, cirurgia menos invasiva. Na
ocasião, o médico informou que o plano
havia suspendido esse tipo de procedi-
mento. No mesmo ano, 2021, em entre-
vista ao jornal Valor, Fernando Parrillo,
presidente da Prevent Sênior, gabou-se,
porém, da estrutura oferecida aos clien-
tes: “Temos vários exemplos de alta com-
plexidade. Iniciamos cirurgia robótica pa-
ra operar inflamações da próstata, por
exemplo”. O procedimento consta ainda
do programa de residência médica da em-
presa, segundo descreve a ação judicial.
Em um terceiro processo, um paciente
com metástase no pâncreas viu-se obri-
gado a acionar a Justiça para que o me-
dicamento quimioterápico fosse forneci-
do, após sucessivas negativas do plano de
saúde. As centenas de ações judiciais pes-
quisadas por CartaCapital tramitam no
estado de São Paulo e aparecem no site do
Tribunal de Justiça. “A seguradora não
está habilitada, tampouco autorizada, a
limitar as alternativas possíveis para o
restabelecimento da saúde do segura-
do, sob pena de colocar em risco a vida
do consumidor”, anotou um dos juízes.
O plano de saúde
responde por
mais de 600 ações
em São Paulo por
negar tratamentos
e medicamentos
Em paralelo, familiares dos pacientes
mortos na pandemia que foram medica-
dos com kit Covid denunciaram à Pro-
curadoria de Justiça de São Paulo o des-
cumprimento do Termo de Ajustamen-
to de Conduta assinado pela operadora
e homologado pelo Conselho Superior
do Ministério Público paulista em no-
vembro passado. Até direitos básicos,
como acesso dos parentes aos prontu-
ários, não foram cumpridos, a exemplo
da demanda do advogado Tércio Felippe
Bamonte, que perdeu o pai em 2020. “Em
maio, ele começou com os sintomas. Pro-
curamos o hospital na Santa Cecília, mas
disseram que seu exame tinha dado ne-
gativo e o liberaram. Fui buscá-lo e nos
deram o ‘kit Covid’. A partir daí ele piorou
muito. Levamos novamente e um médi-
co o chamou de preguiçoso e prescreveu
cloroquina”, conta Bamonte. Dias depois,
uma tomografia indicou que 50% do pul-
mão estava comprometido pela ação do
vírus. “Eles mandaram meu pai para ca-
sa para morrer lá e sair das estatísticas
do hospital.” Passado um mês da morte,
o advogado recebeu uma ligação, supos-
tamente da Secretaria de Saúde muni-
cipal. O interlocutor buscava informa-
ções sobre o atendimento ao pai, pois no
sistema constava um teste positivo para
Covid-19. “Existe um teste positivo. Eles
mentiram? Agora estou desde dezembro
tentando acessar o prontuário de um dos
hospitais, mas a Prevent não libera. Nem
relatório da UTI eu tenho.”
“Eles mandaram
meu pai para morrer
em casa”, denuncia o
advogado Tércio
Bamonte, impedido
de acessar o
prontuário médico
Liberar o acesso à documentação re-
lativa às internações e consultas é parte
das obrigações aceitas pela operadora no
acordo com o Ministério Público, assim
como publicar desmentidos sobre a pes-
quisa da cloroquina, criar um fundo des-
tinado à reparação dos mártires e enviar
o termo de ajustamento aos associados,
além de regularizar a situação das unida-
des de atendimento: sete seguem sem al-
vará da prefeitura e outras seis apresen-
tam irregularidades e inconsistências
nas liberações, segundo denúncia da As-
sociação Nacional em Apoio e Defesa dos
Direitos das Vítimas. Com apoio do de-
putado estadual Emídio Souza, do PT, a
associação encaminhou ao Procurador-
-Geral de Justiça do estado, Mário Luiz
Sarrubbo, as irregularidades, incluí da a
exclusão de representantes das famílias
das negociações do TAC.
Segundo a advogada Bruna Morato, o
Ministério Público precisa ajustar o ter-
mo, que, em sua primeira versão, deixou
brechas usadas pelo plano de saúde pa-
ra não cumprir as exigências, mas trans-
formar o acordo em uma peça de propa-
ganda. “Vários dos dispositivos previstos
permanecem letra morta para as vítimas
e suas famílias, ainda que tenham sido
fartamente aproveitados pela empresa
em sua estratégia, sempre muito ousada,
de comunicação, para esconder a natu-
reza de seus crimes e zelar por uma ima-
gem e lucros obtidos à margem da qua-
lidade dos serviços prestados na pande-
mia”, registra a associação no ofício en-
tregue ao procurador-geral.
Outra medida não cumprida refere-
-se aos critérios dos chamados “cuidados
paliativos”, que durante a pandemia te-
riam sido tomados de forma unilateral
por médicos, à revelia das famílias. Do-
cumentos obtidos pela TV Globo mos-
tram que pacientes com chances de tra-
tamento foram encaminhados para cui-
dados paliativos com o objetivo de redu-
zir custos. Foi o caso de Tadeu Andra-
de, sobrevivente da Covid-19. O cliente
da operadora encaminhou os prontuá-
rios ao Ministério Público, um deles as-
sinado por uma médica que ordenava a
suspensão de uma série de medicações e
procedimentos, entre eles o tratamento
de hemodiálise, e orientava que Andrade
não fosse submetido a manobras de res-
suscitação. Na CPI do Senado, Otto Alen-
car, do PSD da Bahia, classificou a docu-
mentação como prova de que a Prevent
Sênior realizava “eutanásia disfarçada”.
Irene, mãe de Kátia Castilho, também
foi submetida a cuidados paliativos sem
Dever. Sarrubbo, procurador-geral
em São Paulo, recebeu em mãos as
denúncias das famílias das vítimas
do plano de saúde. Cabe ao Ministério
Público cobrar o cumprimento do acordo
autorização. “Fomos visitá-la e ela estava
com as mãos enfaixadas. Disseram que
ela estava com frio, mas insistimos pa-
ra tirar as faixas. Quando tiramos, vi-
mos que estavam muito roxas. Depois
de vermos os prontuários, descobrimos
que eles deram dipirona para ela, apesar
de todos os prontuários estarem com ca-
rimbo avisando que ela era alérgica à me-
dicação. Ela teve um choque anafilático.
Fazia cinco dias que estava em tratamen-
to paliativo sem o nosso con-
sentimento”, recorda a filha.
Com base nesses casos, a as-
sociação de vítimas pede à Pro-
curadoria a definição de um
conceito mais preciso sobre
“cuidados paliativos” e a cria-
ção de uma junta que inclua
uma equipe multidisciplinar,
familiares, e que seja fiscaliza-
da pelo Conselho Regional de
Medicina. “Precisamos pen-
sar o quanto essa prática pode
se disseminar de forma erra-
da entre outras operadoras. É
uma questão da maior impor-
tância que o uso de paliativos te-
nha critérios muito bem defini-
dos”, afirma a médica e ex-pes-
quisadora da Fiocruz Cláudia
Travassos, integrante do Grupo
de Trabalho das famílias.
Em nota, a Prevent Sênior
“reafirmou sua convicção de
que investigações técnicas, sem
contornos políticos, possam res-
tabelecer a verdade dos fatos,
como já ocorreu no relatório fi-
nal enviado ao Ministério Públi-
co pela Polícia Civil do Estado de
São Paulo. A operadora tem cumprido ri-
gorosamente o TAC formalizado com o
MP na esfera cível”.
As denúncias levantadas pela CPI da
Covid no Senado estão paradas há se-
te meses na Procuradoria-Geral da Re-
pública. Além do pedido de reformula-
ção do termo de ajustamento de conduta
em âmbito estadual, o Ministério Públi-
co paulista segue com as investigações,
apesar do relatório da Polícia Civil que
isentou a operadora de crimes durante
a pandemia. O texto de apenas 13 pági-
nas assinado pela delegada Lisandrea
Calabuono, da Divisão de Homicídios e
Proteção à Pessoa, atropela o inquéri-
to em curso e foi contestado pela defe-
sa das famílias por uma série de incon-
gruências, supostas falhas e omissões.
CartaCapital entrou em contato com a
Polícia Civil, que orientou o contato com
a Secretaria de Segurança Pública. Até o
fechamento desta edição, não houve res-
posta às perguntas encaminhadas. “O re-
latório repete as frases usadas na defe-
sa da Prevent. Sem contar que, poucos
minutos depois da divulgação do relató-
rio, um dos CEOs da Prevent (Fernando
Parrillo) divulgou nas redes sociais víde-
os em que descreve o resultado como ‘ab-
solvição’ da empresa”, contesta Morato.
A delegada decidiu ignorar o trabalho
da CPI municipal, que pediu o indicia-
mento de 20 acusados por 52 crimes re-
lacionados às ações do plano de saúde na
pandemia. Das centenas de familiares, os
responsáveis pelo inquérito na Polícia Ci-
vil ouviram apenas quatro médicos e um
jornalista na condição de denunciantes,
contra 14 testemunhas favoráveis à ope-
radora. “Outro ponto gravíssimo que foi
denunciado pelo médico e ignorado pela
delegada em seu relatório é a afirmação
de que pacientes recebiam o kit mesmo
sem a realização de exames, impedindo
que os riscos fossem avaliados”, registrou
Morato na manifestação, ao lembrar que
a Prevent distribuiu mais de 100 mil kits
Covid aos associados. Familiares e médi-
cos denunciantes temem que a empresa
use o relatório para desqualificar as víti-
mas e contestar futuras ações.
As famílias das
vítimas contestam
o relatório da Polícia
Civil que inocenta
a operadora
Enquanto resta aos parentes uma lu-
ta solitária por justiça, a Prevent Sênior
continua a pleno vapor. A operadora man-
tém o ritmo de expansão e registra um
aumento das receitas de quase 1 bilhão
de reais. O faturamento no ano passado
atingiu a marca de 5,1 bilhões de reais, al-
ta de 19% em relação a 2020. A compa-
nhia deu início a uma ofensiva no mer-
cado carioca, incluindo novas unidades
na Zona Sul do Rio, com investimentos
de 300 milhões de reais, além de uma no-
va onda de expansão em São Paulo, res-
ponsável por 94% da receita. O diretor-
-executivo da operadora, Pedro Benedito
Batista Júnior, faz sucesso no YouTube
por causa da participação em um pro-
grama chamado Perguntando Para
Milionários Como Ganhar 1 Milhão. No ví-
deo, Batista Júnior abre as portas de sua
casa e exibe a coleção de obras de arte e
de motos na sala de estar. O executivo é
um dos indiciados pela CPI do Senado por
crimes de omissão de notificação e contra
a humanidade. Ele negou que a empresa
tenha ocultado mortes para melhorar os
dados da pesquisa do uso de cloroquina.
“Reitero que o dossiê entregue a esta Casa
é uma peça de horror, produzido a partir
de dados furtados de pacientes, sem qual-
quer autorização expressa, o que confi-
gura crime que precisa ser investigado.
Esses dados precisaram ser manipulados
para deturpar a real conduta de mais de 3
mil médicos e, desta maneira, após furta-
dos e adulterados, pudessem ser usados
para atacar uma empresa idônea”, afir-
mou em setembro. •
CARTA CAPITAL
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