Ministro do Meio Ambiente dá sinais antagônicos à pasta ao ir na direção
de licenciamentos flexíveis, menor controle de agrotóxicos e leniência
com punições
Vinicius Sassine e Thiago Herdy
No começo de abril, fiscais do Ibama entraram na Floresta Nacional do
Jamari, em Rondônia, para pôr um fim momentâneo na exploração ilegal de
madeira empreendida por um grupo de produtores da região. Feito o
flagrante, constatada a necessidade de evitar a retirada de outras toras
da floresta e diante das dificuldades inerentes a uma mata de difícil
acesso, os agentes fizeram aquilo que a lei determina: atearam fogo a
dois caminhões e a um trator usados no crime ambiental. Assim é feito há
quase 11 anos, desde julho de 2008, quando entrou em vigor um decreto
presidencial que ampara a prática de destruir bens usados em crimes
ambientais.
A ação dos fiscais provocou uma reação em cascata. Produtores da região
passaram a trocar mensagens indignadas. “Parece que teve uns caminhões
queimados em Cujubim, e o secretário aqui de Rondônia, o Elias, entrou
em contato com o ministro do Meio Ambiente”, disse um deles, celebrando o
respaldo ministerial franqueado pelo governo de Jair Bolsonaro. Cujubim
está a pouco mais de 200 quilômetros de Porto Velho. A floresta se
localiza entre as duas cidades. “Vamos prejudicar os caras que queimaram
esses caminhões. Não vamos deixar esse trem barato, não”, respondeu um
segundo produtor. “Acho que vai dar problema pra eles. O que a gente
puder fazer para prejudicar esse povo, a gente vai fazer. Tá na hora.
Chega.”
Elias Rezende, secretário de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia, queixou-se ao governador, Coronel Marcos Rocha, do PSL, o mesmo partido do presidente. Rocha ligou para o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Na conversa, disse que a destruição de equipamentos usados em crimes ambientais causava revolta e não deveria ser feita. O governador ouviu de Salles que a situação mudaria em breve. “O ministro se comprometeu a apresentar uma minuta para alterar esse decreto”, disse Rezende. O próprio presidente Bolsonaro gravou um vídeo em que desautorizava a ação do Ibama — e que viralizou nas redes sociais.
Tal convicção é tão patente no governo que Jair Bolsonaro não demonstrou constrangimento quando, ao discursar no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, em janeiro, afirmou que sua gestão teria como premissa a aliança entre os dois setores, chamados pelo presidente de “indissociáveis”. Para justificar sua fala, o presidente recorreu a um sofisma que induz à ideia de que o Brasil avançou demasiado na preservação ambiental, deixando o agronegócio, que traz muito mais recursos ao Produto Interno Bruto (PIB) do que florestas, comendo poeira na estrada. Disse ele: “Somos o país que mais preserva o meio ambiente. Nenhum outro país do mundo tem tantas florestas como nós. A agricultura se faz presente em apenas 9% do nosso território e cresce graças a sua tecnologia e à competência do produtor rural. Menos de 20% de nosso solo é dedicado à pecuária. Essas commodities, em grande parte, garantem superávit em nossa balança comercial e alimentam boa parte do mundo”.
A fala do presidente resume o que pensa a bancada ruralista e a função
do ministro Salles em seu governo. Mais que um funcionário de alto
escalão do Executivo, Salles é a personificação de um conjunto de ideias
que encontrou solo fértil em setores conservadores no Brasil e no mundo
— e que vai além do mero pragmatismo econômico. São grupos que, em
alguns casos, mostram-se céticos sobre os efeitos das mudanças
climáticas (alguns acreditam que o aquecimento global é um fenômeno
natural que ocorre de tempos em tempos na atmosfera, sem qualquer
relação com o impacto humano), defendem o afrouxamento do Código
Florestal e são entusiastas da tese de que povos indígenas são
beneficiados por políticas de demarcação, muitas vezes à custa de
prejuízos aos agricultores. A ideia que norteia esses grupos é que a
preservação ambiental criou um ambiente de injustiça contra
proprietários de terra.
Os efeitos da nova agenda podem ser percebidos na administração federal. Documentos obtidos por ÉPOCA mostram um afrouxamento de regras para o descarte de resíduos decorrentes da perfuração de poços de petróleo, contrariando recomendações dos próprios técnicos do governo. Ofícios também apontam gestos no sentido de flexibilizar licenciamentos ambientais. Atos tornaram o controle de agrotóxicos menos efetivo. Discussões sobre pagamentos de serviços ambientais e sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR) foram paralisadas. O sistema de punição e aplicação de multas foi afrouxado. E áreas centrais do ministério seguem acéfalas. Pela visão dos críticos, a gestão ideológica no Ministério do Meio Ambiente produz efeitos imediatos. Além disso, ataques virtuais vindos do presidente e do ministro a fiscais a serviço do Ibama e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão que cuida das Unidades de Conservação federais, têm estimulado produtores a resistir a qualquer tipo de controle.
No início dos anos 2000, Salles era um jovem advogado que integrava o
solitário grupo de paulistanos que organizavam eventos para levantar a
bandeira do livre mercado, da defesa da propriedade privada e do Estado
mínimo, reunidos em torno do movimento Endireita Brasil. O país vivia o
auge do lulismo, que perduraria até a segunda eleição de Dilma Rousseff
(PT), e não havia grande espaço para a direita no espectro político. O
grupo, no entanto, não abandonou a causa. E escolheu o jovem advogado
como representante para tentar uma vaga no Legislativo. Salles tentou
ser vereador, deputado estadual e federal por São Paulo. Fracassou em
todas tentativas. As críticas ao PT o levaram a se aproximar do
governador Geraldo Alckmin (PSDB), de quem virou secretário particular e
depois secretário de Meio Ambiente. Durante esse período, colecionou
inimizades ao criticar publicamente o que via nos bastidores do Palácio
dos Bandeirantes: a força da aliança “de políticos picaretas que se
ajudam, se conhecem e se acobertam”, independentemente da filiação
partidária.
Filho de um casal de advogados paulistanos, Salles não tem como origem o campo. Aproximou-se de lideranças da Sociedade Rural Brasileira e da União Democrática Ruralista (UDR) graças ao Endireita Brasil. Em 2018, candidatou-se pelo Novo a uma vaga na Câmara dos Deputados, defendendo medidas como a mudança da sede da capital do país de Brasília para São Paulo, o fim das visitas íntimas em presídios e o uso de munição de fuzil contra a esquerda e o MST. Fiou a candidatura à Presidência de João Amoedo (Novo) e por isso teve de avisar ao antigo chefe, Alckmin, também candidato ao Planalto, que seria fiel à nova legenda e infiel ao tucano. Percebeu no meio da campanha que a candidatura Amoedo naufragaria e aderiu discretamente a Bolsonaro, depois de participar de um encontro dele com militares e empresários, em São Paulo.
Ao chegar a Brasília, o ministro trocou quase todos os superintendentes
do Ibama nos estados. Cercou-se de militares. Dos nove assessores em seu
gabinete, cinco vêm do Exército, assim como o chefe de gabinete, o
ouvidor do órgão e o assessor de imprensa. Sob sua gestão, a diretoria
do ICMBio também foi militarizada — e uma ação na Justiça contesta a
nomeação de um coronel, um major e um tenente-coronel da PM de São Paulo
na diretoria do órgão.
Há convergência de ideias entre o ministro e setores das Forças Armadas, em especial na questão das reservas indígenas. Por serem alguns dos poucos grupos a ter permissão legal para circular em regiões preservadas, militares dizem ver de perto a pobreza das regiões e defendem que haja políticas de desenvolvimento em áreas preservadas — ideia criticada por ambientalistas.
Entre os técnicos, é dado como certo que Salles proporá a alteração do decreto que permite a destruição de bens flagrados em crimes ambientais. É um pleito antigo de políticos da bancada ruralista. “Em Rondônia, a orientação é para que não ocorra a destruição. O governador conversou com o ministro e pediu para que ele repita o que ocorre aqui. O posicionamento do ministro é que o decreto seja reformulado. E isso não significa um incentivo ao desmatamento, mas ao amplo contraditório”, disse o secretário de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia.
Salles também prepara a flexibilização dos licenciamentos ambientais,
que prevê até a dispensa deles para determinados setores. Indicado pelo
ministro para presidir o Ibama, Eduardo Bim assinou uma instrução
normativa há menos de um mês estabelecendo os procedimentos para a
delegação de licenças da União para estados e municípios. Uma semana
depois, o Ibama delegou ao governo da Paraíba as atribuições de
licenciamento para as atividades econômicas de uma grande empresa no
estado.
Nos últimos dias de abril, Bim enviou um ofício ao Ministério da Economia dizendo ter interesse em seis servidores que trabalhavam na Valec em Tocantins, a estatal responsável por construir ferrovias. Ele não viu impedimento no fato de os funcionários terem atuado no outro lado do balcão. Pelo contrário: o presidente do Ibama pediu que os servidores trabalhem no órgão especificamente no “licenciamento ambiental de grandes obras de infraestrutura”.
Salles também nomeou para a chefia da assessoria de relações interministeriais do Meio Ambiente o criador das peças gráficas de sua própria campanha, de acordo com os registros do TSE. Trata-se do linguista, publicitário e criador de memes paulista David Boutsiavaras, que atende por diferentes pseudônimos no ringue virtual pró-Bolsonaro. Na terça-feira 7, ÉPOCA perguntou a Boutsiavaras que atividades executa no ministério e como sua experiência na internet poderia ser útil ao novo trabalho. Ele preferiu não se manifestar.
Esvaziar áreas que não considerava prioritárias era uma estratégia na época em que era titular da pasta de Meio Ambiente de São Paulo. Centralizador, o então secretário causou polêmica ao cancelar pagamentos de contratos já assinados, medida semelhante à que tentou adotar ao deparar-se com o custo de aluguel de veículos no Ibama. Depois de anunciar o cancelamento do contrato com estardalhaço e retuíte do presidente, voltou atrás ao ser alertado sobre a necessidade de manutenção do aluguel. Bolsonaro teve de apagar a postagem.
No ministério, Salles esvaziou o desenho de políticas públicas voltadas para os efeitos das mudanças climáticas e quase zerou o orçamento para a área. Acabou com a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas, ainda nos primeiros dias de janeiro. Depois, alocou integrantes da extinta secretaria — os que permaneceram no ministério — numa assessoria especial. Até agora, a única posição do ministro a favor dessas políticas foi a defesa de que o Brasil continue fazendo parte do Acordo de Paris, um compromisso de 195 países para a redução da emissão de gases de efeito estufa. No fim do ano, por decisão de Bolsonaro, o país desistira de sediar a Conferência do Clima da ONU.
O impacto internacional das novas políticas faz técnicos do governo
prever dificuldades para que o Brasil acesse dinheiro do Fundo do Clima,
que recebe aportes de diversos países. O mesmo temor existe em relação a
recuos de investidores do Fundo da Amazônia. A Noruega, por exemplo, já
aportou US$ 1,2 bilhão ao fundo. Ambos são operacionalizados pelo
BNDES.
No fim de abril, mais de 600 pesquisadores e integrantes da comunidade científica internacional pediram à União Europeia que condicione parcerias com o Brasil a novas garantias de proteção ambiental. O manifesto foi publicado na revista Science e leva em conta o reconhecimento, pela comunidade internacional, do Brasil como o país mais biodiverso do mundo.
O ministro do Meio Ambiente não se opôs à transferência do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) de seu ministério para o Ministério da Agricultura. Nem à nomeação do principal opositor do Código Florestal, o ex-deputado e ex-líder da bancada ruralista Valdir Colatto, como diretor-geral do SFB. É ele quem cuida agora, por exemplo, das concessões de florestas. Trata-se de decidir que empresas e comunidades receberão do governo o direito de manejar florestas públicas para extrair madeira, produtos não madeireiros e oferecer serviços de turismo. Em contrapartida ao uso sustentável, os concessionários pagam ao governo quantias que variam conforme o valor de licitação das áreas.
Salles vem seguindo à risca a orientação de Bolsonaro — ele próprio
multado e desmultado pelo Ibama por pesca ilegal — para derrubar o que
entende por “indústria da multa” ambiental. Um decreto estabeleceu uma
nova fase processual, com possibilidades amplas de conciliação e
conversão da multa em serviços ambientais.
Procuradores da República avaliam se as mudanças são legais. “Quando se adota discurso muito crítico em relação aos órgãos de fiscalização, fragilizam-se esses órgãos. Crimes ambientais, muitas vezes, envolvem grande movimentação de recursos, lavagem de dinheiro, falsificação tributária”, afirma o procurador da República Daniel Azeredo, com atuação na Câmara de Meio Ambiente da Procuradoria-Geral da República (PGR). Ele diz que o ministro do Meio Ambiente pode ser alvo de ação em caso de aumento do desmatamento na Amazônia. “Se o desmatamento subir, não há dúvida de que a culpa é do ministro.”
Na ponta do sistema, fiscais do Ibama passaram a ter de requerer reforço policial para conseguir entrar em áreas com suspeita de crime ambiental, especialmente na Amazônia. Outros têm recebido mensagens ameaçadoras. “Bolsonaro venceu prometendo acabar com a fiscalização, e o Ibama não é bem-vindo”, dizem produtores nessas mensagens. A cúpula do órgão já foi alertada sobre o acirramento dos ânimos.
Os pontos mais preocupantes, disse Souza Jr., são a proposta de extinção de reservas legais, o desmonte de políticas de gestão de Unidades de Conservação, a inibição da fiscalização e a liberação de atividades econômicas — em especial a mineração — em terras indígenas. Os meses críticos de desmatamento batem na porta: maio, junho e julho. “Não consigo me lembrar de intervenções desse tipo do governo. Pode-se perder o total controle do desmatamento”, afirmou o pesquisador. Ele disse que os dados vêm apontando um crescimento do “desmatamento especulativo”, quando se desmata para garantir a apropriação de uma terra pública — a grilagem, em outras palavras. Novas fronteiras de grilagem vêm sendo abertas no norte do Pará e no sul e sudeste do Amazonas.
A proatividade de Salles em beneficiar empresas em detrimento da
preservação já o fez se tornar alvo do Ministério Público (MP) paulista
quando era secretário de Meio Ambiente. Foi condenado por improbidade
administrativa e sofreu penas de suspensão de três anos dos direitos
políticos, além de multa correspondente a dez vezes o valor de seu
salário, por adulterar mapas de zoneamento da Área de Proteção (APA) do
Tietê para permitir a ampliação da atividade mineratória na região do
rio. A investigação do MP concluiu que a alteração no mapa foi feita a
pedido de representantes da Fiesp. Salles é alvo, também, de um um
inquérito policial que versa sobre os mesmos fatos, que deverá embasar
um processo criminal. A investigação, sigilosa, se arrasta desde 2017 e
está no gabinete do Procurador-Geral de Justiça.
Em janeiro de 2018, o Ibama editou uma norma estabelecendo regras claras para o descarte de resíduos decorrentes da perfuração de poços marítimos e produção de petróleo. Entre essas regras, estava a proibição de descartar no mar o cascalho e os fluidos usados nas fases de reservatório dos poços. Não demorou para as empresas do setor, representadas pelo Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP), contestarem as novas normas. As empresas pediram — e a Agência Nacional do Petróleo (ANP) concordou — que houvesse a suspensão exatamente dos itens que tratam do descarte de cascalho e fluidos. O IBP argumentou que houve excesso por parte do Ibama e que as regras não encontravam paralelo em nenhuma parte do mundo. Teve início, então, uma batalha por parte dos técnicos do Ibama para manter a norma editada no começo de 2018. Em março, o presidente do Ibama decidiu suspender a norma — apesar de os pareceres dos técnicos defenderem a vigência das novas regras.
O Ibama também afrouxou regras para o uso de agrotóxicos, permitindo
registros para uso emergencial na Bacia do Rio São Francisco e
prorrogando prazos para regularização. No Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama), presidido por Salles, a primeira decisão tomada, num
processo com efeitos práticos, foi favorável à indústria. Em reunião em
24 de abril, o Conama aprovou, por 36 a 35, uma emenda da Confederação
Nacional da Indústria (CNI) que flexibiliza regras na fabricação para o
controle de emissão de poluentes por motocicletas. Salles encampou a
proposta, e o Ministério do Meio Ambiente votou a favor dela, a exemplo
de quase todos os representantes do governo. O Ministério da Saúde foi
exceção: votou contra.
Segundo ele, o ministério vai detalhar melhor quais são as hipóteses em que se podem destruir bens flagrados em crimes ambientais. Uma instrução normativa em vigor já diz que isso só deve ocorrer em caráter excepcional, conforme o ministro. “Quem está em campo precisa de autorização da supervisão da fiscalização ( para destruir os bens )”, disse. O ministro afirmou ainda que existe um “sentimento de injustiça” entre produtores rurais, um sentimento de que “existe abuso” na fiscalização.
Por isso, segundo ele, foi editado o decreto para permitir a conciliação
ambiental. “É um bom instrumento para restabelecer o diálogo.” Sobre
licenciamentos ambientais, Salles disse que uma lei complementar já
permite as delegações a estados e municípios. “Quanto mais, melhor. O
Ibama precisa ficar com o que é de sua competência.” O ministro defendeu
que ocorra o chamado “licenciamento autodeclarado”, em que o próprio
produtor declara a licença, em casos de substituição de cultura — “Da
soja para o milho, da pecuária para a agricultura” — e de atividades com
baixo impacto ambiental.
Salles disse ainda que as discussões sobre pagamento de serviço ambiental não estão paradas, que o assunto agrotóxicos é preferencialmente do Ministério da Agricultura e que desconhece a suspensão da norma sobre descarte de resíduos na exploração de petróleo. Sobre a decisão do Conama a respeito de emissão de poluentes por motocicletas, o ministro afirmou que o problema da poluição existe, mas “o remédio era inadequado”.
Salles também afirmou defender a exploração de mineração e arrendamentos em terras indígenas, desde que se analise “caso a caso”. “O Brasil está sendo muito injustiçado internacionalmente. O país preserva muito. Os problemas ambientais estão nas cidades. Não houve cancelamento de agendas, como as associadas ao campo e a mudanças climáticas. Mas as cidades são o problema mais premente e urgente”, disse.
Na manhã da quarta-feira 8, oito ex-ministros do Meio Ambiente chamaram a
imprensa na Universidade de São Paulo (USP) para anunciar uma frente de
mobilização contra o que chamaram de “desmonte da governança
socioambiental” no Brasil. Por mais de três horas, relataram ações que
entendem esvaziar a capacidade de implementação de políticas públicas no
ministério. A Salles, endereçaram carta em defesa do desenvolvimento
com atenção ao sistema de proteção ambiental. Ele respondeu na tarde do
mesmo dia, em nota que terminou por atacar gestões anteriores, alegando
“sucateamento” da pasta. Marina Silva ponderou, durante a reunião, que
“só a sociedade poderá criar o espaço para uma outra agenda”,
referindo-se à nova política ambiental. Salles respondeu, em sua nota,
que está cumprindo a missão dada pelo Presidente da República. Sempre
houve dúvida sobre até que ponto a eleição de Jair Bolsonaro foi
motivada pelas ideias que defende ou pelo antipetismo. A aprovação
popular — se houver — das rápidas medidas tomadas por Salles no Meio
Ambiente pode começar a dirimir esse enigma.
Elias Rezende, secretário de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia, queixou-se ao governador, Coronel Marcos Rocha, do PSL, o mesmo partido do presidente. Rocha ligou para o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Na conversa, disse que a destruição de equipamentos usados em crimes ambientais causava revolta e não deveria ser feita. O governador ouviu de Salles que a situação mudaria em breve. “O ministro se comprometeu a apresentar uma minuta para alterar esse decreto”, disse Rezende. O próprio presidente Bolsonaro gravou um vídeo em que desautorizava a ação do Ibama — e que viralizou nas redes sociais.
“A estrutura de políticas públicas voltadas para os efeitos das mudanças climáticas foi esvaziada com o fim da secretaria que tratava do tema e o orçamento para a área reduzido praticamente a zero”A ideia de que agora é possível “prejudicar esses caras”, ou seja, os agentes de fiscalização ambiental, e a promessa feita no dia seguinte por Salles, de viabilizar o afrouxamento desse trabalho, mimetizam o que foram até aqui os quatro meses do advogado de 43 anos no posto de ministro do Meio Ambiente. No fim do ano passado, a pasta quase foi extinta pelo presidente. A ideia de Bolsonaro era transformá-la em uma secretaria ligada ao Ministério da Agricultura. Contudo, a ministra Tereza Cristina e a bancada ruralista foram contra: avaliaram que a mudança traria dores de cabeça e cobranças extras para a pasta do agronegócio. Indicaram, então, que ela fosse comandada por Salles, que chefiara a Secretaria de Meio Ambiente do governo de Geraldo Alckmin, em São Paulo, em 2016 e 2017. Bolsonaro acatou a indicação. No cargo, Salles tem colocado em prática um plano de desmonte de políticas ambientais cujo norte é claro: adequar o meio ambiente aos interesses do agronegócio, de setores da indústria e outros interesses privados.
Tal convicção é tão patente no governo que Jair Bolsonaro não demonstrou constrangimento quando, ao discursar no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, em janeiro, afirmou que sua gestão teria como premissa a aliança entre os dois setores, chamados pelo presidente de “indissociáveis”. Para justificar sua fala, o presidente recorreu a um sofisma que induz à ideia de que o Brasil avançou demasiado na preservação ambiental, deixando o agronegócio, que traz muito mais recursos ao Produto Interno Bruto (PIB) do que florestas, comendo poeira na estrada. Disse ele: “Somos o país que mais preserva o meio ambiente. Nenhum outro país do mundo tem tantas florestas como nós. A agricultura se faz presente em apenas 9% do nosso território e cresce graças a sua tecnologia e à competência do produtor rural. Menos de 20% de nosso solo é dedicado à pecuária. Essas commodities, em grande parte, garantem superávit em nossa balança comercial e alimentam boa parte do mundo”.
Os efeitos da nova agenda podem ser percebidos na administração federal. Documentos obtidos por ÉPOCA mostram um afrouxamento de regras para o descarte de resíduos decorrentes da perfuração de poços de petróleo, contrariando recomendações dos próprios técnicos do governo. Ofícios também apontam gestos no sentido de flexibilizar licenciamentos ambientais. Atos tornaram o controle de agrotóxicos menos efetivo. Discussões sobre pagamentos de serviços ambientais e sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR) foram paralisadas. O sistema de punição e aplicação de multas foi afrouxado. E áreas centrais do ministério seguem acéfalas. Pela visão dos críticos, a gestão ideológica no Ministério do Meio Ambiente produz efeitos imediatos. Além disso, ataques virtuais vindos do presidente e do ministro a fiscais a serviço do Ibama e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão que cuida das Unidades de Conservação federais, têm estimulado produtores a resistir a qualquer tipo de controle.
Filho de um casal de advogados paulistanos, Salles não tem como origem o campo. Aproximou-se de lideranças da Sociedade Rural Brasileira e da União Democrática Ruralista (UDR) graças ao Endireita Brasil. Em 2018, candidatou-se pelo Novo a uma vaga na Câmara dos Deputados, defendendo medidas como a mudança da sede da capital do país de Brasília para São Paulo, o fim das visitas íntimas em presídios e o uso de munição de fuzil contra a esquerda e o MST. Fiou a candidatura à Presidência de João Amoedo (Novo) e por isso teve de avisar ao antigo chefe, Alckmin, também candidato ao Planalto, que seria fiel à nova legenda e infiel ao tucano. Percebeu no meio da campanha que a candidatura Amoedo naufragaria e aderiu discretamente a Bolsonaro, depois de participar de um encontro dele com militares e empresários, em São Paulo.
Há convergência de ideias entre o ministro e setores das Forças Armadas, em especial na questão das reservas indígenas. Por serem alguns dos poucos grupos a ter permissão legal para circular em regiões preservadas, militares dizem ver de perto a pobreza das regiões e defendem que haja políticas de desenvolvimento em áreas preservadas — ideia criticada por ambientalistas.
Entre os técnicos, é dado como certo que Salles proporá a alteração do decreto que permite a destruição de bens flagrados em crimes ambientais. É um pleito antigo de políticos da bancada ruralista. “Em Rondônia, a orientação é para que não ocorra a destruição. O governador conversou com o ministro e pediu para que ele repita o que ocorre aqui. O posicionamento do ministro é que o decreto seja reformulado. E isso não significa um incentivo ao desmatamento, mas ao amplo contraditório”, disse o secretário de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia.
Nos últimos dias de abril, Bim enviou um ofício ao Ministério da Economia dizendo ter interesse em seis servidores que trabalhavam na Valec em Tocantins, a estatal responsável por construir ferrovias. Ele não viu impedimento no fato de os funcionários terem atuado no outro lado do balcão. Pelo contrário: o presidente do Ibama pediu que os servidores trabalhem no órgão especificamente no “licenciamento ambiental de grandes obras de infraestrutura”.
Salles também nomeou para a chefia da assessoria de relações interministeriais do Meio Ambiente o criador das peças gráficas de sua própria campanha, de acordo com os registros do TSE. Trata-se do linguista, publicitário e criador de memes paulista David Boutsiavaras, que atende por diferentes pseudônimos no ringue virtual pró-Bolsonaro. Na terça-feira 7, ÉPOCA perguntou a Boutsiavaras que atividades executa no ministério e como sua experiência na internet poderia ser útil ao novo trabalho. Ele preferiu não se manifestar.
“Com quatro meses no cargo, Salles ainda deixa em aberto postos-chave do ministério. Ele levou um grupo de militares para agradar o presidente”Passados mais de quatro meses na cadeira de ministro do Meio Ambiente, Salles ainda não conseguiu preencher os cargos mais importantes do ministério. Permaneciam vagos até o último dia 7, por exemplo, a Secretaria de Florestas e Biodiversidade, a Coordenação de Concessão de Florestas, a Coordenação de Políticas de Desenvolvimento Sustentável, a Coordenação de Repartição de Benefícios e o Departamento de Conservação.
Esvaziar áreas que não considerava prioritárias era uma estratégia na época em que era titular da pasta de Meio Ambiente de São Paulo. Centralizador, o então secretário causou polêmica ao cancelar pagamentos de contratos já assinados, medida semelhante à que tentou adotar ao deparar-se com o custo de aluguel de veículos no Ibama. Depois de anunciar o cancelamento do contrato com estardalhaço e retuíte do presidente, voltou atrás ao ser alertado sobre a necessidade de manutenção do aluguel. Bolsonaro teve de apagar a postagem.
No ministério, Salles esvaziou o desenho de políticas públicas voltadas para os efeitos das mudanças climáticas e quase zerou o orçamento para a área. Acabou com a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas, ainda nos primeiros dias de janeiro. Depois, alocou integrantes da extinta secretaria — os que permaneceram no ministério — numa assessoria especial. Até agora, a única posição do ministro a favor dessas políticas foi a defesa de que o Brasil continue fazendo parte do Acordo de Paris, um compromisso de 195 países para a redução da emissão de gases de efeito estufa. No fim do ano, por decisão de Bolsonaro, o país desistira de sediar a Conferência do Clima da ONU.
No fim de abril, mais de 600 pesquisadores e integrantes da comunidade científica internacional pediram à União Europeia que condicione parcerias com o Brasil a novas garantias de proteção ambiental. O manifesto foi publicado na revista Science e leva em conta o reconhecimento, pela comunidade internacional, do Brasil como o país mais biodiverso do mundo.
O ministro do Meio Ambiente não se opôs à transferência do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) de seu ministério para o Ministério da Agricultura. Nem à nomeação do principal opositor do Código Florestal, o ex-deputado e ex-líder da bancada ruralista Valdir Colatto, como diretor-geral do SFB. É ele quem cuida agora, por exemplo, das concessões de florestas. Trata-se de decidir que empresas e comunidades receberão do governo o direito de manejar florestas públicas para extrair madeira, produtos não madeireiros e oferecer serviços de turismo. Em contrapartida ao uso sustentável, os concessionários pagam ao governo quantias que variam conforme o valor de licitação das áreas.
Procuradores da República avaliam se as mudanças são legais. “Quando se adota discurso muito crítico em relação aos órgãos de fiscalização, fragilizam-se esses órgãos. Crimes ambientais, muitas vezes, envolvem grande movimentação de recursos, lavagem de dinheiro, falsificação tributária”, afirma o procurador da República Daniel Azeredo, com atuação na Câmara de Meio Ambiente da Procuradoria-Geral da República (PGR). Ele diz que o ministro do Meio Ambiente pode ser alvo de ação em caso de aumento do desmatamento na Amazônia. “Se o desmatamento subir, não há dúvida de que a culpa é do ministro.”
Na ponta do sistema, fiscais do Ibama passaram a ter de requerer reforço policial para conseguir entrar em áreas com suspeita de crime ambiental, especialmente na Amazônia. Outros têm recebido mensagens ameaçadoras. “Bolsonaro venceu prometendo acabar com a fiscalização, e o Ibama não é bem-vindo”, dizem produtores nessas mensagens. A cúpula do órgão já foi alertada sobre o acirramento dos ânimos.
“Salles não tem como origem o campo. Juntou-se à Sociedade Rural Brasileira e à União Democrática Ruralista (UDR) graças ao Endireita Brasil, movimento que ajudou a fundar”O primeiro dado oficial de desmatamento da Amazônia sob Bolsonaro deverá ser divulgado só no segundo semestre. O monitoramento atual mostra um aumento do desmatamento desde 2012. O instituto de pesquisa Imazon faz um acompanhamento mensal que costuma antecipar o movimento dos dados oficiais. Entre agosto de 2018 e março de 2019, foram desmatados 1.974 quilômetros quadrados de vegetação amazônica. Em todo o ano anterior, o desmatamento foi de 1.590 quilômetros quadrados. “O desmonte pode gerar uma aceleração do desmatamento, embora seja difícil estabelecer uma relação precisa de causa e efeito”, disse Carlos Souza Jr., pesquisador associado do Imazon e coordenador do programa de monitoramento da Amazônia.
Os pontos mais preocupantes, disse Souza Jr., são a proposta de extinção de reservas legais, o desmonte de políticas de gestão de Unidades de Conservação, a inibição da fiscalização e a liberação de atividades econômicas — em especial a mineração — em terras indígenas. Os meses críticos de desmatamento batem na porta: maio, junho e julho. “Não consigo me lembrar de intervenções desse tipo do governo. Pode-se perder o total controle do desmatamento”, afirmou o pesquisador. Ele disse que os dados vêm apontando um crescimento do “desmatamento especulativo”, quando se desmata para garantir a apropriação de uma terra pública — a grilagem, em outras palavras. Novas fronteiras de grilagem vêm sendo abertas no norte do Pará e no sul e sudeste do Amazonas.
Em janeiro de 2018, o Ibama editou uma norma estabelecendo regras claras para o descarte de resíduos decorrentes da perfuração de poços marítimos e produção de petróleo. Entre essas regras, estava a proibição de descartar no mar o cascalho e os fluidos usados nas fases de reservatório dos poços. Não demorou para as empresas do setor, representadas pelo Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP), contestarem as novas normas. As empresas pediram — e a Agência Nacional do Petróleo (ANP) concordou — que houvesse a suspensão exatamente dos itens que tratam do descarte de cascalho e fluidos. O IBP argumentou que houve excesso por parte do Ibama e que as regras não encontravam paralelo em nenhuma parte do mundo. Teve início, então, uma batalha por parte dos técnicos do Ibama para manter a norma editada no começo de 2018. Em março, o presidente do Ibama decidiu suspender a norma — apesar de os pareceres dos técnicos defenderem a vigência das novas regras.
“Em sua gestão como secretário em SP, o atual ministro foi condenado por improbidade administrativa, com multa e penas de suspensão de três anos dos direitos políticos por adulterar mapas de zoneamento de área de proteção”No início da noite da última terça-feira, dia 7, Salles recebeu a reportagem ÉPOCA em seu gabinete no Ministério do Meio Ambiente. O ministro demonstrou irritação com parte das perguntas feitas e deu respostas lacônicas.
Segundo ele, o ministério vai detalhar melhor quais são as hipóteses em que se podem destruir bens flagrados em crimes ambientais. Uma instrução normativa em vigor já diz que isso só deve ocorrer em caráter excepcional, conforme o ministro. “Quem está em campo precisa de autorização da supervisão da fiscalização ( para destruir os bens )”, disse. O ministro afirmou ainda que existe um “sentimento de injustiça” entre produtores rurais, um sentimento de que “existe abuso” na fiscalização.
Salles disse ainda que as discussões sobre pagamento de serviço ambiental não estão paradas, que o assunto agrotóxicos é preferencialmente do Ministério da Agricultura e que desconhece a suspensão da norma sobre descarte de resíduos na exploração de petróleo. Sobre a decisão do Conama a respeito de emissão de poluentes por motocicletas, o ministro afirmou que o problema da poluição existe, mas “o remédio era inadequado”.
Salles também afirmou defender a exploração de mineração e arrendamentos em terras indígenas, desde que se analise “caso a caso”. “O Brasil está sendo muito injustiçado internacionalmente. O país preserva muito. Os problemas ambientais estão nas cidades. Não houve cancelamento de agendas, como as associadas ao campo e a mudanças climáticas. Mas as cidades são o problema mais premente e urgente”, disse.
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