José Miguel Wisnik revisita críticas de Carlos Drummond de Andrade à Vale
Autor de livro sobre as relações do poeta com a atividade mineradora, ensaísta comenta catástrofe em Brumadinho
Marcos Augusto Gonçalves
No ano passado, o crítico e ensaísta José Miguel Wisnik lançou um livro revelador acerca das relações entre a poética de Carlos Drummond de Andrade e a atividade mineradora em Itabira (MG), cidade natal do escritor.Nas páginas de “Maquinação do Mundo” (Companhia das Letras, R$ 64,90, 328 págs.), Wisnik deu um passo ambicioso na interpretação da obra drummondiana, lançando novas leituras sobre alguns de seus pontos fundamentais, como o célebre poema “A Máquina do Mundo”.
A empreitada veio na sequência de uma visita a Itabira, o que provocou no crítico uma espécie de epifania a respeito das relações profundas da exploração mineral e a poesia do autor mineiro. Drummond manteve com a então estatal Vale do Rio Doce relações conflituosas. Escreveu artigos e levantou polêmicas em torno do papel deletério da atividade e das responsabilidades da mineradora.
Com a recente catástrofe de Brumadinho, três anos depois do crime ambiental de Mariana, o tema ressurge mais atual do que nunca.
Na entrevista que se segue, feita por email, Wisnik rememora o percurso do capital minerador em Minas, revisita as críticas de Drummond à Vale e comenta as barragens que também ameaçam Itabira, em especial a do Pontal, em área da fazenda da família do poeta. Ali, a casa-sede histórica foi transferida para o alto de um morro onde está preservada e reconstituída peça por peça, fazendo parte “de um estranho belvedere turístico-literário voltado para a ruína”.
Você lançou um livro recentemente que revela a profunda ligação da poesia de Drummond com o tema da mineração, que o assombra e fustiga desde sempre. Nesse percurso, a Vale é uma presença constante. Você poderia traçar um breve histórico da chegada do capital minerador a Itabira? Todas as janelas do casarão onde Drummond viveu a infância davam para o pico do Cauê, colosso de ferro que dominava a paisagem de Itabira (“cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”, diz o primeiro verso de seu primeiro poema sobre a cidade). A Companhia Vale do Rio Doce, por sua vez, foi criada exatamente para extrair e exportar o ferro do pico do Cauê, em 1942. Em poucas décadas a montanha tornou-se uma cratera e a companhia, uma das maiores empresas de mineração do mundo.
Carlos Drummond de Andrade acompanhou esse processo ao longo da vida, mesmo que à distância, e lutou contra a tremenda desigualdade das forças envolvidas e a dos ganhos e das perdas entre as partes.
Drummond e a Vale tinham em comum as suas respectivas relações umbilicais com a cidade, embora de perspectivas opostas: o poeta, com os seus “oitenta por cento de ferro” na alma, nasceu em Itabira e tinha em Itabira o tesouro de sua memória poética; a Vale nasceu e cresceu da exploração das reservas ferríferas de Itabira, convertendo suas montanhas pulverizadas em “bilhões de lascas” e submetendo a cidade a um crescimento desordenado cuja extraordinária feiura é o resultado correspondente aos danos ambientais que impôs a ela.
Em seus artigos polêmicos escritos nos anos 1950, Drummond cobrava que a companhia cumprisse seu estatuto de fundação e transferisse sua sede para Itabira do Mato Dentro (lembrando aqui o nome original da cidade), em vez de administrá-la à distância, do Rio de Janeiro.
Em outras palavras, é como se desafiasse a Vale a tornar-se itabirana de dentro, itabirana por dentro, isto é, a comprometer sua própria existência com a existência do lugar que explorava, a assumir o ponto de vista da cidade, a merecer “seu pedaço no pico do Cauê”, que ao final eram todos os pedaços.
Olhado de hoje, não deixa de ser espantoso o acaso que fez com que o mais poderoso e abrangente poeta brasileiro tenha crescido “de frente pro crime”, como diz a canção de João Bosco e Aldir Blanc, isto é, com as janelas abertas para o cenário inaugural da tragédia mineral brasileira.
Quando o menino Carlos tinha sete ou oito anos de idade, em 1910, o Cauê, juntamente com outras jazidas itabiranas, foi comprado a preço irrisório por empresários ingleses que, associados a norte-americanos, constituíram a Itabira Iron Ore Company, voltada para a extração e exportação do minério bruto.
A ação da companhia ficou travada, no entanto, dos anos 1910 ao começo dos anos 1940, por um longo e acirrado “braço de ferro” de âmbito nacional entre correntes liberais e nacionalistas, que debatiam o destino do ferro de Itabira: representantes dos interesses do mercado, favoráveis à livre exportação investida no projeto da Itabira Iron Ore, por um lado, e defensores do vínculo obrigatório da exploração do minério brasileiro com a implantação de uma siderurgia local e o compromisso com um projeto nacional. Drummond alinhou-se a essa segunda posição, contrária às pretensões da Itabira Iron e de seus adeptos.
O nó foi desatado com a criação da Companhia Vale do Rio Doce, durante a Segunda Guerra Mundial, depois de manobra diplomática do governo varguista. Obedecendo aos Acordos de Washington, celebrados entre Inglaterra, Estados Unidos e Brasil, os ingleses se encarregaram de ressarcir a companhia anglo-saxã, os norte-americanos entraram com um polpudo empréstimo ao Brasil, que permitiu a criação da Vale em substituição à Itabira Iron, e o Brasil entrou com o pico do Cauê, cujo ferro barato se destinaria à indústria bélica aliada no esforço de guerra.
Passada a guerra, a Vale do Rio Doce cresceu para o mercado mundial, expandiu-se para muito além de Itabira, foi privatizada em 1997, jogou fora o Rio Doce do nome, tornando-se, ao longo de tudo isso, essa máquina mundial e essa potência que conhecemos.
Para Drummond, a companhia fazia questão de ignorar a sua dívida de origem com o lugar que explorava. Em poemas, crônicas e artigos polêmicos (aliás nunca publicados em livro), dizia que a Vale primava por ignorar programaticamente os danos que provocava. Trazendo Itabira e o pico do Cauê na fotografia de uma memória dolorosa, Drummond lutará a vida inteira, direta ou surdamente, contra isso.
A Vale chegou a utilizar a poesia de Drummond para fazer publicidade. Drummond reagiu e atacou a empresa em várias ocasiões. Como foi esse embate? De fato, talvez seja um caso único de embate direto de um poeta com potências geoeconômicas de vulto. Mas, cronologicamente, a coisa aconteceu ao contrário: foi a Vale que, em 1970, reagiu a críticas anteriores do poeta publicando no jornal O Globo um anúncio provocativo com o título “Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro”, em que usava a seu favor palavras do famigerado poema “No Meio do Caminho”.
O reclame dizia: “Nosso caminho sempre esteve cheio de pedras. Mas essa tem um significado todo particular. Com ela, alcançamos esta semana a marca de 20 milhões de toneladas de minério de ferro exportados. Nós e as companhias associadas. Mais 2,5 milhões do que todo o ano passado. O que representa a entrada no país de divisas na ordem de 150 milhões de dólares. É a comprovação de que nossos objetivos de desenvolvimento estão sendo atingidos. Somos especialistas em transformar pedras em lucros para a nação. É de mais pedras como essa que o Brasil precisa”.
Os atritos tinham começado em 1955, quando Drummond escreveu uma série de artigos no Correio da Manhã e mais tarde no Jornal do Brasil em que dizia que os lucros crescentes da empresa em plena expansão não retornavam minimamente em benefício da cidade. Que, se a companhia era responsável por 70% dos empregos de Itabira, as jazidas de Itabira eram responsáveis por 100 % da riqueza da Vale.
Que a mineração, além de destruir modos de vida, era uma “indústria ladra” que tira sem repor, que devasta e abandona os lugares que explora, partindo sempre para novos alvos num processo incessante de “destruição criativa da terra” (empresto aqui um conceito desenvolvido pelo geógrafo britânico David Harvey). E que seus responsáveis primavam por desconversar, quando interpelados sobre os problemas, dando lugar a uma espécie de “comédia embromatória” contínua. Com isso, o poeta granjeou na cidade natal a fama de inimigo de Itabira e avesso ao “progresso”.
Progresso é, aliás, a tecla martelada implicitamente pelo anúncio publicitário da Vale em 1970, invocando euforicamente uma avalanche de pedras, de milhões de toneladas e de dólares. Já temos recuo suficiente, no entanto, para ver essa mesma avalanche se converter, hoje, em milhões de metros cúbicos de lama.
Não posso deixar de dizer, ainda, que o viés mais desafiador de tudo isso é o poema “A Máquina do Mundo”, cujos sentidos são múltiplos e inesgotáveis, mas que não é mais possível desconhecer que foi escrito nesse contexto, em 1949, depois de o poeta ter ido pela primeira vez a Itabira num pequeno avião (da Vale, que funcionava como táxi-aéreo), de ter vislumbrado a grandiosidade de Minas do alto, como nunca vira, e as dinamitações no pico do Cauê, que o fazem antever o choque da sua desaparição e um novo estado de coisas no mundo do pós-guerra.
Itabira também abriga barragens de rejeitos. Uma delas ocupa área que era da fazenda da família do poeta. Quais são as perspectivas da cidade? Esses problemas vêm sendo denunciados pelo editor do jornal O Trem Itabirano, Marcos Caldeira, que prossegue quase solitariamente nos trilhos das batalhas que Drummond, a certa altura da vida, deu por perdidas.
Contra o silêncio das autoridades, e interpelando continuamente a Vale, sem resposta, ele trouxe recentemente à tona o fato de que os estoques minerais de Itabira estarão à beira do esgotamento em poucos anos, deixando em suspenso o destino econômico da cidade (e confirmando o roteiro de exploração e abandono previsto por Drummond).
Poucas horas antes do desabamento em Brumadinho, Caldeira postou um texto chamando a atenção para o fato de que há em Itabira quatro barragens de rejeitos —de Itabiruçu, do Pontal, de Conceição e de Rio de Peixe— que acumulam mais de 400 milhões de metros cúbicos (pelo menos oito vezes o total de Mariana, no conjunto).
Entre elas, a barragem do Pontal ocupa o lugar da antiga fazenda pertencente à família do poeta. Considerado o seu significado histórico e simbólico, optou-se, ao se implantar a barragem, por transportar a casa-sede da fazenda, inteira, para o alto de um morro onde está preservada e reconstituída peça por peça. Faz parte de um estranho belvedere turístico-literário voltado para a ruína —a lama dos rejeitos.
A situação faz lembrar, bem ou mal comparando, e claro que sem querer, o quinto ato do “Fausto” de Goethe, quando, destruído o último reduto de resistência à obra colonizadora da maquinação fáustica, com a eliminação física dos últimos resistentes pelos sicários de Mefistófeles, o herói projeta um belvedere ao lado da destruição para que se tenha “ilimitada vista” da sua própria obra, isto é, dos “recursos da terra dominados” (usando palavras, aqui, d’ “A Máquina do Mundo” de Drummond).
É uma mistura curiosa de proeza de engenharia com esboço turístico e destruição consumada, numa sintomática espetacularização em falso dos efeitos da mineração.
Minas tem essa característica de uma natureza potente e de uma cultura igualmente forte. O cerrado de Rosa e a montanha pulverizada de Drummond de certa forma se encontraram na tragédia de Mariana, que agora se repete. Que recado Minas está dando para o Brasil? Sim, em Minas Gerais natureza e cultura estão intimamente entranhadas, ali geografia física é geografia humana. As montanhas falam em silêncio, n’"O Recado do Morro” de Rosa e n’"A Máquina do Mundo” de Drummond, porque estão investidas de experiência coletiva imemorial.
A escrita de Rosa é o canto do cisne do cerrado, sua biodiversidade convertida em diversidade linguística, os meandros de um relevo maleável de calcário cheio de grutas e águas subterrâneas, tudo permeado pelos elos fluviais.
A escrita de Drummond se embate com a dureza do limite, do obstáculo e do relevo ferrífero. Um é a “pedra no meio do caminho”, o outro, “a terceira margem do rio”. Drummond via nos profetas do Aleijadinho essa dimensão de confabulação silenciosa com as montanhas, com a qual se identificava. Mas as estátuas estão sofrendo hoje um processo de corrosão pela poluição mineral, rondadas também por barragem de rejeitos e cercadas de feiura.
A mineração destruidora vivida por Drummond contracena com o cerrado destruído de Rosa. A catástrofe socioambiental de Mariana ligou os dois, fazendo a mineração drummondiana desabar no mundo rosiano do rio (embora o rio Doce não seja um rio rosiano); em Brumadinho essa associação se repete, com a lama escorrendo pelo Paraopeba na direção do São Francisco (este, o grande rio rosiano).
O recado em Rosa dá conta da mistura de truculência e doçura que enforma o sertão mineiro, da violência patriarcal redimida às vezes, quase milagrosamente, por inimagináveis matizes da sensibilidade e do encantamento. Em Minas, uma graça inefável comparece na melodia das vozes, na riqueza dos cantos e dos fazeres populares, na generosidade da comida, na discrição e no acolhimento, nas figuras de seus seres meditativos e seus lunáticos louquinhos.
Quando uma montanha de lama se derrama sobre o ambiente e a população, em Bento Rodrigues ou em Brumadinho, ela arrasa mundos de singeleza rural e de vidas ainda bafejadas por certa simplicidade pastoral. Tudo fica parecendo de fato uma versão, ainda mais pungente e arrasadora, do episódio do "Fausto" a que nos referimos antes.
Ocorre que esse riquíssimo campo de bens materiais e imateriais foi ocupado ao longo das décadas por uma mineração voraz e predadora na base. Um poeta disse isso até a exaustão, há mais de 60 anos.
Barragens de alteamento a montante, em que barreiras de rejeitos se apoiam em barreiras de rejeitos que se apoiam em barreiras de rejeitos, são como castelos de cartas sempre sujeitos a cair. Um laudo, nesse caso, é autodemonstrativo: serve muitas vezes mais para assegurar a si mesmo do que para garantir a segurança das barragens, que são muitas.
Essa ocupação predatória se deu historicamente com a instalação abundante de dispositivos de extração garantidos por expedientes de manipulação, servindo sempre para dissolver, desativar e dissuadir resistências, reivindicações de segurança, garantias necessárias e demais obstáculos. Nos últimos dias, vários desses expedientes, que envolvem burocratas e políticos comprometidos com uma mineração sem peias, vieram à tona.
O recado que Minas está nos dando é o vômito da terra provocado pelos homens brancos que a escarafuncham, disse um índio da região de Brumadinho. Ricochete inominável de uma história de práticas sistemáticas de imediatismo irresponsável, de “incompetência cósmica” (a expressão é de Oswald de Andrade), de oportunismo dirigido pela otimização dos lucros e de uma mistura explosiva de cegueira com má-fé. É a volta real e telúrica da “golfada hedionda” que, segundo Nelson Rodrigues (ao falar d’“Os Sertões” de Euclides da Cunha), é a forma com que o Brasil se expressa.
O Brasil ainda parece não se dar conta do papel que poderia assumir como referência para um novo tipo de relação com a economia e a natureza. Continuamos a destruir o ambiente e a desprezar os índios. O atual governo chegou ao poder com esse discurso. Agora depara-se com essa catástrofe. O que surgirá desse embate? O discurso alardeado de flexibilização das licenças ambientais e de desqualificação da questão ecológica sofre um revés concreto com a repetição do acontecimento de Mariana em Brumadinho. Esse discurso aponta, aliás, para a adoção assumida e ostensiva, sem o entrave da lei, de práticas que já existem oficiosamente, e que são desastrosas.
Toda estratégia de negação da realidade, como a negação das ameaças socioambientais, tende a passar por desmentidos concretos mais cedo ou mais tarde, e o que estamos vivendo é um duro golpe de realidade, presto, difícil de disfarçar, de escamotear e de digerir.
Sabemos o quanto os procedimentos reparatórios e punitivos do crime socioambiental em Mariana, depois de três anos, padecem dos efeitos da “comédia embromatória” de que já falava Drummond. Mas se torna muito mais difícil sustentar a comédia da postergação infinita quando a tragédia insiste em dar de novo o seu recado.
A força das evidências é um trunfo para o enfrentamento realista e generoso dos problemas complexos que envolvem a mineração e a vida das cidades, das povoações, dos viventes humanos e dos animais, da natureza, dos índios. Mas sobram sempre, é claro, muitos recursos embromatórios: o discurso do “gerenciamento de risco” quando apenas arranha a superfície da lama, uma multa aqui ou ali, manobras diversionistas enquanto tudo silencia e acaba de escoar pelo ralo da mídia (o censor volátil da vida brasileira).
Precisamos de história e de poesia. Algumas pessoas se perguntam como reagiria o poeta no momento presente. Mas a questão é como reagimos nós, hoje, à sua poesia. Ao “Relógio do Rosário”, por exemplo, que acompanha “A Máquina do Mundo” no livro “Claro Enigma”, maravilhoso poema sobre a dor de existir como dor coletiva (inspirado no som do sino da matriz do Rosário, que ficava colada à sua casa em Itabira, e que ruiu com as dinamitações do Cauê).
A “E Agora, José?”, pergunta que é a marca do nosso tempo, na leitura vivaz e comovente de Vitor, menino negro baiano, numa rua de Salvador (encontrável em vídeo na internet). Muito das esperanças esgarçadas estão nas forças de expressão e articulação que ganharam as periferias no Brasil. Ou então, em última instância, na frase do pensador português Agostinho da Silva, que passará por prova definitiva: “O (futuro do) Brasil é tão grande que não há abismo onde caiba”.
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