March 25, 2018

Estados Unidos massacram centenas de civis no Vietnã


Vilarejo foi erroneamente identificado como reduto vietcongue: número de mortos pode chegar a 500

Mulheres e crianças aparecem mortos em estrada rural de My Lai, durante o massacre ao vilarejo

Rodrigo Vizeu 
 
Em 16 de março de 1968 
 
Em um ataque que pretendia neutralizar um suposto reduto de guerrilheiros vietcongues, o Exército americano matou neste sábado (16) centenas de civis vietnamitas1, incluindo mulheres, idosos e crianças, em uma área rural do Vietnã do Sul, a cerca de 700 km ao norte de Saigon2.


1) O massacre foi inicialmente noticiado como uma bem-sucedida batalha em que foram mortos 128 guerrilheiros. O caso foi acobertado em diversas instâncias do Estado americano por mais de um ano, até ser revelado em novembro de 1969 pelo jornalista Seymour Hersh, que venceu o Prêmio Pulitzer
2) Hoje Ho Chi Mihn, era então capital do Vietnã do Sul

O número de mortos pode chegar a 500. O massacre é o maior da história das Forças Armadas dos EUA3.

3) O recorde nunca foi quebrado

Em muitos casos, os soldados enfileiraram os locais e os lançaram em valas antes de matá-los. Houve tortura e estupros. Habitações foram destruídas; animais, mortos; e poços d'água, contaminados.

O massacre não foi maior devido à intervenção de um piloto de helicóptero americano contra seus próprios colegas, em favor dos civis.

A matança de três horas e meia se concentrou em My Lai, uma das partes do vilarejo de Son My, próximo ao litoral sul-vietnamita. O ocorrido se choca com os princípios da Convenção de Genebra, dos quais os EUA são signatários, que exigem tratamento humano de não combatentes. O regulamento do Exército prevê punição de comandantes de tropas envolvidas em atrocidades.
Tamanho número de mortos em tempo tão exíguo só encontra paralelo recente na Segunda Guerra Mundial (1939-45), na Guerra da Coreia (1950-53) e no próprio Vietnã —mas em atos praticados até agora pelas tropas comunistas ou, do lado lado da aliança liderada pelos EUA, pelas forças da Coreia do Sul.

O ataque tem potencial de comprometer o apoio da opinião pública dos Estados Unidos à guerra no Vietnã, conflito que se arrasta desde a década passada, com expressivo aumento da presença americana nos últimos anos em apoio ao sul capitalista.

Ainda sem vitória definitiva no horizonte, as tropas enviadas por Washington têm penado mais do que o imaginado diante do Exército do Vietnã do Norte comunista e dos guerrilheiros vietcongues no sul.

A situação se agravou a partir do último dia 30 de janeiro, quando norte-vietnamitas e vietcongues lançaram ofensiva sobre o sul4, incluindo Saigon. Inicialmente surpreendidos, os EUA e seus aliados têm recuperado terreno.


4) Embora derrotada, a ofensiva do Tet contribuiu para que 1968 fosse o ano mais letal da guerra para as tropas americanas e representou uma virada do conflito junto à opinião pública dos EUA, que passou a questionar as chances de vitória e o propósito da permanência do país na guerra do sudeste asiático


Foi nesse contexto de busca de represália que tropas integrantes da 23ª Divisão de Infantaria do Exército dos EUA, 5a Americal Division, chegaram a My Lai. Apelidados de "guerreiros da selva", os membros da divisão estão sob o comando do major-general Samuel Koster6, em ascendência nas Forças Armadas.


5) Criada em 1942 na 2ª Guerra, foi desativada em 1971
6) Veterano da 2ª Guerra, foi acusado de acobertar o massacre, mas caso foi encerrado. Teve patente rebaixada e se aposentou em 1973. Morreu em 2006

O massacre teve à frente um dos subgrupos da divisão, a companhia Charlie, chefiada pelo capitão Ernest Medina7.


7) Absolvido em corte marcial em 1971, comemorou manifestando "fé na Justiça militar". Deixou o Exército pouco depois. Tem hoje 81 anos


No Vietnã desde o fim do ano passado, a Charlie reunia até My Lai 38 baixas, com 5 mortos, diante de ataques surpresa dos vietcongues e de explosão de minas.

Seus membros se frustravam com a falta de combate direto contra um inimigo fugidio —após sua ofensiva perder força, os guerrilheiros voltaram à tática de atacar pontualmente e se esconder.
Além disso, o clima de desconfiança entre americanos e civis sul-vietnamitas é mútuo. Os primeiros veem simpatia pró-vietcongues nos segundos, que sofrem com destruições e violências cometidas pelas tropas dos EUA.
Jornal "The Plain Dealer", de Cleveland (Ohio), foi o primeiro do mundo a publicar as imagens do massacre de My Lai, no Vietnã
Jornal "The Plain Dealer", de Cleveland (Ohio), foi o primeiro do mundo a publicar as imagens do massacre de My Lai, no Vietnã - Reprodução
Na véspera do ataque —e após um funeral de um militar americano morto— o capitão Medina disse a seus subordinados que a batalha do dia seguinte prometia ser dura, contra um inimigo bem protegido e numericamente superior. Eram prováveis muitas baixas do lado dos EUA, disse. Ordenou que a área de My Lai fosse vasculhada e o vilarejo, destruído.

Segundo alguns dos comandados, Medina teria especificado que todos os vietnamitas encontrados deveriam ser mortos. Ele nega ter dado tal ordem e rechaça testemunhos de que participou pessoalmente da matança.

A escolha da área de ataque se baseou em informação incorreta do setor de inteligência de que ali estava refugiado o 48º Batalhão da Frente de Libertação Nacional, nome oficial dos vietcongues. Na verdade, o batalhão estava escondido em uma região montanhosa a 65 km dali.

Em outro erro de informação, vindo da CIA, o Exército concluíra que os vietnamitas presentes em My Lai que não fossem vietcongues deixariam a aldeia até as 7h em direção a um mercado. Quem ficasse era suspeito de simpatizar com os guerrilheiros.

Todas essas premissas basearam os planos de ataque do tenente-coronel Frank Barker, superior de Medina8.


8) Morto em um queda de helicóptero em jun.1968, foi postumamente condecorado pelo Exército

Para o soldado Charles Gruver, o objetivo estava claro: "Entrar e destruir a coisa toda, mulheres, crianças. Eliminar, incendiar o vilarejo. Tudo que fosse vivo. Apenas matar, exterminar"9.

9) Em depoimento à comissão de investigação, em 1970, e a reportagem do jornal Sunday Oklahoman, em 1972

CARNIFICINA

Por volta das 7h30, a artilharia iniciou o ataque. À distância, o coronel Oran Henderson, 10chefe da 11ª Brigada de Infantaria, observou sem preocupações com vítimas civis.


10) Acusado de abandono do dever por não ter investigado o massacre, foi absolvido em 1971. Em depoimento, disse entender que My Lai era um complexo altamente protegido para abrigar vietcongues, não havendo limites para efeitos colaterais. Aposentou-se em 1974. Morreu em 1998

Há relatos esparsos de tiros vietnamitas disparados durante o desembarque da infantaria, mas no geral a chegada dos soldados foi tranquila, ao contrário do esperado. Testemunhas locais disseram que os vietcongues que estavam no vilarejo foram embora antes do ataque.

Ao chegar, os americanos notaram que não se confirmara a previsão de que os civis estariam ausentes. Muitos tomavam o desjejum. Soldados miraram então em quem estivesse ali, mesmo sem perfil militar. Famílias foram executadas ao deixar esconderijos ou explodidas dentro deles.

"Foi uma carnificina completa", relatou o fotógrafo do Exército Ronald Haeberle11, que registrou o ataque. Também acompanhou a ação o repórter oficial Jay Roberts.

11) Entregou as fotos ao jornal The Plain Dealer, que, contra pressões do governo, publicou-as em 20.nov.1969. Mais registros foram publicados na revista Life. Investigado por acobertamento, disse não ter repassado as imagens a superiores por temor de que fossem destruídas

Uma mulher foi metralhada com um bebê no colo. Meninos foram mortos ao pedir comida aos soldados. Um militar tentou forçar uma mulher a fazer sexo oral enquanto apontava uma arma na cabeça do filho de quatro anos dela.

"Foram tantas pessoas mortas que é difícil lembrar como exatamente algumas delas morreram", contou o soldado Harry Stanley.

Papel crucial na matança teve o tenente William Calley, 12à frente do mais brutal pelotão a adentrar My Lai.


12) Na única condenação pelo massacre, foi sentenciado em 1971 a prisão perpétua pelo assassinato de 22 civis vietnamitas. Sob prisão domiciliar, ganhou liberdade condicional em 1974. Parte da opinião pública o viu como bode expiatório do episódio. Em 2009, desculpou-se pela primeira vez: “Não há um dia em que eu não sinta remorso pelo o que aconteceu naquele dia em My Lai”. Tem hoje 74 anos


Subordinados relataram as ordens de Calley para que civis, inclusive crianças, fossem mortos, tratando com agressividade os soldados que resistiram a participar.

"Se ficarmos no Vietnã mais dez anos, se seu filho for morto por esses bebês, vocês vão chorar para mim: 'Por que você não matou esses bebês aquele dia?'", disse Calley. "Pessoalmente, eu não matei nenhum vietnamita. Eu representava os Estados Unidos."

Um dos soldados, Gary Roschevitz, sobre quem recaem alguns dos relatos mais brutais, ordenou que mulheres tirassem as roupas antes de matá-las com um lança-granadas.


Em 27 de novembro de 1969, Folha publicou reportagem após massacre vir à tona.
Em 27 de novembro de 1969, Folha publicou reportagem após massacre vir à tona.
Em 27 de novembro de 1969, Folha publicou reportagem após massacre vir à tona. - Reprodução

SALVAMENTO

Sobrevoando a área depois das 9h, o piloto de helicóptero Hugh Thompson13 observou que algumas das pessoas lançadas à vala estavam vivas. Também viu soldados caminhando tranquilamente e civis sendo executados.


13) Sua denúncia sobre o massacre foi inicialmente considerada falsa pelo coronel Henderson. Passou a ser deslocado para missões perigosas e sem apoio até seu helicóptero ser derrubado em um ataque e ele sofrer fraturas. Seus testemunhos contra colegas militares lhe renderam inimizades. Aposentou-se do Exército em 1983. Em 1998, foi condecorado por ato de bravura. Morreu em 2006

Contou ter pensado no que ouviu sobre os assassinatos nazistas e que não era possível que americanos estivessem fazendo o mesmo. "Deveríamos ser os mocinhos."

Pousou o helicóptero e cobrou satisfações de Calley, que desdenhou de sua preocupação com os civis. Relatou via rádio o que ocorria.

Ao ver um grupo em perigo, pousou sua aeronave entre os vietnamitas e os soldados. Com sua equipe de armas em punho, escoltou civis para uma área segura.

O massacre terminou após as 11h, quando o capitão Medina anunciou uma pausa para o almoço.
Só três combatentes vietnamitas foram mortos, ainda no ataque inicial da artilharia. Três armas foram apreendidas. Do lado americano, um soldado se feriu ao tentar limpar uma arma. Deu um tiro no pé.


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