Fred Coelho
Não se destrói a força de uma universidade e de seus profissionais impunemente
O tema desta coluna é repetido. E é justamente sua repetição que precisa envergonhar a todos nós. A permanente destruição do estado do Rio de Janeiro pelos seus administradores continua deixando milhares de pessoas com seus salários e suas aposentadorias divididos em parcelas indecentes. A situação dramática de vidas pelas ruas fluminenses é imensurável. O que vem acontecendo nos últimos meses não é um simples erro de contabilidade, uma burrice orçamentária ou um “acidente” (no linguajar do atual ocupante do Planalto).
Duas situações escandalosas e ilustrativas ocorrem lado a lado e com a mesma origem: o governo estadual. De um lado, inacreditavelmente, uma das maiores universidades do país segue sendo esvaziada em sua potência, exaurida em sua capacidade de luta, abandonada em sua infraestrutura. O que vem ocorrendo com a Uerj é inaceitável em qualquer lugar, mas principalmente em um país cujos fatos recentes chocam pelo grau de brutalidade, violência, desprezo pela vida e pelo pensamento crítico. Destruir uma universidade é destruir um país. É como inserir no organismo social uma espécie de vírus inoculado cujo resultado futuro será uma metástase terminal. Ainda se faz necessário lembrar que a Uerj é fundamental para a população carioca e fluminense, desde suas salas de aula preenchidas por professores que apostaram na educação pública e gratuita como missão de vida, até seus hospitais, ginásios, teatros, serviços e uma série de funções que uma universidade como ela oferece.
Do outro lado da rua, o Maracanã e sua inacreditável saga de incompetência e corrupção em cima de um dos espaços mais emblemáticos do futebol mundial. Qualquer administração minimamente voltada para o bem público e com a força de um esporte de massa como esse teria feito do estádio um epicentro de vida, como foi aliás por longos anos nas décadas de 1960 até meados dos anos 1990. Atualmente, além de reformas infinitas e repetidas, o custo absurdo de R$1,3 bilhão gastos para a Olimpíada e o seu estado atual de precariedade prestes a se iniciar o campeonato carioca é mais do que um escárnio com a população. Todos sabem que quando as famosas delações das empreiteiras forem reveladas, a respeito das obras do estádio, veremos alguns nomes que já estão presos e outros ainda em com canetas em punho.
E não podemos jamais nos esquecer de que foi ali, em 2013, por conta da Aldeia Maracanã (antigo Museu do Índio) e da tentativa no mínimo lamentável de acabarem com a Escola Municipal Friedenreich que o Rio de Janeiro riscou um dos fósforos dos protestos populares que marcariam o resto do ano no país. Hoje, após a promessa de uma reforma e sua transformação no Centro de Referência da Cultura Indígena, o prédio do antigo museu continua abandonado. Já a escola, que seria derrubada para fazer um estacionamento, foi a melhor colocada no Ideb das escolas públicas da cidade para os anos iniciais do ensino fundamental. Abandono e superação, duas palavras que caminham juntas demais para o carioca nesse momento.
É portanto emblemático que o Maracanã seja em frente à Uerj e perto da Aldeia Maracanã. Outrora espaço intenso na cidade, a imensidão em frente à Mangueira, perto da Quinta da Boa Vista e da Praça da Bandeira, hoje é um grande vazio. A situação calamitosa da universidade atravessou todo o ano de 2016 e, mesmo assim, os professores deliberaram internamente a oscilação entre a greve como direito legítimo mediante o não recebimento dos vencimentos, as ocupações por parte dos alunos e o cumprimento dos períodos, mesmo com o calendário prejudicado. O esforço comunitário dos seus profissionais faz do caso da Uerj um emblema do que poderá ser em breve a realidade de inúmeros segmentos do país.
O que choca, além de toda a destruição, é a ideia de que funcionários de outros segmentos são mais merecedores dos seus salários do que professores universitários, bolsistas, pessoas cujos valores são irrisórios perto dos vencimentos dos poderes que legislam sobre suas vidas — e as quebram sem punição. Por que neste país, até hoje, ser professor é uma profissão de fé, e se for público então, praticamente uma opção de sacerdócio? Se soubessem a carga infinita de funções e burocracias curriculares de um professor universitário de excelência no Brasil, jamais veríamos pessoas chamarem de vagabundos ou baderneiros aqueles que fazem greve por receber no início do seu ano uma parcela de menos de R$300,00 referente ao pagamento de novembro. E creiam: a amplíssima maioria desses professores trabalha para atingir tal excelência.
A situação da Uerj tinha que ser manchete de jornais diariamente. O silêncio ao redor alimenta frustrações, estraçalha futuros e interrompe saberes. Não se destrói a força de uma universidade e de seus profissionais impunemente. Todos pagaremos por isso. Aliás, já estamos pagando — e da pior maneira possível.
O GLOBO, JANEIRO DE 2017
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