Ariaster Chimeli
Em uma das imagens icônicas da tragédia de Brumadinho mostrando o resgate por helicóptero de vítimas da lama, o Brasil Velho é retratado ao lado do Brasil Novo.
No Brasil Velho, onde mulheres “não sabem dirigir” e seu trabalho se resume a “cuidar da casa”, a preocupação ambiental é uma firula; a palavra de ordem é primeiro desenvolver para depois se preocupar com o meio ambiente. A questão ambiental não é problema relevante.
Os indícios de que a tragédia de Brumadinho era anunciada estão muito próximos. O rompimento da barragem de Córrego do Feijão, operada pela Vale, foi precedido pela fatídica tragédia de Mariana (MG) que, em 2015, deixou 19 mortos e uma grande extensão de danos ao ambiente e a diversas comunidades.
Em 2014, o rompimento da barragem de Herculano, em Itabirito (MG), deixou três mortos. Na também mineira cidade de Congonhas, conhecida pelos profetas esculpidos em pedra-sabão pelo mestre Aleijadinho, 40 famílias ficaram desalojadas quando uma barragem da CSN se rompeu em 2008.
Em 2007, 4.000 pessoas perderam seus lares nos municípios de Miraí e Muriaé, também em Minas Gerais, vítimas de mais uma barragem da indústria da mineração. Essa lista se estende no tempo e no espaço —em Minas Gerais e no Brasil.
Por que, então, todas essas tragédias anunciadas continuam a ocorrer? Para entendermos isso, precisamos olhar para nossas instituições de proteção ambiental e social e para os incentivos que elas dão a agentes públicos e privados.
A receita clássica para coibir crimes de qualquer natureza é aumentar a chance de o infrator ser pego e/ou aumentar a severidade da pena aplicada no caso da infração. A chance de apreensão e severidade de punição, por sua vez, depende de instituições formais e informais manifestadas em três pilares.
O primeiro pilar são as regras claras de conduta, como leis e regulamentos formais ou códigos de ética informais. O segundo pilar é o monitoramento de atividades com potencial impacto na sociedade e no ambiente, como a fiscalização por parte de órgãos públicos e da sociedade civil.
Por fim, o terceiro pilar é a punição por danos causados. No conjunto de punições formais destacam-se as multas efetivamente pagas e o encarceramento, ao passo que boicotes a produtos e publicidade negativa promovidos pela sociedade civil são exemplos de punições informais.
Em diversas regiões do mundo onde recursos naturais geram grandes receitas, tornou-se comum a predominância de instituições fracas de proteção ambiental. Leis são vagas ou têm aprovação lenta, os monitoramentos formal e informal são deficientes e a punição por danos é branda ou ineficaz.
A força motriz por trás de instituições frágeis, nesse contexto, é o desejo pela diminuição de custos (aumento de lucros) para empresas e pelo aumento de receitas tributárias para o Estado, ignorando na conta de ganhos e perdas os danos para o restante da sociedade. Em ambientes em que a falta de transparência de lobbies e a corrupção abundam, a situação agrava-se ainda mais.
No Brasil, o monitoramento deficiente sinaliza uma baixa probabilidade de apreensão de infrações. Após a tragédia de Brumadinho, a imprensa tem relatado um reduzido número de fiscais de barragens no país.
Penas brandas ou ineficazes, por sua vez, indicam que punições não são severas. Para ilustrar esse ponto, cabe lembrar que o governo do estado de Minas Gerais perdoou, através da lei nº 21.735, de 3 de agosto de 2015, diversas multas ambientais emitidas entre 2011 e 2014.
Como justificativa, argumentou que os custos do processo de cobrança eram superiores ao valor dessas multas. Similarmente, o novo Código Florestal perdoou várias ações classificadas como crimes e, por fim, a esmagadora maioria das multas ambientais no país terminam não sendo pagas.
Nesse cenário de monitoramento deficiente e punição branda tanto por parte do poder público como da sociedade civil, empresas privadas, estatais e mistas passam a ter o incentivo de relaxar na prevenção de danos à sociedade e ao ambiente.
Como as tragédias de Brumadinho e Mariana bem ilustram, alguém na sociedade acaba por pagar a conta dos lucros mais altos, das receitas tributárias adicionais e dos menores preços de bens de consumo.
Quando me refiro ao pagamento dessa conta, incluo além das perdas materiais alguns custos elevados, mas difíceis de mensurar. Custos como a dor da perda de vidas humanas, o sofrimento de pessoas afetadas e o sabor amargo de convivermos com o martírio de animais e a degradação de paisagens e ecossistemas.
A fragilidade das nossas instituições formais e informais de proteção da sociedade e do meio ambiente viabiliza a captura de bens da coletividade por parte de grupos de interesse, a fim de garantir seus ganhos privados em detrimento da sociedade como um todo.
Por exemplo, a sociedade brasileira cobra agora o esclarecimento sobre a ilegitimidade ou a ilegalidade de diversos processos de licenciamento ambiental. Quando essa suspeita se confirma, empresas e indústrias poderosas aumentam a probabilidade de danos ao meio ambiente, apropriando-se assim de ativos ambientais da coletividade. Convido o leitor a uma reflexão antes de se convencer de que não pertence a nenhum desses grupos —seja como produtor, consumidor ou cidadão.
A teoria econômica e a evidência empírica apontam para o papel fundamental das instituições no desenvolvimento da economia. Países em que predomina a captura da riqueza nacional por grupos de interesse, no lugar de instituições que promovem ganhos coletivos, encontram sérias dificuldades para se desenvolverem.
Por instituições que promovem ganhos coletivos, refiro-me a atividades e práticas geradoras de benefícios que vão além do lucro privado de indivíduos, firmas, governos e organizações.
Essas práticas incluem a defesa da concorrência entre produtores e consumidores, regulação do mercado quando ele falha em prover bens públicos como a proteção ambiental, transparência na gestão de recursos públicos, diminuição da desigualdade de oportunidades, defesa do Estado de Direito e da democracia, acesso a educação básica e saúde, proteção a liberdades individuais e geração e difusão do conhecimento.
Quando pensamos em crescimento econômico, as repetidas experiências de danos ao meio ambiente nos ensinam que o desenvolvimento não pode estar descolado da proteção ambiental. A ideia de desenvolvimento nos remete ao bem-estar da sociedade e a habilidade de sustentá-lo. As tragédias recentes, por sua vez, expõem tanto o dano ao bem-estar social propiciado pela negligência ao meio ambiente quanto a viabilidade do modelo vigente de produção e consumo ao longo do tempo.
A garantia do desenvolvimento de longo prazo não requer necessariamente sacrifícios do crescimento econômico, mas sim a incorporação da proteção ambiental na forma como produzimos e consumimos bens e serviços que colaboram para o nosso bem-estar.
Adicionalmente, no caso específico da contribuição para o desenvolvimento econômico pela extração de recursos naturais não renováveis, como minérios e petróleo, é fundamental desenharmos uma estratégia de longo prazo. Pela sua própria natureza, recursos naturais não renováveis serão exauridos em algum ponto do tempo, e as receitas advindas da sua extração cessarão. Neste momento, regiões extrativas correm o risco de entrar em colapso econômico.
A fragilidade de instituições de proteção dos interesses da coletividade em regiões produtoras de recursos naturais combinada ao colapso econômico advindo da exaustão caracterizam o que economistas chamam de “maldição dos recursos naturais”. Apesar de dotadas de riquezas, essas regiões não são capazes de se desenvolver e ainda convivem com um passivo ambiental que reduz o bem-estar da coletividade.
No entanto, a maldição não é inescapável. A saída viável passa por reconhecer nos recursos naturais um tipo de capital que, ao ser extraído, é transformado em outro capital capaz de sustentar o desenvolvimento de longo prazo. Para que isso ocorra, mais uma vez são necessárias instituições a garantir que a renda gerada pela extração seja canalizada para investimentos, após a cobertura dos custos econômicos da atividade extrativa.
Alguns países e regiões têm sido bem-sucedidos em criar instituições que convertem rendas de recursos naturais em investimentos de longo prazo. Por exemplo, na Noruega, não mais do que 4% das receitas advindas de impostos, royalties e licenças de extração de petróleo podem ser adicionadas ao orçamento anual do governo.
O restante das receitas vai para um fundo soberano em benefício das gerações futuras e presente. Outros países e estados norte-americanos constituem fundos similares com saques restritos a investimentos geradores de renda ou investimentos em motores do crescimento econômico de longo prazo, como capital humano (educação) e desenvolvimento da ciência e de novas tecnologias.
O Brasil Velho, constituído por indivíduos de todas as idades, consolida muitas das suas instituições de captura dos recursos da sociedade por parte de grupos de interesse. No entanto, este Brasil Velho deixa uma conta altíssima e insustentável para a geração presente e para as vindouras. A tragédia de Brumadinho nos traz, mais uma vez, para frente do espelho e nos chama para pensarmos em um novo modelo de governança dos nossos recursos humanos e naturais.
A história nos ensina que instituições e costumes mudam lentamente. No entanto, a história também nos ensina que momentos de catástrofe e dor coletiva podem apresentar oportunidades únicas para realizarmos mudanças importantes na sociedade.
A tragédia de Brumadinho manda um recado poderoso para o Brasil e o mundo: se não refletirmos a respeito de instituições e incentivos que integrem o desenvolvimento econômico, o bem-estar social e o meio ambiente, corremos o risco de pagar um preço alto pela nossa inércia. Minimizar a importância de problemas ambientais e postergar a solução dos mesmos vai nos custar caro.
Rotular a preocupação ambiental como uma farsa ou conspiração ideológica é uma tentativa desesperada e na contramão da história de um mundo moribundo tentando se agarrar a seus velhos privilégios.
Ariaster Chimeli é professor associado do Departamento de Economia da FEA-USP.
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