August 26, 2018

Mistérios em torno do sobrenatural e maldito Conde de Lautréamont continuam vivos


Leyla Perrone-Moisés 
 
Em agosto de 1868, foi publicado na França um livreto intitulado "Les Chants de Maldoror (Chant Premier)", assinado por três asteriscos no lugar do nome do autor.
No ano seguinte, os cantos foram publicados na Bélgica, sob o pseudônimo de Conde de Lautréamont. Em 1870, "Poésies" foi editado em Paris, em duas partes, assi
nado por Isidore Ducasse, nome real do autor. Mal distribuídos, os livros demoraram uma década para ser descobertos. E, até agora, continuam cercados de admiração e perplexidade.
Desde a descoberta de sua obra, muitos buscaram informações sobre Isidore Ducasse, e os resultados vieram a conta-gotas. Nenhum autor do século 19 deixou tão poucos rastros de sua passagem: atestado de nascimento (Montevidéu, 1846) de morte (Paris, 1870); registros nos liceus de Pau e de Tarbes (1859-1866); meia dúzia de cartas a um banqueiro e a editores; registro de viagem a Montevidéu (1867); atestados de enterro e de exumação (1870 e 1871).
Tão pouco que uma personagem de Sartre, um pederasta de "Caminhos da Liberdade", convida maliciosamente um jovem para ir à sua casa, onde ele lhe contará a vida de Lautréamont.


Ao longo do século 20, foram escritas biografias do escritor com base em novas informações. Mas mesmo as melhores delas, de François Caradec, de 1975, e de Jacques Lefrère, de 1977, abundam em dados em torno dele e em testemunhos contraditórios de quem o conheceu, como molduras barrocas de um retrato evanescente. Os pontos de interrogação e os "talvez" são comuns nessas biografias.
Alguns enigmas persistem. Por exemplo: nascer e morrer em cidades sitiadas e assoladas pela peste é simples coincidência? Por que as testemunhas que assinaram seu atestado de óbito foram o dono do hotel e um garçom, o que faz supor que não havia em seu domicílio nenhum outro nome de referência, o banqueiro da família, um editor ou um amigo? Quem levou o seu corpo para a igreja Notre-Dame-de-Lorette, onde se realizou um ofício gratuito, e para o cemitério de Montmartre?
Por que, dois meses depois, seus restos foram transferidos para outro lugar, posteriormente aterrado? Quem cuidou dessa transferência? Por que François Ducasse, seu pai, só foi à França três anos mais tarde, para tratar de uma herança em sua província natal e, talvez, para buscar os pertences do filho? Por que esses pertences, herdados por parentes da Argentina, desapareceram?
Todos esses mistérios se prestavam a fabulações, tanto no Uruguai quanto na França. Mescladas às fantasias cruéis e às ameaças ao leitor contidas nos "Cantos de Maldoror", proliferaram as lendas sobre um Conde de Lautréamont sobrenatural e maldito.
É verdade que Isidore Ducasse foi inventor da própria lenda. A única informação que ele quis deixar a seu respeito foi a de ter nascido em Montevidéu, e tudo indica que ele não queria revelar mais nada. Nos "Cantos", podemos ler: "Meu aniquilamento será completo". E nas "Poesias": "Não deixarei memórias".
Na falta de uma biografia, a crítica contribuiu para a criação da lenda, afirmando sucessivamente que se tratava da obra de um louco, de uma brincadeira de mau gosto, de uma farsa de estudante, de um ocultista, de um agitador político et cetera.
É preciso dizer que os surrealistas, André Breton e companhia, ao mesmo tempo que promoveram Lautréamont a patrono e até a "deus" do movimento, contribuíram para o ocultamento de Ducasse.
Apropriaram-se de Lautréamont e se opunham a qualquer pesquisa biográfica e a qualquer reedição ou nova leitura da obra. Convinha-lhes uma visão mítica, suprarreal e mesmo ocultista de seu ídolo. Em 1924, declaravam: "Nós nos opomos, continuamos a nos opor a que Lautréamont entre na história literária".
Nas décadas de 1960 e 1970, os intelectuais do grupo Tel Quel tampouco se interessavam pela vida de Ducasse. Seus integrantes, sob a égide de Roland Barthes, desenvolviam, na época, a "teoria da escritura", que exaltava o "texto" e pregava "a morte do autor".
E quando foi comprovado o bilinguismo de Ducasse, tanto uruguaios como franceses se mostraram ferrenhos nacionalistas, os primeiros revindicando-o como poeta montevideano, e os segundos menosprezando a importância da língua e da cultura espanhola na formação do autor.
No fim dos anos 1980, outro grupo de leitores se formou --a Associação dos Amigos Passados, Presentes e Futuros de Isidore Ducasse. Seu criador, Jacques Lefrère, morto em 2015, era um notável hematologista e pesquisador literário. De 1987 a 2010, a revista da associação, intitulada Cahiers de Lautréamont, publicou centenas de dados novos sobre o autor e a obra.
Aberto a todo tipo de leituras, marcado pelo entusiasmo e pelo senso de humor, o grupo promoveu vários colóquios internacionais e insuflou nova vida aos estudos maldororianos. Há seis anos, a revista passou a ser editada online, e mesmo depois da morte de seu criador o grupo continuou ativo.
Entre as dúvidas persistentes relativas a Ducasse, figura a de sua imagem. Enquanto foram conservadas diversas fotografias de sua família, nunca se encontrou uma autenticada do escritor. Tudo indica que tanto François Ducasse, pai do autor, como seus parentes preferiam ocultar aquela "ovelha negra" que publicara uma "obra licenciosa".
Os pesquisadores uruguaios Álvaro e Gervasio Guillot-Muñoz foram os primeiros a encontrar documentos que confirmavam a breve existência de um Isidore Ducasse independente de sua personagem Lautréamont. Segundo eles, em 1925 conseguiram com uma parente uma fotografia dele, que em 1935 foi apreendida pela polícia argentina.
Primeira pergunta: por que, em dez anos, eles a mostraram só a três ou quatro pessoas e não a publicaram, já que naquela época o interesse pelo autor de "Maldoror" já era grande? Segunda pergunta: por que a polícia pegou só a foto de Ducasse e deixou com eles outras fotos de parentes? Terceira pergunta: por que as descrições e reconstituições gráficas da imagem perdida são tão vagas e divergentes?
Em 1976, Jacques Lefrère encontrou uma fotografia e a publicou em "Le Visage de Lautréamont", de 1977. Essa é, desde então, considerada como autêntica. As probabilidades são grandes, mas falta uma certeza absoluta.
Nenhuma legenda a identificava, mas ela foi achada num álbum da família de seu colega Georges Dazet, junto com uma deste e outra do pai de Ducasse. Esta difere daquela perdida e descrita pelos Guillot-Muñoz, mas corresponde às informações de que ele era alto e moreno.
Agora, expliquem-me a seguinte coincidência. Na falta de imagens de Isidore Ducasse, entre o fim do século 19 e o começo do século 20, foram feitos vários retratos imaginários de Lautréamont, por Salvador Dalí e outros. Entre eles, há um assinado por Félix Valloton e publicado no "Livre des Masques", de Remy de Gourmont, em 1896.
Em carta a André Breton, publicada por este na revista Minotaure, em 1925, o artista negou que tivesse visto qualquer foto ou documento, e reafirmou o caráter imaginário de seu retrato. Satisfeito, Breton estampou o tal retrato sobrepondo, a este, dois grandes traços em forma de "X".
Ora, desde que Lefrère publicou seu achado, intrigou-me a incrível semelhança entre a foto de Ducasse e o retrato imaginário de Valloton.
Invertendo-se no último a posição do rosto, a semelhança é impressionante no contorno e nos pormenores. Acaso objetivo? Teria Valloton psicografado o rosto de Ducasse? Seria, então, o primeiro caso de um retrato imaginário que confirma o retrato autêntico. Em 1914, enviei essas imagens a Lefrère, que respondeu: "É verdade. Eu nunca tinha feito a aproximação".


Um século e meio depois de sua publicação, Lautréamont não cessa de encontrar novos amigos. Temível amigo, que avisava ao leitor em seus Cantos: "Tens um amigo no vampiro, apesar de tua opinião contrária. Incluindo o ácaro Sarcoptes que produz a sarna, terás dois amigos!". Meter-se com ele é, de fato, procurar muita sarna para se coçar.

Leyla Perrone-Moisés
Doutora em língua e literatura francesa, é autora do livro “Lautréamont Austral”

Edições brasileiras

“Os Cantos de Maldoror, Poesias, Cartas”
trad. Claudio Willer. Ed. Iluminuras. R$ 69 (352 págs.)
“Os Cantos de Maldoror”
trad. Joaquim Brasil Fontes. Ed. Unicamp. R$ 25 (328 págs.)





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