por Marcus Faustini
No próximo domingo, João Augusto levará sua mãe para almoçar num restaurante especial. Mais uma história de Dia das Mães? João Augusto, conhecido como João Diamante, é um jovem negro de 24 anos, morador da Divineia, no complexo do Andaraí, que assumiu há pouco tempo a cozinha do recém-inaugurado restaurante do Museu do Amanhã. Sua mãe vai comer o menu preparado pelo filho. É a primeira vez que a mãe fará isso. João teve uma longa jornada para chegar até esse momento. Sua história combina elementos centrais que ensinam sobre superação de desigualdades: esforço pessoal, redes, projetos e políticas de inclusão.
João começou a trabalhar aos 9 anos ajudando um padeiro. Afirma que nunca foi um aluno exemplar na escola, mas deixou as estatísticas de evasão escolar para trás, conseguiu terminar o ensino médio — que persiste em ser um funil para jovens negros e pobres. Entrou para a Marinha. A mãe, Dona Elildes, empregada doméstica, ficou mais tranquila. Qual mãe de origem popular que não se acalma ao ver o filho em uma carreira tradicional? Entre os militares, João acabou na cozinha como assistente do cozinheiro principal. Um dia, acabou substituindo-o num evento para o comando da Marinha. Fez bem, passou a cozinhar exclusivamente para o comando da regional e foi incentivado pelo comandante a continuar estudando. Para João, esse foi um dos mestres que impulsionaram sua trajetória. Lembro de já ter escrito uma coluna por aqui apontando que aprendiz é aquele que conseguiu pular várias catracas e conviver diretamente com um mestre. João teve uma rede de mestres, que cumpriram papéis de impulsionar sua trajetória. Os estudos de desenvolvimento de diminuição das desigualdades deveriam incorporar a análise de redes como um dos elementos principais para a mobilidade social.
Conseguiu o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) e cursou gastronomia da Universidade Estácio de Sá. Depois de “muita ralação” para concluir o curso, a França entrou na sua vida. Menos de um mês antes de partir, trocou alguns ensinamentos de cozinha por aulas de francês com uma professora aqui no Rio de Janeiro. Sabendo apenas o básico da língua, foi estagiar nos restaurantes estrelados de Alain Ducasse, chef reconhecido como uma das maiores autoridades da cozinha francesa contemporânea, que um dia perguntou se o trabalho estava duro. João lembra da resposta até hoje:
— Vindo de onde eu venho, tá tranquilo!
Na volta ao Brasil, João ficou sabendo que Ducasse cozinharia para moradores de rua no Reffetorio Gastromotiva durante os Jogos Olímpicos, e esteve entre os voluntários na cozinha daquela noite. Ficou envaidecido quando o grande mestre o reconheceu. Naquele período, trabalhou em uma das cozinhas que serviram as equipes nos jogos. Logo que terminou a temporada, foi convidado pela chef Flavia Quaresma para a equipe do restaurante. Em seguida, acabou topando o desafio, proposto por Vera Saboya, do Ateliê Culinário, que está à frente do empreendimento, de assumir a chefia executiva da cozinha. João paga, com parte do salário atual, o reembolso do Fies.
A história de João combina elementos importantes que podem ser considerados e incorporados às políticas públicas de superação de desigualdades, sobretudo em relação a jovens. Destaco três pontos: 1. Apesar da excessiva espetacularização, a gastronomia possui uma forte linha de gastronomia social, que abre redes e oportunidades para a inclusão social. Merece um estudo atento de como isso se forjou. 2. É necessária a manutenção de políticas de inclusão e reparação de desigualdades na educação formal, que permitam a entrada de jovens de origem popular no ensino superior. 3. Uma ampla rede de repercussão desses exemplos de trajetórias pessoais e coletivas deve ter visibilidade e reconhecimento social.
Encontrar jovens que, mesmo diante das condições adversas atuais do país, demonstram desejo com a vida é animador. Esse jovem, sendo de origem popular, é uma emoção ainda mais radical. João não busca o estrelato, não existe deslumbramento e alienação. João tem a consciência de que, ao começar a frequentar novos ambientes, teve que lidar com racismo e preconceito de classe. Sua resposta é a realização de um projeto social. Tem diamantes sendo lapidados na cozinha! Seu projeto oferece aulas sobre fundamentos da gastronomia em parceria com uma ONG, onde estudam jovens e adultos das comunidades da grande Tijuca. Seus parceiros da cozinha do restaurante são professores voluntários no projeto social. João mantém a tradição “responsa” daqueles que vêm de origem popular e atuam em suas comunidades para desenvolvê-las. A mãe sempre apoiou João. Saiu da Bahia com ela e a irmã, depois de se separar do pai, para tentar uma vida melhor no Rio. Hoje, João tem uma filha e está noivo. Enquanto escrevo esta coluna, imagino sua mãe olhando para o mar, para a Baía de Guanabara, enquanto experimenta a comida do filho ch
O GLOBO, maio de 2017
João começou a trabalhar aos 9 anos ajudando um padeiro. Afirma que nunca foi um aluno exemplar na escola, mas deixou as estatísticas de evasão escolar para trás, conseguiu terminar o ensino médio — que persiste em ser um funil para jovens negros e pobres. Entrou para a Marinha. A mãe, Dona Elildes, empregada doméstica, ficou mais tranquila. Qual mãe de origem popular que não se acalma ao ver o filho em uma carreira tradicional? Entre os militares, João acabou na cozinha como assistente do cozinheiro principal. Um dia, acabou substituindo-o num evento para o comando da Marinha. Fez bem, passou a cozinhar exclusivamente para o comando da regional e foi incentivado pelo comandante a continuar estudando. Para João, esse foi um dos mestres que impulsionaram sua trajetória. Lembro de já ter escrito uma coluna por aqui apontando que aprendiz é aquele que conseguiu pular várias catracas e conviver diretamente com um mestre. João teve uma rede de mestres, que cumpriram papéis de impulsionar sua trajetória. Os estudos de desenvolvimento de diminuição das desigualdades deveriam incorporar a análise de redes como um dos elementos principais para a mobilidade social.
Conseguiu o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) e cursou gastronomia da Universidade Estácio de Sá. Depois de “muita ralação” para concluir o curso, a França entrou na sua vida. Menos de um mês antes de partir, trocou alguns ensinamentos de cozinha por aulas de francês com uma professora aqui no Rio de Janeiro. Sabendo apenas o básico da língua, foi estagiar nos restaurantes estrelados de Alain Ducasse, chef reconhecido como uma das maiores autoridades da cozinha francesa contemporânea, que um dia perguntou se o trabalho estava duro. João lembra da resposta até hoje:
— Vindo de onde eu venho, tá tranquilo!
Na volta ao Brasil, João ficou sabendo que Ducasse cozinharia para moradores de rua no Reffetorio Gastromotiva durante os Jogos Olímpicos, e esteve entre os voluntários na cozinha daquela noite. Ficou envaidecido quando o grande mestre o reconheceu. Naquele período, trabalhou em uma das cozinhas que serviram as equipes nos jogos. Logo que terminou a temporada, foi convidado pela chef Flavia Quaresma para a equipe do restaurante. Em seguida, acabou topando o desafio, proposto por Vera Saboya, do Ateliê Culinário, que está à frente do empreendimento, de assumir a chefia executiva da cozinha. João paga, com parte do salário atual, o reembolso do Fies.
A história de João combina elementos importantes que podem ser considerados e incorporados às políticas públicas de superação de desigualdades, sobretudo em relação a jovens. Destaco três pontos: 1. Apesar da excessiva espetacularização, a gastronomia possui uma forte linha de gastronomia social, que abre redes e oportunidades para a inclusão social. Merece um estudo atento de como isso se forjou. 2. É necessária a manutenção de políticas de inclusão e reparação de desigualdades na educação formal, que permitam a entrada de jovens de origem popular no ensino superior. 3. Uma ampla rede de repercussão desses exemplos de trajetórias pessoais e coletivas deve ter visibilidade e reconhecimento social.
Encontrar jovens que, mesmo diante das condições adversas atuais do país, demonstram desejo com a vida é animador. Esse jovem, sendo de origem popular, é uma emoção ainda mais radical. João não busca o estrelato, não existe deslumbramento e alienação. João tem a consciência de que, ao começar a frequentar novos ambientes, teve que lidar com racismo e preconceito de classe. Sua resposta é a realização de um projeto social. Tem diamantes sendo lapidados na cozinha! Seu projeto oferece aulas sobre fundamentos da gastronomia em parceria com uma ONG, onde estudam jovens e adultos das comunidades da grande Tijuca. Seus parceiros da cozinha do restaurante são professores voluntários no projeto social. João mantém a tradição “responsa” daqueles que vêm de origem popular e atuam em suas comunidades para desenvolvê-las. A mãe sempre apoiou João. Saiu da Bahia com ela e a irmã, depois de se separar do pai, para tentar uma vida melhor no Rio. Hoje, João tem uma filha e está noivo. Enquanto escrevo esta coluna, imagino sua mãe olhando para o mar, para a Baía de Guanabara, enquanto experimenta a comida do filho ch
O GLOBO, maio de 2017
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