Andreas von Richthofen e Pedro Rosalino tinham 15 e 16 anos,
respectivamente, quando comoveram o Brasil: um, pelo assassinato dos
pais pela irmã, e outro por ter sido encontrado após 16 anos de
sequestro. Hoje, Andreas enfrenta o drama do crack, e Pedro é advogado
de Aécio Neves na Lava-Jato.
Irmão de Suzane von Richthofen é retirado de Cracolândia em São Paulo
Andreas foi encaminhado a hospital, após ser detido, desorientado, tentando pular o muro de uma casa
por Mariana Sanches e Marcos Alves
Com escoriações pelo corpo e desorientado, Andreas Albert von
Richthofen, único irmão de Suzane von Richthofen, condenada pelo
assassinato dos próprios pais, foi internado na madrugada desta
terça-feira no Hospital Campo Limpo. Segundo funcionários do hospital,
ele teria sido detido por policiais militares quando tentava pular o
muro de uma residência em uma área frequentada por usuários de crack.
Andreas estava agitado, desorientado e agressivo, como relataram agentes que o atenderam. No prontuário, ao qual O GLOBO teve acesso, a médica que o atendeu afirmou que os sintomas de Andreas eram condizentes com "abuso de substâncias ilícitas". Quando chegou ao hospital ele estava, ainda segundo os enfermeiros ouvidos pela reportagem, sujo, com os cabelos compridos e roupas em frangalhos. Tinha múltiplos ferimentos pelo corpo, mas em nenhum deles precisou levar pontos.
A Polícia Militar, no entanto, informou no início da noite desta terça-feira que o rapaz foi detido na Rua Engenheiro Alonso de Azevedo. A PM afirmou que a região não se trata de uma área de Cracolândia.
Atendido pela psiquiatra de plantão, Andreas tentou se jogar da maca quando soube que ficaria internado. Foi feito um cartão do Sistema Único de Saúde (SUS) para o rapaz que completará 30 anos em julho. Andreas tinha apenas 15 anos quando os pais foram mortos pela irmã, em conluio com o namorado Daniel Cravinhos e o irmão dele.
Ao ser internado, a preocupação de Andreas era com uma medalhinha
dourada em que se lia o sobrenome Richthofen, retirado dele no hospital
para evitar que ele se ferisse com o objeto. Limpo e medicado com
tranquilizantes, Andreas foi colocado sozinho em um quarto, por
discrição. A assistência social do hospital localizou um tio de Andreas,
que havia se disposto a comparecer ao local, mas não havia aparecido
até o início da noite.
O GLOBO ainda não conseguiu contato com o tio. Andreas seria transferido para a Casa de saúde São João de Deus, uma comunidade terapêutica religiosa que firmou convênio com a prefeitura para receber, por meio do SUS, usuários de drogas de São Paulo.
Estão em curso em Brasília as tratativas de um acordão
que visa a utilizar uma eventual eleição presidencial indireta para
“anistiar” parte do mundo político e colocar o Congresso como
contraponto à Lava Jato e ao Ministério Público Federal. Os cérebros da
trama atuam, sobretudo, no Senado Federal. Na ponta final da maquinação
está o compromisso de alterar a Constituição para garantir foro
privilegiado a ex-presidentes da República, o que beneficiaria
diretamente Lula, Sarney, Collor, Dilma e, eventualmente, Michel Temer,
todos alvo de investigações.
O grupo suprapartidário de senadores entende hoje que
uma eventual eleição indireta para a Presidência deve seguir o modelo
bicameral: aprovação de um candidato pela Câmara a ser referendada
posteriormente pelos senadores.
Na prática, isso significaria um peso maior para o
voto dos 81 senadores sobre o dos 513 deputados, o que diminuiria
drasticamente as chances de Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual presidente da
Câmara, ser eleito para o Planalto. Ciente desse movimento, os
apoiadores de Maia sondaram o presidente do Senado, Eunício Oliveira
(PMDB-CE), para ser o vice do deputado.
O problema é que os senadores acham que Maia, uma vez
eleito presidente da República, não sobreviveria ao que chamam de “jogo
baixo da Lava Jato”. Avaliam que a cabeça de Maia se tornaria o troféu a
ser apresentado pela longa fila que hoje tenta fazer delação premiada. A
gravação feita por Joesley Batista de uma conversa com Temer comprovou,
na visão dos senadores implicados na Lava Jato, que o Ministério
Público Federal está disposto a tudo para “destruir o mundo político”.
Na primeira terça-feira de maio meu avô e eu almoçamos juntos, como
fazíamos toda semana, há muitos anos. Naquele dia, a conversa começou
assim: "Nasci em um mundo, me desenvolvi em um outro, e agora estou
neste terceiro, que eu não compreendo, do qual não sou parte".
Já era recorrente a queixa de que, àquela altura da vida, nenhuma das
suas referências poderia perseverar. Fui cúmplice: "Eu também, Vô, não
compreendo e muitas vezes não me sinto parte, inclusive porque este
terceiro tem uma característica que o diferencia brutalmente dos
anteriores, que é a velocidade. Também não acompanho". Sorrimos juntos e
partimos para o tema seguinte.
Todos os assuntos eram nossos, qualquer questionamento valia a pena,
nenhuma inquietação pedia reserva. De uns tempos para cá, nos
relacionávamos como um par sem idade, sem gênero. Eu me divertia de
pensar que meu mais querido e precioso confidente era meu avô, de 98
anos. Ele, um homem, um senhor quase centenário, absolutamente atuante
no topo da hierarquia familiar. Eu, uma mulher, sua neta, que ele ajudou
a criar.
Confeccionávamos chapéus e espadas de jornal, comprávamos presentes nas
lojas do bairro, assistíamos a toda a sua coleção do Chaplin ou do Fred
Astaire em um feriado. Entrava na sua Brasília cor de vinho depois da
escola, ia para o balé e, na volta, podia bater a máquina o quanto eu
quisesse, fazer perguntas sobre mitologia grega para a lição de casa ou
ouvir alguma das nossas fábulas, tiradas de livros italianos, dos
exemplares raríssimos da sua própria infância, ou da sua imaginação.
Ganhava notas de dinheiro dentro de envelopes com dedicatória. Fazíamos a
barba juntos, com pincel, espuma e sem gilete. Pedi socorro e me
abriguei na sua casa até o fim.
Três dias depois do nosso último almoço ele foi internado, com um
problema que logo de saída me pareceu insolúvel. Foi aí que uma ideia
nunca mais me abandonou: o mundo do meu avô era o meu mundo preferido e,
apesar da idade avançada ser sempre prenúncio de partida, não estava de
fato preparada para seguir sem ele.
Como permanecer na minha frenética dimensão sem a possibilidade de
escapar para aquele universo carregado de conforto e delicadeza, que ele
oferecia sempre que qualquer um de nós se dispusesse a bater na sua
porta? Seria desalentador viver dali em diante, sem o bálsamo da sua
palavra, dos gestos, das histórias.
Para mim, o mundo do Vovô Candido –como todas as seis netas e o único
neto homem o chamam– é tecido nas linhas da memória e do afeto. Começa
quando o primeiro antepassado pisa em terras brasileiras e nunca termina
de ser costurado. Parte do princípio de que somos todos personagens de
uma mesma história, ligados por existências múltiplas e cheias de
significado, não importando se fomos barbeiros na sua pequena Santa Rita
de Cássia, escravos libertos de uma fazenda esquecida do sul de Minas,
influentes barões de Cerro Azul, comerciantes poliglotas ou fazendeiros
de café que sonham em ser poetas. Cada um dos milhares de filhos das
suas árvores genealógicas favoritas (colecionadas ao longo de quase um
século) tem uma história e uma marca para ser lembrada.
Sabia de cabeça datas de aniversário, casamento e morte. Contava com
riqueza de detalhes –incluindo os timbres vocais, o caminhar, os tiques
nervosos– cenas reais que pareciam saídas de um dos seus filmes
prediletos, que assistíamos juntos em fitas VHS e cujos diálogos
decorávamos e repetíamos exaustivamente como bordões, pela vida afora.
Esse interesse tão singular pelas trajetórias fazia dele um ouvinte
gentil, rico de um repertório que não estava nos livros, mas na
experiência de carne e osso.
Dizia que vinha vivendo tanto porque "era um sujeito moderado", que
quase nunca se exaltava, de modo que isso devia ter-lhe conservado o
coração, o sono, a consciência e, ao final, a saúde. Que, apesar de
adorar a companhia dos amigos e da família, sentia-se bem quando só, com
suas ideias.
Um dos funcionários do prédio em que ele viveu os últimos 20 anos fez
questão de deixar claro: "Sei que o professor era muito importante. Mas o
que eu queria mesmo dizer é que ele foi a pessoa mais maravilhosa que
conheci, sempre tão atencioso conosco". No mundo do meu avô a gentileza,
a solidariedade e a beleza da vida são rainhas. Com seus atributos
femininos, governam as leis naturais. Distribuem, ofertam, pacificam,
toleram, cuidam.
Tivemos o privilégio de tê-lo na dimensão familiar, possivelmente tão
exaltada nele quanto a intelectual. Mas meu avô foi além. Levou longe
sua capacidade de compartilhar conhecimentos e, mais longe ainda, a
nobreza das suas atitudes. Embora ele próprio não acreditasse em Céu e
invejasse aqueles presenteados pela fé, tenho certeza de que o que se
lhe reserva é bom, como ele. E eu, aqui neste mundo, me conforto na
ideia de que tive meu Céu em vida.
Maria Clara Vergueiro, jornalista e editora, é neta de Antonio Candido
Para Arthur Pinto Filho, promotor da área da Saúde, trata-se de "um pedido genérico para levar pessoas que estão vagando pelas ruas à força". Ele ainda explicou que a petição é uma "afronta a lei antimanicomial aprovada 2001". "É o pedido mais esdrúxulo que eu vi em toda minha vida. É uma caçada humana que não tem paralelo o mundo", opina.
Já o promotor da área de inclusão social, Eduardo Ferreira Valério, disse que o pedido de Doria "é um impressionante retrocesso, que remete a começos do século XX", uma vez que abre margem para que se considere "aspectos raciais e sociais" na apreensão das pessoas, e não "terapêuticos ou científicos". Hoje, a internação compulsória só pode ser analisada em casos específicos e autorizada pela Justiça após um detalhado laudo médico, segundo explicou.
“Twin Peaks” is coming back. Maybe you’ve heard? Or have you been trapped in an other-dimensional waiting room with a dancing dwarf?
David Lynch and Mark Frost, the creators of the profoundly strange and influential 1990-91 series on ABC, have made an 18-episode sequel that begins Sunday, May 21, on Showtime. The New York Times television critics James Poniewozik and Mike Hale, using torn stationery and letters pulled from beneath their fingernails, discussed the show’s far-reaching legacy.
MIKE HALE The last time we did this, Jim, it was for the reboot of “The X-Files,” another icon of spookiness and dread. “The X-Files” debuted in 1993, just three and a half years after “Twin Peaks.” But in memory, the gap seems greater, because it was already living in the television world “Twin Peaks” had created. So many things were revolutionary about “Twin Peaks,” and its DNA saturates the TV gene pool: Every serialized mystery, teenage melodrama, quirky dramedy and surreal supernatural thriller owes something to it.
Watching the entire run of David Lynch and Mark Frost’s series for the first time since its original broadcast (yes, I’m that old), I’ve recalibrated my judgment. I used to be in the camp that considered the first season and select episodes of the second season to be on the same high level, but now I see a more clear falloff immediately after the brilliant (and largely straightforward) two-hour pilot. The humor becomes more arch, the melodrama less evocative, and the surreality (seismic in its time) isn’t organic to the story the way it had been in Mr. Lynch’s “Blue Velvet” and would be in his “Mulholland Drive.” Did your estimation of the show shift this time around?
JAMES PONIEWOZIK Welcome back to the lodge, Mike! Help yourself to cherry pie and creamed corn.
I agree and disagree about the pilot. When people today ask, “How did this show even get on the air?” that pilot is essentially the answer: It’s accomplished, mesmerizing and within the accepted universe of TV genres. (Basically, it’s moody oddball noir.)
Had the series continued in that vein, it might have been more satisfying. But would we be talking about it today? “Twin Peaks” doesn’t really become “Twin Peaks” until Episode 3, where we get Tibet and the reverse-speech and the sense that not everything in these woods will be explained rationally, or at all. ABC might have passed on that show, just as it did, a decade later, on “Mulholland Drive.”
There are absolutely flaws on rewatch (the extended teenage-Nadine subplot; Catherine’s Japanese-businessman drag). But I even found new respect for the later episodes — at least the very end, which goes full phantasmagoria. What makes “Twin Peaks” unstable, the mainline to Mr. Lynch’s subconscious, also makes it sui generis. Sometimes, maybe, a show has to become “worse” to become great.
Frank Silva, left, and Mr. MacLachlan in the original series.
Credit
ABC Foto de: ABC
HALE I think you’re exactly right, for better or worse, when you ask whether we’d still be talking about the show. Post-pilot “Twin Peaks” is the template for Peak TV: The stylization and self-consciousness of shows from “Breaking Bad” and “Mad Men” to “Fargo” and “Atlanta” start there. Whereas the pilot, in which the classicism and the phantasmagoria perfectly coexist, hasn’t really been equaled (except perhaps in the early episodes of “The X-Files,” which, paradoxically, are heavily indebted to the later, spookshow “Twin Peaks”).
It was interesting to see what had held up and what hadn’t. The Cooper dream sequences have the same power — when the little man says “Let’s rock” in Episode 3, it’s just as creepy as I remember it. But, some of the things the show is remembered for, because they seemed so loopy at the time — the log lady, the one-armed man, the damn good cup of coffee — feel contrived now.
PONIEWOZIK Partly, maybe, because that loopiness was the easiest thing for TV to co-opt. “Northern Exposure,” with its Alaskan goofball shamanism, debuted the summer after the first “Twin Peaks” season.
“Twin Peaks” changed TV in bigger ways — eventually. It helped establish a figurative dream-language that you see in series like “Legion.” It introduced the idea of a serial drama as a puzzle (“Lost,” “Westworld”). It showed viewers that a TV show could be the work of an auteur — even Louis C.K.’s comedy “Louie,” on which Mr. Lynch memorably guest-starred, owes something to that. But those shows came much later. I’m old enough to remember when “Twin Peaks” was treated, for years, as a TV cautionary tale — a warning against seriality, experimentation and writing a mystery check your narrative can’t cash.
Rob Morrow in “Northern Exposure.”
Credit
CBS Photo Archive/Getty Images Foto de: CBS Photo Archive/Getty Images
HALE What did attract a lot of attention at the time was sex and violence. A younger audience might not appreciate just how unusual “Twin Peaks” was in its openness about rape, incest and prostitution. It was consciously overstuffed with victimized femmes fatales, but at the same time, Mr. Lynch extrapolated from daytime soap opera in a way that gave some of his female characters more sexual curiosity and agency and made stars of a whole group of unknown young actresses.
PONIEWOZIK Here’s another tidbit for the youngsters: “Twin Peaks” debuted just four months after “The Simpsons.” Two landmarks in drama and comedy; two creators who brought an indie sensibility mainstream (Matt Groening drew the alt-comic “Life in Hell”); and two TV shows that were very much about the pop culture that preceded them. “Twin Peaks” drew on soaps (remember the show-within-the-show “Invitation to Love”), teen melodrama, detective procedurals — but while it twisted them, it didn’t mock them. Mr. Lynch unearths nightmares, but he has genuine affection for Americana, and the show’s lack of smirkiness may be a surprise to a new audience. Mr. Lynch was a filmmaker first, but he never seemed to feel superior to TV.
HALE Another eerily contemporary thing that was unheard-of then: a noted film director doing TV. Not just any film director, but the director of “Blue Velvet” and “Wild at Heart.”
PONIEWOZIK From where I’m sitting, “Twin Peaks” refutes the argument — which we heard around “Lost” ad infinitum — that an audience deserves neat “answers” for everything. Two episodes after Leland is exposed, the series addresses an unspoken question: How literally should we take this whole story about Bob and spirits of the woods? Sheriff Truman suggests there must be a more rational answer — Leland must have been insane. “Harry, is it easier to believe that a man would rape and murder his own daughter?” Agent Cooper asks. “Any more comforting?”
A scene from the series “Lost.”
Credit
Mario Perez/ABC Foto de: Mario Perez/ABC
In the end, Cooper says that the real explanation does matter, “because it’s our job to stop it.” But Mr. Lynch, I suspect, cares less about the answer than the wondering.
HALE “Twin Peaks” left a lot of its characters in uncomfortable situations — Ed, Nadine and Norma; everyone involved in the Ghostwood development battle; and of course Cooper himself. There’s plenty there for a sequel to tackle, but if Mr. Lynch just ties up loose ends in the familiar style, is that something that needed to be done?
PONIEWOZIK Honestly? Before the reboot was announced, it never occurred to me to want more “Twin Peaks.” It felt like a complete story, maybe overcomplete in the end.
But: Showtime wants to give David Lynch 18 hours and carte blanche to execute an idea he’s excited about? Sign me up. So I’m glad if he ditches the loose ends and goes into hallucinatory overdrive. Either way, I can’t get over the fact that I just set up a DVR season pass, in 2017, for new episodes of “Twin Peaks.” It seems like something out of a dream, which I guess is perfectly appropriate.
Brasil, século 20, fim dos anos 70, começo dos 80. Um fim de mundo,
isolado e sem informação, onde ninguém sabe nada de nada. No resto do
planeta, um terremoto revoluciona a música: o punk e o pós-punk enterram
com fúria o movimento hippie.
Mas não por aqui. O Brasil ainda era o mundo do Clube da Esquina, da
canção de protesto, de zumbis baianos sobreviventes do tropicalismo.
E o rock local? Uma desgraça, misto de progressivo com heavy metal
bicho-grilo. Discos estrangeiros chegavam com anos de atraso, quando
chegavam.
Em meio a esse panorama musical tão sombrio, alguns pontos de luz
brilhavam. O radialista e músico Kid Vinil, morto nesta sexta (19) aos
62 anos, era o maior deles.
Ultrainformado, era um raro emissário, neste imenso caipiródromo chamado
São Paulo, do que de mais interessante se fazia em música no exterior.
Trabalhava em gravadoras, TVs, escrevia para jornais (inclusive para a
"Ilustrada"), atuava em rádios. E foi no rádio que deixou suas maiores
contribuições, como o programa "New Beat", domingo à tarde, numa
emissora para playboys chamada Antena 1.
Só o Kid para ter coragem de conseguir um programa numa estação que não tinha nada a ver com o som que ele tocava.
A essas alturas, é um clichê descrever a cena, mas, para a minha
geração, ela foi muito real: dedo a postos no botão de "rec" do gravador
de fita cassete, esperando o "New Beat" começar.
Porque era só lá que a gente podia ouvir –e registrar– desde o punk mais
ortodoxo, tipo Sex Pistols e Dead Kennedys, até as inovações insanas
vindas principalmente do rock inglês: Alian Sex Fiend, Sisters of Mercy,
June Brides, Sex Gang Children, Smiths.
Naquele mundo off-line, Kid Vinil era a nossa internet, nosso canal de
conexão com o que de realmente importante acontecia no mundo musical.
Como pessoa, não poderia ser mais doce. Boa praça, conciliador, amigo.
No começo deste século, trabalhamos (vamos dizer assim) por algum tempo
numa mesma rádio, a Brasil 2000, onde ele dominava o final de tarde e eu
fazia o programa "Garagem", às segundas, com os amigos André Barcinski e
Paulo César Martin. Nós três aprontamos algumas por lá e Kid, um
gentleman que tinha entrada com a direção, sempre segurou a nossa onda.
Quando ficou doente, há cerca de um mês, amigos e fãs precisaram fazer
uma vaquinha para trazê-lo, do interior de Minas, onde tinha sofrido um
colapso, para um hospital um pouco mais bem equipado de São Paulo.
Isso diz muito sobre o estilo de vida que o Kid seguiu: seu negócio era
música, a mais nova e mais instigante possível, em fluxo permanente.
Dinheiro não era a dele.
Como músico, teve um sucesso avassalador, o roquinho new wave "Sou Boy".
Em qualquer país decente, só essa música seria suficiente para garantir
a ele uma vida muito confortável por muito tempo. Mas o Brasil é isso o
que a gente está vendo. E ele ainda ralava pelo interior destes tristes
trópicos, que agora se dão ao luxo de perder, tão cedo, o grande Kid Vinil.
O cérebro faz associações que a gente não controla. E até por isso deve
prestar atenção. Quando vi o foco que a imprensa deu à greve geral da
semana passada, na hora me veio um trecho da música "Construção", de
Chico Buarque.
"Morreu na contramão atrapalhando o tráfego."
Chico fez a inversão de importância como crítica, pra tocar na ferida.
No caso da cobertura da greve, o dedo passou foi longe da ferida mesmo. A
impressão é que a grande consequência de tudo aquilo foi atrapalhar o
tráfego. Mas é disso que se trata quando pessoas saem às ruas em todo o
Brasil?
Não sei o que Chico Buarque acha disso, mas sei que outras músicas dele
poderiam –aí por associação voluntária– ilustrar nosso momento
complicado.
A respeito de mensalões e petrolões, já vi usarem o trecho de "Vai
Passar" que diz: "Dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber
que era subtraída em tenebrosas transações".
Sobre aquela votação no Congresso em que deputados aproveitaram a
madrugada do acidente com o avião da Chapecoense pra desfigurar um
pacote anticorrupção, "Cálice" iria bem: "Como é difícil acordar calado,
se na calada da noite eu me dano".
A corrupção e a má gestão que devastaram economicamente o Rio de Janeiro
poderiam desembocar no verso de "Futuros Amantes": "Quem sabe, então, o
Rio será alguma cidade submersa".
Chico tem letras pra qualquer estratégia de defesa dos acusados de
corrupção. "Todo o Sentimento" para os que não se assumem culpados
("onde não diremos nada, nada aconteceu") e "Anos Dourados" para os que
resolvem delatar ("e deixo confissões no gravador")
A gafe mais recente de Temer, ao dizer que o Brasil precisa de um marido
pouco tempo depois de reduzir a importância econômica das mulheres à
sua presença nos supermercados, parece o verso de "Bom Conselho": "Aja
duas vezes antes de pensar".
Voltando à greve geral, fiquei muito assustado com a quantidade de
pessoas que usaram Chico pra gritar "Vai Trabalhar Vagabundo" a pessoas
que exerciam seus direitos.
Se bem que isso soa até suave, perto da violência do cassetete no rosto
daquele estudante de Goiânia, que se não estivesse sedado e em estado
grave (até a hora em que entrego esta coluna), poderia dizer que estava
ali porque "a gente quer ter voz ativa, no nosso
destino mandar".
Realmente este é um país "que não tem conserto nem nunca terá".
No próximo domingo, João Augusto levará sua mãe para almoçar num restaurante especial. Mais uma história de Dia das Mães? João Augusto, conhecido como João Diamante, é um jovem negro de 24 anos, morador da Divineia, no complexo do Andaraí, que assumiu há pouco tempo a cozinha do recém-inaugurado restaurante do Museu do Amanhã. Sua mãe vai comer o menu preparado pelo filho. É a primeira vez que a mãe fará isso. João teve uma longa jornada para chegar até esse momento. Sua história combina elementos centrais que ensinam sobre superação de desigualdades: esforço pessoal, redes, projetos e políticas de inclusão.
João começou a trabalhar aos 9 anos ajudando um padeiro. Afirma que nunca foi um aluno exemplar na escola, mas deixou as estatísticas de evasão escolar para trás, conseguiu terminar o ensino médio — que persiste em ser um funil para jovens negros e pobres. Entrou para a Marinha. A mãe, Dona Elildes, empregada doméstica, ficou mais tranquila. Qual mãe de origem popular que não se acalma ao ver o filho em uma carreira tradicional? Entre os militares, João acabou na cozinha como assistente do cozinheiro principal. Um dia, acabou substituindo-o num evento para o comando da Marinha. Fez bem, passou a cozinhar exclusivamente para o comando da regional e foi incentivado pelo comandante a continuar estudando. Para João, esse foi um dos mestres que impulsionaram sua trajetória. Lembro de já ter escrito uma coluna por aqui apontando que aprendiz é aquele que conseguiu pular várias catracas e conviver diretamente com um mestre. João teve uma rede de mestres, que cumpriram papéis de impulsionar sua trajetória. Os estudos de desenvolvimento de diminuição das desigualdades deveriam incorporar a análise de redes como um dos elementos principais para a mobilidade social.
Conseguiu o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) e cursou gastronomia da Universidade Estácio de Sá. Depois de “muita ralação” para concluir o curso, a França entrou na sua vida. Menos de um mês antes de partir, trocou alguns ensinamentos de cozinha por aulas de francês com uma professora aqui no Rio de Janeiro. Sabendo apenas o básico da língua, foi estagiar nos restaurantes estrelados de Alain Ducasse, chef reconhecido como uma das maiores autoridades da cozinha francesa contemporânea, que um dia perguntou se o trabalho estava duro. João lembra da resposta até hoje:
— Vindo de onde eu venho, tá tranquilo!
Na volta ao Brasil, João ficou sabendo que Ducasse cozinharia para moradores de rua no Reffetorio Gastromotiva durante os Jogos Olímpicos, e esteve entre os voluntários na cozinha daquela noite. Ficou envaidecido quando o grande mestre o reconheceu. Naquele período, trabalhou em uma das cozinhas que serviram as equipes nos jogos. Logo que terminou a temporada, foi convidado pela chef Flavia Quaresma para a equipe do restaurante. Em seguida, acabou topando o desafio, proposto por Vera Saboya, do Ateliê Culinário, que está à frente do empreendimento, de assumir a chefia executiva da cozinha. João paga, com parte do salário atual, o reembolso do Fies.
A história de João combina elementos importantes que podem ser considerados e incorporados às políticas públicas de superação de desigualdades, sobretudo em relação a jovens. Destaco três pontos: 1. Apesar da excessiva espetacularização, a gastronomia possui uma forte linha de gastronomia social, que abre redes e oportunidades para a inclusão social. Merece um estudo atento de como isso se forjou. 2. É necessária a manutenção de políticas de inclusão e reparação de desigualdades na educação formal, que permitam a entrada de jovens de origem popular no ensino superior. 3. Uma ampla rede de repercussão desses exemplos de trajetórias pessoais e coletivas deve ter visibilidade e reconhecimento social.
Encontrar jovens que, mesmo diante das condições adversas atuais do país, demonstram desejo com a vida é animador. Esse jovem, sendo de origem popular, é uma emoção ainda mais radical. João não busca o estrelato, não existe deslumbramento e alienação. João tem a consciência de que, ao começar a frequentar novos ambientes, teve que lidar com racismo e preconceito de classe. Sua resposta é a realização de um projeto social. Tem diamantes sendo lapidados na cozinha! Seu projeto oferece aulas sobre fundamentos da gastronomia em parceria com uma ONG, onde estudam jovens e adultos das comunidades da grande Tijuca. Seus parceiros da cozinha do restaurante são professores voluntários no projeto social. João mantém a tradição “responsa” daqueles que vêm de origem popular e atuam em suas comunidades para desenvolvê-las. A mãe sempre apoiou João. Saiu da Bahia com ela e a irmã, depois de se separar do pai, para tentar uma vida melhor no Rio. Hoje, João tem uma filha e está noivo. Enquanto escrevo esta coluna, imagino sua mãe olhando para o mar, para a Baía de Guanabara, enquanto experimenta a comida do filho ch
Objetivo do órgão, que está liderado por alguém que nega as mudanças climáticas, é facilitar a desregulamentação do setor
WASHINGTON — A Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês)
dos Estados Unidos começou a trocar cientistas por representantes das
empresas poluidoras em seus conselhos, segundo informou nesta
segunda-feira o “New York Times”. Ao menos cinco substituições na Junta
de Conselheiros da agência já ocorreram na sexta-feira e servem para,
segundo a agência, acelerar o processo de desregulamentação do setor e
reduzir sua pesquisa acadêmica. Desde que Donald Trump assumiu a Casa
Branca, em janeiro, a EPA é administrada por Scott Pruitt, que nega a
existência das mudanças climáticas causadas pelo homem.
— Devemos ter pessoas neste conselho que entendam o impacto das
regulamentações sobre a comunidade — disse ao jornal americano JP
Freire, porta-voz da agência, que ainda não indicou os nomes para as
vagas dos cientistas. — A nova gama de candidatos ao conselho será o
mais ampla possível, para incluir universidades e setores que
normalmente não são representadas (na EPA).
No lugar de cientistas — que tiveram seus mandatos concluídos e que
não serão renovados —, a agência determinou que sejam alocados pessoas
próximas da indústria do petróleo, gás natural e carvão, justamente as
que mais sofrem com as normas da EPA por serem os setores mais poluentes
do mundo. Uma das principais promessas de campanha de Trump era
desfazer regulamentações ambientais criadas no governo de Barack Obama.
Este é um ponto onde o governo republicano tem tido mais sucesso.
Desde que tomou posse, Trump aprovou projetos polêmicos, como a
construção de um oleoduto em áreas protegidas e indígenas e a permissão
para novos projetos energéticos de carvão, o modelo mais poluente que
existe e cujas novas plantas estavam virtualmente banidas dos EUA.
Pruitt, como primeiro ato frente à EPA, visitou uma mina de carvão e
disse que queria ver esta indústria restabelecida nos EUA. E, em sua
gestão, diversos textos científicos sobre o aquecimento global foram
retirados do site da agência.
Além disso, a EPA é a agência que deve ter o maior corte orçamentário
no governo Trump e sua atuação poderá ser reduzida em 40%. A forte ação
de Trump contra questões ambientais tem sido um dos principais pontos
de enfrentamento a seu governo. Nas últimas semanas diversas
manifestações e marchas ocorreram em todo o país em favor da ciência e
pelo planeta.
De acordo com o “ Washington Post”, os cientistas que não tiveram
seus mandatos renovados foram pegos de surpresa. De acordo com o jornal,
les receberam, em janeiro - ainda durante a administração de Barack
Obama - a informação de que teriam seus mandatos renovados por mais três
anos e tiveram, já no governo Trump, a confirmação disso. Eles integram
um grupo que revisa estudos sobre o impacto do carbono nas mudanças
climáticas, algo negado pelo novo diretor da agëncia e contestado por
Trump.
- Fiquei um pouco chocado ao receber esta notícia - disse Robert
Richardson, conselheiro afastado e professor do Departamento de
Sustentabilidade da Comunidade da Universidade Estadual de Michigan ao
“Washington Post”. - Nunca ouvi falar de nenhuma circunstância em que
alguém não cumpriu dois mandatos consecutivos. Isso gera grande
preocupação de que a ciência objetiva esteja sendo marginalizada neste
governo.
RIO - Com o bigode sempre aparado, FF, apelido de Felipe Farias, gostava de jogar bola no Inferno Verde, área do Complexo do Alemão onde foi criado por sua família. Participava de uma manifestação que pedia paz na favela ao ser atingido por uma bala na cabeça. Sonhava ser militar. Gustavo Silva perdeu a mãe ainda criança. Aprendeu a se virar desde cedo, trabalhando como ajudante de padeiro. Estava a caminho do trabalho às 6h, num dia de feriado, quando foi atingido também na cabeça. Caiu morto na porta da loja de roupas Bunker, na Alvorada, onde havia comprado uma camisa dias antes. Sonhava viajar pelo mundo. Paulo Henrique, rei das bolas de gude no beco onde vivia, no Cruzeiro, tinha apenas 6 anos no fim de 2010, quando 2,7 mil policiais e militares ocuparam o complexo onde ele nasceu. Pouco depois de completar 13 anos, um policial lhe acertou um cascudo forte por não gostar de vê-lo correr. O menino engoliu o choro e passou a abaixar a cabeça diante de policiais para não apanhar de novo. Enquanto caminhava para a casa de um amigo, onde jogaria videogame, foi atingido por um tiro na barriga. Perdeu o baço e o fígado, passou por duas cirurgias no Hospital Salgado Filho, mas não resistiu. Despediu-se da vida na terça-feira passada.
Paulo Henrique, Felipe e Gustavo, de 13, 16 e 17 anos, respectivamente, não se conheciam, mas tinham ao menos quatro coisas em comum. Eram jovens, foram criados no Alemão e morreram baleados na mesma semana, vítimas da guerra instaurada no Complexo do Alemão desde que a Polícia Militar decidiu instalar uma torre blindada no Largo do Samba, na Nova Brasília. Também foram enterrados no mesmo cemitério, em Inhaúma. Outras três pessoas morreram nos últimos dias no Complexo do Alemão: Bruno de Souza, de 24 anos, atingido em casa por um tiro de fuzil na perna quando aproveitava um dia de folga com sua família; Marcos Paulo Silva de Oliveira, de 15 anos, apontado pela Polícia Militar como traficante; e também uma senhora, de nome não identificado, que se assustou com o barulho dos tiros, teve uma parada cardíaca em casa e, ao cair, bateu a cabeça. Segundo dados do Censo das Favelas, feito pelo governo do estado nas comunidades que receberiam investimentos do PAC, o Alemão tem aproximadamente 100 mil moradores, embora associações locais afirmem ser o dobro. Desses, 28% — quase 30 mil — são jovens de 15 a 29 anos, grupo mais vulnerável nas estatísticas brutais de homicídio no Brasil, onde mais de 50% das vítimas são dessa faixa etária. Apenas no Estado do Rio, em média, 2 mil jovens são assassinados por ano — mais de cinco por dia.
“Velhos momentos, grande saudade, eternas lembranças”, dizia a faixa carregada por dois adolescentes no enterro de Felipe Farias, na tarde de sexta-feira, no cemitério de Inhaúma. O caixão ainda estava aberto e havia ao menos 200 pessoas ao redor, a maioria amigos da escola e da vizinhança. Quando o caixão foi fechado, uma catarse tomou conta de quem estava perto. Um dos jovens tentou se jogar na cova, dizendo “volta, FF”. Outro repetia um pedido: “Bora pra praça, FF, bora jogar bola com a gente”. Um terceiro clamava por justiça: “É meu quinto enterro este ano, cadê a justiça?”. Na saída da cerimônia, o grupo de amigos se deparou com uma viatura da PM, estacionada na calçada do cemitério. Dois garotos apontaram para os policiais um fuzil imaginário. Um deles disse:
— A sorte desses vermes é que não sou bandido, mas nessas horas dá vontade de ser.
REVISTA POLICIAL ATÉ DEUNIFORME ESCOLAR
Na Avenida Central do Alemão, numa subida íngreme, três crianças brincavam com o celular da mãe de um deles enquanto, em casa, era preparado um churrasco. Seu Elias, motorista de caminhão e antigo morador da comunidade, descia com a caçamba de seu veículo lotada — era mais uma família deixando a favela para fugir da guerra. Logo em frente, dois policiais ocupavam irregularmente a laje de uma residência por ordem do major Leonardo Zuma, que insiste em manter os locais ocupados. Na quinta-feira da semana passada, o Tribunal de Justiça ordenou que a tropa saísse. Em um projeto social, do outro lado da rua, jovens conversavam sobre o que fazer durante um tiroteio: uma aula desnecessária no lugar onde todos aprendem muito cedo como agir em conflito.
— Meu irmão tem três anos de idade. Esta semana, ensinei a ele o que fazer quando os tiros começarem. Deitamos todos no chão, eu, ele e nosso irmão mais velho, de 20 anos, que tem autismo. Nunca usei drogas, nunca me envolvi com nada errado. Mas, quando eu passo, a polícia me vê como bandido. Já tive que tirar o uniforme escolar e esvaziar a mochila — desabafa Malcon Ozório, de 18 anos, nascido e criado no Alemão.
Estudante de turismo no curso técnico da Faetec, Malcon lembra de sua favela sendo visitada por turistas do mundo inteiro. Só a artista e produtora cultural Mariluce Souza chegava a levar 200 pessoas por dia em passeios de teleférico pelas 14 comunidades de lá. Isso acabou. O teleférico está parado há seis meses, suas estações viraram pontos isolados de policiamento e visitantes são uma espécie em extinção por ali.
Quem morre deixa marcas nas pessoas: nos muros, há pichações em homenagem aos que se foram. “Eduardo não será esquecido”, diz uma delas, sobre o menino Eduardo de Jesus, morto em 2015 com um tiro de fuzil na cabeça numa ação policial. No Cruzeiro, o pequeno Bryan, de 10 anos, veste uma camisa em que está escrito “Elaine vive”. É uma lembrança do enterro de Elaine Cristina, de 35 anos, atingida por uma bala perdida que deixou três filhos. Bryan conta que nunca perdeu ninguém de sua família para a violência, mas já se despediu de dois amigos em sua breve existência: além de Elaine, Paulo Henrique, de 13 anos.
— Era meu vizinho. A gente brincava muito, principalmente de bolinha de gude — conta. Há crianças que brincam de tiroteio nos becos das favelas. Elas colam estacas de madeira para transformá-las em armas de brinquedo. Esse tipo de brincadeira, recorrente em outros lugares da cidade, não era vista há muito tempo. Voltou com os confrontos.
— As crianças veem e fazem igual — afirma o fotógrafo Bruno Itan, de 28 anos, idealizador do curso de fotografia Olhar Complexo, que vai formar em breve sua primeira turma, sendo 12 crianças e 27 adultos. — Quero ensinar as crianças o sentimento que a fotografia desperta, e dar a elas a referência de uma profissão.
Sonhando com uma vida melhor nesse cenário sírio, com tiros de fuzil e granadas explodindo na porta de suas casas, os jovens do Alemão perderam um ponto de apoio que ajudou a dar esperança para muitos e até mesmo a tirar pessoas do tráfico: o programa Caminho Melhor Jovem, que atendeu seis mil adolescentes de 15 comunidades da cidade, mas foi paralisado há dois meses. Quem não estudava conseguiu voltar para a escola com ajuda do projeto. Os que não trabalhavam eram encaminhados para cursos ou para um emprego. Foi assim com Hector Santos, de 20 anos. Apesar disso, ele já apanhou da polícia, a caminho de uma festa. Ao perguntar o que fizera para levar pontapés, recebeu uma resposta seca: “Nada, por isso mesmo está apanhando”. Sua casa foi revistada tantas vezes que sua mãe desistiu de arrumá-la.
— Eles sempre entravam com cachorros e bagunçavam tudo, procurando drogas. Minha mãe cansou — diz.
Hector conhecia Felipe, Paulo Henrique e também Caio de Moraes, assassinado aos 20 com um tiro no peito, há dois anos, crime atribuído a um PM da UPP Nova Brasília. Os assassinatos fizeram toda a sua geração perder a pouca esperança que retornara com a pacificação. Quando ele e seus amigos são indagados sobre o que sonham para o futuro, a resposta é uníssona: ver o Alemão em paz.
A violência no campo foi recorde em 2016, de acordo com relatório da
Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgado no último dia 17. Foram 1.079
ocorrências de conflito por terra, o número mais elevado desde que a
Pastoral iniciou o levantamento, em 1985. Houve um aumento de 40% em
relação a 2015, ano com 771 ocorrências. Entre os registros de 2016
estão 61 assassinatos, crescimento de 22% no comparativo com o ano
anterior. Nos últimos 25 anos, o número de assassinatos só foi maior em
2003, quando 73 homicídios foram registrados.
Ocorrências de conflito referem-se a situações em que houve alguma
forma de violência contra a pessoa - assassinatos, tentativas de
assassinato, ameaças de morte, prisão, tortura - ou contra a ocupação e a
posse de terras - expulsão, despejo, tentativas ou ameaças de expulsão
ou despejo, bens destruídos ou pistolagem.
A chacina de Colniza, município no noroeste de Mato Grosso, no último
dia 20, quando nove pessoas foram assassinadas em um assentamento
localizado em uma área de disputa por terras, é um indicativo de que a
situação não deve ser diferente ao longo deste ano.
— Estamos percebendo que 2017 pode ser pior. Na mesma semana em que
se lamenta Eldorado do Carajás, a gente tem o massacre na região de
Colniza — afirmou o padre Paulo César Moreira, integrante da coordenação
nacional da Comissão Pastoral da Terra.
Em 17 de abril de 1996, 19 militantes do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) foram assassinados em Eldorado do Carajás, no
sudeste do Pará, em um confronto com a Polícia Militar.
De acordo com o relatório "Conflitos no Campo: Brasil 2016", Rondônia
foi o estado que mais assassinou e que mais prendeu. Lá foram
registrados 21 dos 61 assassinatos e 88 das 228 prisões efetuadas no
país.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra, dos 61 assassinatos registrados
em 2016, 58 foram decorrentes de conflitos por terra, dois de conflitos
pela água e um de conflitos trabalhistas no campo. Desses homicídios,
16 foram de jovens entre 15 e 29 anos, 13 de indígenas, seis de mulheres
e quatro de quilombolas.
Já o número de pessoas presas teve um aumento de 185%, indo de 80, em
2015, para 228 em 2016. Do total de prisões, mais de 80% foram na
região Norte.
Além de Rondônia, o levantamento também destaca Tocantins, onde os
conflitos por terra aumentaram 313% em comparação com o ano anterior,
passando de 24 ocorrências, em 2015, para 99 em 2016. O estado está na
principal divisa agrícola nacional, conhecida como Matopiba, acrônimo
formado com as sílabas iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins,
Piauí e Bahia.
Tanto Paulo César Moreira, da CPT, quanto o geógrafo Marco Antônio
Mitidiero Júnior, que é professor da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), citam o histórico de impunidade como um dos principais motivos
para a violência no campo.
— Uma coisa é certa para aqueles que cometem violência no campo:
raramente eles vão ser punidos. Três exemplos dessa impunidade são o
massacre de Corumbiara, o de Eldorado do Carajás e a morte que chocou o
mundo da freira Dorothy Stang — alerta Mitidiero Júnior.
O massacre de Corumbiara (RO) aconteceu em 1995, durante a
desocupação da fazenda Santa Elina. Morreram 12 pessoas, sendo nove
assentados, dois militares e um homem não identificado. Já a missionária
Dorothy Stang, que defendia os direitos de pequenos produtores rurais,
foi assassinada em 2005, em Anapu (PA).
A Ouvidoria Agrária Nacional, vinculada ao Ministério do
Desenvolvimento Agrário, afirmou, por meio de sua assessoria de
imprensa, que a disputa pela posse da terra não é a única causa de
conflitos no país. "O desmatamento e as queimadas ilegais, a exploração
irregular de recursos naturais, o trabalho análogo ao escravo e a
ausência de regularização das posses e ocupações em diversas regiões
contribuem para as disputas no campo", disse o órgão, em nota.
Segundo a Ouvidoria Agrária Nacional, o trabalho de mediação,
prevenção e combate a todas as formas de violência no campo deve
envolver "diversas esferas do poder público federal e estadual, seja do
Executivo, do Legislativo e do Judiciário". O órgão disse ainda
considerar fundamental a instalação de mais núcleos especializados na
área agrária nas polícias Civis e Militares, Promotorias, Defensorias e
Tribunais de Justiça nos estados.
O decreto que criou a Ouvidoria Agrária Nacional, em 2009, diz que
entre suas competências estão: promover gestões junto a representantes
do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra) e de outras entidades relacionadas
com o tema, visando à resolução de tensões e conflitos sociais no
campo.