June 21, 2009

Vigilância virtual permanente

Quem insistir em baixar músicas e filmes pode ficar fora da rede. O projeto de lei (PL 5.361/09) apresentado pelo deputado Bispo Gê Tenuta, do DEM, tem o intuito de regular o acesso a conteúdos na internet. O deputado propõe que se estabeleça um regime de vigilância constante por parte dos provedores. Ficando, assim, a cargo deles notificar o usuário diante de supostas infrações ao direito autoral. O projeto indica penalidades ao internauta e até mesmo a suspensão do acesso à rede daqueles que insistirem em continuar fazendo download de arquivos protegidos pela lei do direito autoral. E a punição não precisa de ordem de juiz, ficando sob a responsabilidade do provedor.


Projeto pode engessar a rede

Marília Maciel

PROFESSORA DA FGV

O projeto de lei 5.361/09 foi explicitamente inspirado na lei francesa "Création et internet", ou Lei Sarkozy, aprovada pela Assembléia Nacional, em maio. O modelo importado pelo deputado brasileiro, entretanto, foi mal aceito no país de origem. A Corte Constitucional francesa declarou inconstitucionais alguns dispositivos da Lei Sarkozy, afirmou que qualquer restrição ao acesso dos indivíduos à internet deve ser determinada por ordem judicial e reconheceu que o acesso à internet é um direito fundamental. Este último posicionamento foi igualmente adotado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da Europa.

O PL do bispo Gê Tenuta concede ao provedor, e não ao Judiciário, o poder de notificar e impor sanções, desrespeitando o direito à privacidade e a presunção de inocência previstos no artigo 5º da Constituição Federal. O acesso à internet é condição sine qua non para o exercício do direito à informação e à comunicação, pré-requisito de uma vivência cidadã plena. Esse direito não pode ser afastado, a não ser por pronunciamento judicial.

Um outro modelo de resposta gradual, atualmente em estudo no Reino Unido, foi apresentado no documento Digital Britain, que sugere como penalidade pelo acesso a obras protegidas a diminuição da velocidade de conexão do usuário. Esse modelo também representa uma restrição ao acesso à internet, pois impede que o indivíduo utilize os recursos da rede com plenitude. Uma conexão de alta velocidade possibilita o fácil acesso a conteúdos multimídia, viabiliza o uso de aplicações de telefonia através da internet (voip), possibilita o ensino à distância e o uso da rede voltado à prática da medicina e do governo eletrônico.

Além de apresentar problemas jurídicos graves, o PL do Bispo Gê Tenuta é incongruente, pois cria um regime legal mais restritivo para os conteúdos online. No primeiro artigo, punem-se as condutas de baixar, fazer o download ou compartilhar arquivo com obra protegida pelo direito autoral. Isso demonstra um desconhecimento do funcionamento da rede, pois para ter contato com qualquer página da internet (ler essa página na tela) é preciso baixá-la, ainda que temporariamente, ou seja, é preciso compartilhar esse conteúdo com o usuário. Por conseguinte, o impedimento do ato de compartilhar na rede pode restringir o próprio acesso à informação.

Outras objeções importantes podem ser levantadas. A identificação do suposto infrator se dá através do IP, número atribuído a cada computador que acessa a rede. Sabe-se, entretanto, que esse é um meio extremamente falho de identificação: o dono do IP nem sempre é a mesma pessoa que estava à frente da tela no momento da alegada infração. Ademais, de acordo com o PL, o usuário será obrigado a pagar as mensalidades ao provedor durante o período em que o serviço não estiver sendo prestado, o que contraria a legislação de defesa do consumidor e as regras de concorrência, pois cria um regime artificial de fidelização do usuário nesse período. O montante de recursos de que o indivíduo dispõe para pagar pelo acesso à internet fica comprometido, o que dificulta a contratação de um outro provedor.

O PL é uma prova de que para regular eficazmente é preciso conhecer o objeto sobre o qual se deseja fazer incidir a legislação. Além de infringir direitos fundamentais, o projeto semeia o engessamento da internet e pode fazer definhar uma das maiores revoluções sociais das últimas décadas: a cultura colaborativa que floresce na rede.


A proposta representa um disparate jurídico

Guilherme Carboni

DOUTOR EM DIREITO CIVIL

OPL 5361/2009 representa um disparate jurídico em matéria de regulação de direitos autorais na internet. Com a justificativa de que o direito à propriedade intelectual estaria sendo "progressivamente vilipendiado com a disseminação das chamadas redes de compartilhamento de arquivos da internet", o projeto é sintomático da crise que acometeu os direitos autorais, especialmente com o advento das redes e da tecnologia digital. As tentativas de aplicação à internet de alguns conceitos de direito autoral utilizados para as obras não-digitais vêm se tornando completamente inócuas. Basta ver o que vem ocorrendo com os mecanismos anticópia, como forma de proteção tecnológica da reprodução de obras digitais: as próprias gravadoras têm reconhecido que esse não seria o melhor caminho e, por essa razão, vêm buscando alternativas de comercialização de obras musicais, tendo a internet como uma aliada, em vez de uma inimiga.

Outro aspecto dessa crise diz respeito ao fato de as leis de direitos autorais ainda não terem atingido um almejado balanceamento entre o interesse privado do autor pela proteção de sua obra e o interesse da coletividade pela sua livre utilização em determinadas circunstâncias, especialmente quando o seu uso é privado e sem intuito de lucro, que é o que ocorre na maior parte das vezes quando alguém baixa ou compartilha um arquivo pela internet.

Além disso, há uma completa ilusão de se tentar estabelecer diferentes penalidades para a prática de baixar ou compartilhar arquivos na até a sua quarta reincidência. Isso porque, para a grande maioria da população, não apenas ocorrerá a quarta reincidência, mas também a milésima, uma vez que, com o desenvolvimento tecnológico que propiciou o aparecimento das redes, o simples envio de um e-mail contendo um texto escrito por uma outra pessoa já é suficiente para caracterizar uma reprodução não autorizada e, portanto, uma violação de direitos autorais, por mais absurdo que isso possa parecer.

A atual Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98) permite a reprodução de pequenos trechos de obras protegidas. Na forma como está redigido o projeto de lei, o provedor não teria como verificar se o que o internauta está baixando ou compartilhando, de fato, é integral ou um pequeno trecho. Portanto, deixar para o provedor a decisão de privar alguém do acesso à internet, no caso de uma quarta reincidência, representa um total desrespeito ao princípio constitucional do devido processo legal, segundo o qual ninguém será privado da sua liberdade sem que haja uma sentença condenatória.

JB, Domingo, 21 de Junho de 2009 - 00:00


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