July 6, 2017

A tempestade da razão




Washington Fajardo

O Rio de Janeiro sempre sofrerá com chuvas. É a nossa neve. Mas isso não quer dizer que não possamos viver com ela. Existem ações de curto prazo para lidar com eventos extremos. E necessários planos de maior tempo de implementação. Ambos não podem ser negligenciados.

A ação da natureza destrói teses sobre planejamento urbano e expõe incompetência administrativa. Se mais observadores fôssemos da nossa própria realidade, mais soluções poderíamos encontrar para enfrentar a convivência com esses fenômenos. Muitas vezes importamos modelos e desconsideramos o fator humano.

A cidade que nos cerca é uma construção de acúmulo histórico, que nos ilude com seu devir. Queríamos ser europeus, depois tentamos ser norte-americanos, e esses desejos por modelos importados de cidade, às vezes mais, às vezes menos sensíveis ao nosso clima, criaram modos de construir, de pavimentar, de harmonizar urbanização e natureza.

Seguindo tendência mundial, e já com certo atraso, visto o histórico de fatalidades, a prefeitura do Rio construiu e preparou um Centro de Operações dedicado a monitorar a cidade e fornecer dados para a tomada de decisões. Tão importante quanto a tecnologia de ponta é a mesa onde se sentam os responsáveis pela gestão. Esse contato direto entre técnicos e líderes tem a função de acelerar decisões e criar ação. Vidas podem ser perdidas numa omissão da administração pública. Informação sobre eventos meteorológicos precisa ser compartilhada com a população. São fatos científicos que precisam de fatos administrativos. Ignorá-los é obscurantismo. É ameaça à segurança.

As chuvas dos últimos dois dias mostraram claramente que não há plano de resiliência ou tecnologia de cidade inteligente que resista a gente burra.

Por isso termos como resiliência, smart city, big data, economia circular, que tem função clara de democratizar conhecimentos sobre sustentabilidade para o grande público, me parece que muitas vezes criam muito marketing e pouco senso crítico sobre sua importância e a necessidade de manter compromisso com práticas cotidianas. E, pior, parece que viraram conteúdos político-partidários. Assim refutar um protocolo de ação para uma metrópole tropical como o Rio vira birra de um governo contra o outro. Sair do Acordo de Paris vira uma mesquinharia da administração Trump contra o governo Obama.

Aspectos científicos sobre o mundo atual podem ser deturpados ao bel prazer da onda conservadora atual. Tenho então um desejo a confessar. Anseio pela recusa à lei da gravitação universal. Poder flutuar pelo ar deve ser um grande prazer. Poderia votar em quem conseguisse revogar essa lei imposta pelo maldito Newton. O problema será a Terra caindo no Sol, os oceanos dissolvendo-se no espaço sideral e o ar escapando da atmosfera, enquanto a Lua cai sobre nós. Mesmo assim, talvez valha poder descolar-se do chão por alguns segundos.

O curioso é que esse desejo mórbido pela ilusão, por uma mística capaz de inventar outras realidades parece ser uma marca da nossa época. Negar mudanças climáticas, não usar o espaço de operações quando urgente e necessário, investir em campeões nacionais, dar amplo espaço e proteção à Joesley Batista, colocar um Cristo Redentor de posto de gasolina de beira de estrada na Orla de Copacabana, são na verdade, uma mesma ordem de loucura.

Voltando à ciência, a China, de clima temperado, consumiu em três anos, de 2011 a 2013, mais cimento que os Estados Unidos em todo o século XX, segundo a agência científica estado-unidense USGS. Em 2016, mais de 300 pessoas morreram em enchentes na bacia do rio Yangtze. Não é a toa o compromisso do governo chinês com a agenda das mudanças climáticas.

De todas as grandes metrópoles tropicais do futuro, nenhuma delas possui uma floresta dentro da sua mancha urbana. Portanto deveria o Rio ser lugar de invenção de soluções para o mundo e não da simples importação de modelos.

O reflorestamento, a arborização urbana, os tetos verdes têm função estratégica de retardar a vazão da chuva. Quanto mais a água acessa diretamente o solo impermeável maior a necessidade de grandes redes de drenagem. Tornar mais permeáveis os solos, as calçadas, as ruas, assim como renaturalizar leitos fluviais e proteger corpos hídricos são ações fundamentais. E planejar a escala territorial maior, a partir das bacias hidrográficas, controlando expansões e ocupações indesejáveis, como em direção às Vargens e Guaratiba, por exemplo. Essas são decisões que também não podem ser iludidas.

A chuva é nossa companheira fatal, castigando os mais vulneráveis e mais pobres. Diminuir sua importância, fazer pouco caso, é uma fuga da razã


O GLOBO, JUNHO 2017



July 4, 2017

PM vendia drogas em boca de fumo de São Gonçalo, diz inquérito



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Reforço. Um ônibus da PM leva soldados para a tropa do batalhão de São Gonçalo, que ficou com aproximadamente 15% de seu efetivo atrás das grades - Fabiano Rocha / Agência O Globo

Um usuário de drogas chega à boca de fumo de uma favela de São Gonçalo, à luz do dia, e vê um policial militar fardado no local. Ele hesita por alguns segundos, acredita que está ocorrendo uma operação, mas, logo em seguida, é surpreendido pelo PM, que manda o dependente químico se aproximar e ainda oferece entorpecentes. O viciado aceita: “Me dá uma de 20”. A resposta, provavelmente, é uma referência a pedras de crack. A cena inusitada está descrita no inquérito da Operação Calabar, da Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo (DHNSG) e do Ministério Público estadual (MP-RJ), que culminou na prisão, até sexta-feira, de 82 dos 96 policiais militares do 7º BPM (São Gonçalo) denunciados por corrupção passiva e organização criminosa.
 — O viciado desconstrói a imagem de agente da lei e enxerga ali o bandido, o que realmente ele é: um criminoso travestido de policial. Essa relação tão próxima entre agentes da lei e traficantes nos impressionou, uma relação promíscua. Eles são sócios — comentou o delegado assistente Marcus Amim, da DHNSG, um dos responsáveis pela investigação.

USUÁRIO É PRESO POR TRÁFICO

De acordo com o inquérito, antes de o viciado comprar a droga, os policiais tinham tomado a boca de fumo dos traficantes. Os PMs, por algumas horas, trocaram de lugar com os bandidos para ganhar dinheiro com as vendas.

— Essa imagem é danosa para a sociedade. Os moradores, que não têm muita perspectiva nestes bolsões de pobreza, passam a ver essas cenas absurdas como uma relação normal. As crianças crescem neste ambiente achando que a venda de drogas é a única forma de ascensão social — comentou o delegado.

As mais de 200 mil gravações feitas durante as investigações da Calabar também revelam que os PMs denunciados pelo MP-RJ vendiam armas para traficantes e parcelavam o pagamento. Em uma das escutas, um policial negocia pistolas 9mm com um bandido: “E aquela nove lá que você falou em duas vezes?”. O PM pergunta: “Tá interessado?”. O criminoso tenta adquirir mais armas a prazo: “Tô interessado. Seis em duas vezes que tu falou”. Como quer fechar o negócio, o policial responde: “Faço, pra você eu faço, pô”.

O comando da PM vai reforçar o efetivo do batalhão de São Gonçalo com militares lotados em Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Todos os alvos da Calabar são praças e foram lotados no 7º BPM entre 2014 e 2016. Os acusados de corrupção representam cerca de 15% dos quadros da unidade, composta por pouco mais de 700 homens. De acordo com a investigação, semanalmente eles recebiam cerca de R$ 250 mil de propina do tráfico. Segundo a Polícia Civil, essa é a maior operação de combate à corrupção policial já feita no Estado do Rio.

Ainda segundo a DHNSG, uma das práticas dos PMs era combinar com os traficantes para fazer falsas apreensões de drogas. Quando iam ao ponto de encontro na favela, costumavam abordar usuários que eram levados para a delegacia como sendo os donos do material. Na unidade, os detidos acabavam autuados por tráfico. Essa atitude incomodava os responsáveis pelas bocas de fumo, mas os policiais alegavam que eram cobrados pelo comando do batalhão para bater as metas exigidas pela Secretaria de Segurança, referentes a prisões e apreensões de armas e drogas.

Por meio das escutas telefônicas, a delegacia identificou o caso de um usuário que foi preso no ano passado por policiais investigados, e acabou condenado pela Justiça por tráfico de drogas. De acordo com o delegado, será pedida uma revisão criminal do caso, para que ele responda por uso de entorpecentes.

Entre os 96 policiais denunciados, alguns têm posição de destaque na quadrilha, como o sargento André Luiz de Oliveira Sodré, o Sobrancelhudo, que comandou o Grupo de Ações Táticas do batalhão de São Gonçalo. Ele chegou a ganhar, em 2015, o prêmio “O Policial do Ano” concedido por um jornal de São Paulo a quem se destaca em suas funções. Outro alvo, o sargento Wainer Teixeira Júnior, foi candidato a vereador de Maricá pelo PTB, em 2016, mas não foi eleito. Na sua declaração de bens, disse que tinha apenas uma casa em Inoã, de R$ 100 mil. Segundo investigadores, sua foto ilustra cartazes em estabelecimentos da cidade. Segundo o titular da DHNSG, Fábio Barucke, os policiais militares, juntos, têm mais de 250 autos de resistência.

June 23, 2017

Temporais castigam o Rio pelo menos uma vez por ano, desde o século XIX


Dado faz parte de pesquisa inédita da UFRJ. Autoridades sempre deram justificativas para a falta de soluções


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June 21, 2017

Voltamos aos tempos da escravidão, quando ferro reprimia desobediência


luís francisco carvalho filho



Ao tatuarem a testa de um adolescente com a inscrição "eu sou ladrão e vacilão", em São Bernardo do Campo, depois da tentativa de furto de uma bicicleta, o país foi remetido para os tempos da escravidão, quando a marca de ferro quente era utilizada para reprimir a desobediência, ou, mais remoto ainda, para um sistema medieval de controle.


Na falta de registros escritos e para identificar o ladrão que mudava de nome ou de lugar, costumava-se marcar o seu rosto com a letra "F", símbolo da forca. Em 1612, a Lei da Reformação da Justiça determinou que, em Portugal, a marca se deslocasse para os ombros do condenado: assim o sinal da infâmia era oculto pelas vestes. Se quisesse, a pessoa poderia se "emendar".


É uma longa trajetória até o surgimento dos boletins de vida pregressa e dos bancos de dados informatizados que permitem o agravamento das penas no caso de reincidência e maus antecedentes.

Além da violência física, da tortura propriamente dita, o surpreendente gesto de vingança privada no ABC teve o significado de alertar para o perigo que o rapaz supostamente representaria, servindo também para cobri-lo de perpétua vergonha. Por isso, a tentativa de destruir sua face.


Machista, inadequada e extemporânea: é o que se pode dizer da sentença que "indenizou" Fernanda Young por ataques sofridos na internet. Para fixar e reduzir o valor pecuniário da condenação, o juiz levou em conta não os parâmetros normais de aferição do dano moral, mas o fato de a vítima ter posado nua e ter, na percepção do julgador, uma "reputação elástica".


Ao declará-la mais suscetível que outras ao desrespeito, ao assédio e à ofensa, a Justiça paulista fez reviver o superado dogma da "mulher honesta". A expressão fazia parte da definição de crimes sexuais do Código Penal e dele foi expurgada em 2009, um legado da causa feminista.


Mas a mulher ainda é desmerecida pelos seus hábitos, pelo seu comportamento e pela imagem ideal e subjetiva dos outros.


Com negros é a mesma coisa. Em pleno século 21, estão mais sujeitos ao preconceito, à desconfiança, à revista policial, à prisão, ao assassinato. As estatísticas são desconcertantes.


O Atlas da Violência, recentemente divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Aplicada), com dados do Ministério da Saúde, informa que a possibilidade de um negro ser assassinado é 23,5% maior que a de pessoas de outra raça. A taxa de homicídios (por 100 mil habitantes de negros) subiu mais de 18% entre 2005 e 2015 enquanto a mortalidade de não negros teve redução de 12,2%. A taxa de homicídios de mulheres negras aumentou 22% no mesmo período.


Segundo relatório da Defensoria Pública do Rio, um preso branco tem 30% a mais de chance que um negro de ser libertado na audiência judicial de custódia realizada logo após a prisão em flagrante. A maioria da população carcerária (mais de 60%) é formada por negros e pardos.


Para onde se olha brilha o viés racista. Aqui, nos Estados Unidos, na Europa, no Oriente.


A aparência é a parcela visível de uma pessoa, de uma coisa, de uma instituição. Se muitas vezes é capaz de revelar com precisão a própria realidade, pode também mascará-la e deformá-la. Além de patrocinar injustiças.

FOLHA, JUNHO 2017 


O ódio



Marcus Faustini

Uma recente matéria do site The Outline mostra o crescimento de perfis nazistas na web a partir de uma pesquisa feita no Twitter. Esses perfis possuem mais adesões do que a militância virtual do Estado Islâmico. É mais uma das faces da cultura de ódio pelo outro, influenciando o cotidiano da vida e da política. Como o ódio vem prevalecendo como estética num ambiente que era a promessa de um mundo diverso e conectado? É possível uma mudança de rumo? Talvez a resposta esteja fora da rede.

As redes sociais, que já foram festejadas como um ambiente que promoveria o interesse pelo outro, portador de alternativas para o bem comum e aumento da presença da diversidade no mundo, num oposto, sustenta e multiplica a existência de comunidades odiosas e abusivas, que não se contentam apenas com seus círculos de adeptos e perseguem aqueles que querem destruir — não são poucos os casos de hordas de homens misóginos que atacam sistematicamente mulheres online, desconstroem reputações, promovem fake news, racismo, fascismo, linchamentos etc. Para isso, essa indústria do ódio cria robôs, comunidades e perfis fakes de propagação.

Trump foi a expressão máxima no mundo da política dessa estética do ódio. Surfou nessa onda, deixando robusta sua candidatura, canalizando rancores, recalques e preconceitos potencializados pela situação de rebaixamento da classe média branca do meio-oeste norte-americano. Trump, em entrevistas e debates, para reforçar o laço emocional com a estética do ódio, performou com agressividade. Para essa estética, o debate ou qualquer possibilidade de fala é apenas um lugar de exaltação raivosa das suas visões. Vale dizer que esse fenômeno revela muito sobre outras esferas do tempo em que vivemos, em que até mesmo a música pop tem como base letras que sempre falam de alguém que usa de jactância e autoglorificação para se afirmar.

O Twitter já sofreu pressões e mudou aspectos da experiência da navegação para frear a presença de grupos de ódio. Mas esbarra em reclamações de que a contundência com que fecha perfis adeptos do Estado Islâmico não é a mesma com que fecha perfis nazi ou fascistas ligados a uma cultura branca. No Brasil, a presença do ódio como motor de engajamento nas redes sociais já foi experimentada em diversas situações: de incentivo a formas de linchamento de quem comete delitos até a polarização agressiva na política que embalou o processo de impeachment, envolvendo uma parte significativa da sociedade na crença de que o único demônio da política era Dilma — taí, deu no que deu!

A presença desse ódio é um dos componentes da bipolaridade que marca os embates atuais. Fábio Malini, professor da Universidade Federal do Espirito Santo (Ufes), um dos poucos pesquisadores profícuos de comportamentos das redes sociais, aponta que o próximo pleito eleitoral tende a ter um componente de ódio como motor da polarização. “O continente americano, em sua maioria, é muito alicerçado num poder central, o que beneficia a polarização.” Quanto mais centralizadora a forma de governo, mais espaço às polarizações e para a estética do ódio prevalecer como núcleo duro de mobilização da atenção de eleitores. Essa polarização ganha como alvo as minorias que foram beneficiadas por programas de inclusão, enfatiza Malini, em breve conversa que tivemos online.

Não será uma outra estética nas redes que irá desconstruir o ódio, apenas. É preciso que o online não seja a única centralidade da expressão política e da vida. Para tanto, um outro ambiente de ação política se faz necessário. E, talvez, deva ter um peso offline maior do que o online. Nestes dias passados aqui em Londres para mais uma jornada de trabalho, foi possível ver que, além de uma militância em redes sociais, a campanha de Corbyn e dos outros candidatos do Partido Trabalhista foi se reinventando a partir de ações bairro a bairro, porta a porta. Muitos candidatos ao parlamento cresceram nos distritos por terem priorizado a relação comunitária. O Podemos, na Espanha, também conseguiu se projetar com uma vasta rede em bairros, com seus círculos e confluências. Malini afirma que a Europa, já tendo experimentado o gosto amargo da austeridade, começa a produzir saídas. O vínculo entre as políticas de austeridade e a cultura do ódio começa a mostrar que não é um bom caminho para a sociedade. Mas foi necessário falar das questões reais da vida, de porta em porta, para essa mudança aparecer.

A vigilância e a denúncia ao comportamento de ódio nas redes são parte importante para forçar as empresas a atuar contra esses perfis. Porém, as ações de convivência comunitária, precisam voltar à agenda prioritária daqueles que imaginam uma sociedade mais solidária e onde o interesse pela diferença seja uma das maiores expressões. Existem caminhos no horizonte para barrar a cultura do ódio.

O GLOBO, JUNHO 2017 
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June 19, 2017

A fogueira das autoridades


Dorrit Harazim, O Globo

Difícil dizer qual a imagem mais aterradora. A maciça torre residencial envolta em labaredas, com seus 24 andares de vida interior em desespero, iluminando a noite londrina de horror, gritos, sirenes e impotência. Ou a mesma estrutura, à luz do dia, eviscerada, de pé feito túmulo silencioso. Uma assombração sombria.

Ambas também podem ser olhadas como monumento, ou ruína, da ideologia de combate a regulamentações na área de proteção social. Uma das pedras de toque dos governos neoliberais reza que normas reguladoras impedem a liberdade e prejudicam a produtividade. Na Inglaterra, um dos atrativos do Brexit foi acenar com menos normas impostas pela União Europeia, menos inspeções, mais independência para encontrar atalhos.

Três anos atrás, o ministro da Habitação, Brandon Lewis (hoje ministro da Imigração de Theresa May), rejeitou a proposta que obrigaria construtoras a instalar sprinklers anti-incêndio em futurasn edificações. Deixou ao senhorio a opção de fazê-lo ou não, e vetou a medida como parte do plano May de combate à burocracia. “Introduzimos a regra ‘entra uma, saem duas regulamentações’, segundo a qual sempre que o governo adotar uma nova norma, vamos identificar duas existentes, e extingui-las”, explicou.

O conjunto habitacional de baixa renda Grenfell Tower foi erguido em 1974 na parte pobre do Royal Borough of Kensington and Chelsea — ou seja, fora das vistas, mas não tão distante, do setor nobre do distrito onde oligarcas russos e fortunas árabes compram as propriedades (com sprinklers) mais cobiçadas.

Estima-se que nos 120 apartamentos do Grenfell moravam cerca de 600 pessoas. Não se sabe o número exato, pois formavam o típico grupo de gente de raças, origens e dificuldades variadas que pode abrigar cinco ou mais sob o mesmo teto.

Também o número de mortes continua indefinido. De início falou-se em 17, sendo os adultos que saltaram para a morte ou as crianças jogadas da janela os primeiros identificados. Nos dias seguintes, o número já havia saltado para 50, porém ainda é muito provisório. Devido à ferocidade das chamas, uma identificação a curto prazo será difícil. A procura por desaparecidos, também, pois muitos moradores falam inglês precário, temem se apresentar às autoridades. A agonia da incerteza está longe do fim.

Em torno de um dado, porém, parece haver consenso: a causa. Reformado no ano passado para retirar-lhe o visual de espigão social de concreto, e ao mesmo tempo diminuir-lhe o consumo de energia, o Grenfell teve seus dois mil metros quadrados de paredes externas revestidas com painéis de alumínio Reynobond.

Segundo o fabricante dos painéis, o modelo escolhido para a reforma era o único a conter polietileno (plástico), portanto inflamável. Cada unidade custou duas libras esterlinas (R$ 8,50) menos do que os outros dois modelos de alumínio, resistentes a fogo. Assim, pelos cálculos do “The Times” londrino, a incorporadora do edifício fez uma economia de pouco mais de £ 5 mil ao escolher um revestimento proibido nos Estados Unidos em prédios de mais de 12 metros de altura, considerados “inflamáveis” na Alemanha e causa de incêndios em quatro outros países.

Existem perto de quatro mil conjuntos habitacionais semelhantes ao Grenfell na Grã-Bretanha, dezenas deles reformados e revestidos de placas contendo plástico. Imagine-se o estado de ansiedade em que se encontra essa população de inquilinos.

Não que o sentimento de abandono e insegurança seja novo nessas habitações populares. Já em 1999 um relatório parlamentar intitulado “Potencial Risco de Disseminação de Incêndio Causado por Sistemas de Revestimento Externo” alertava para o perigo. Com sinistro presságio final: “Não desejamos que seja necessário ocorrer um incêndio de grande porte, com muitos mortos, para a adoção de medidas razoáveis visando diminuir o riscos”, concluía o levantamento de 18 anos atrás. Nada foi feito.

Em 2013, esse relatório ignorado voltou à pauta com o incêndio no conjunto habitacional Lakanal House, situado no sul de Londres. Nele haviam morrido três mulheres e três crianças. À época, a juíza Frances Kirkham recomendara a instalação de sprinklers nas moradias sociais verticais, e foi igualmente ignorada
.
Também basta entrar na página eletrônica do Grupo de Ação dos moradores de Grenfell para ver que as autoridades do distrito, a agência responsável pela manutenção do prédio, e o senhorio receberam pelo menos dez solicitações de ajuda. Tudo em vão. Com esse pano de fundo, a primeiraministra Theresa May achou prudente esquivar-se da indignação dos moradores. Foi ao local da tragédia, mas limitou seu engajamento aos bombeiros, médicos e serviços de emergência. Estava devidamente escoltada e prometeu um “inquérito profundo para apurar as responsabilidades”

Já a rainha nonagenária e o prefeito trabalhista Sadiq Khan encararam o horror mais de frente. A monarca foi levar conforto à comunidade abalada, coisa que sabe fazer como ninguém — mesmo que sejam apenas palavras. O prefeito materializou-se sem qualquer escolta, expôs-se à indignação popular e procurou responder à cobrança maior — respostas urgentes, já.

Do outro lado do Atlântico, o presidente Donald Trump acaba de nomear Lynne Patton para dirigir o Serviço Federal de Moradias Sociais de Nova York — o maior braço regional do Ministério de Habitação. Patton jamais pôs os pés em alguma moradia de baixa renda. É organizadora de eventos, sobretudo de torneios de golfe da rede Trump, e foi cerimonialista do casamento de Eric, filho caçula do presidente.

O posto estava vago desde janeiro. Para uma cidade como Nova York, onde 400 mil pessoas ocupam moradias sociais e outros 235 mil recebem subsídios no aluguel, mau sinal. Como diz o “The Guardian” em editorial, “o que é chamado de burocracia muitas vezes consiste na proteção pública essencial para a salvaguarda de vidas, do futuro e do mundo”.

Grenfell Tower em chamas (Foto: Natalie Oxford / https://twitter.com/Natalie_Oxford)  
Ilustração André Mello

June 17, 2017

June 16, 2017

Histórias que se encontram entre os moradores de rua




Sono às claras. Senhor dorme dentro de uma agência bancária na Avenida Graça Aranha, que concentra dezenas de moradores de rua durante a noite - Alexandre Cassiano / Agência O Globo

Márcio Prado, de 42 anos, é de Macaé. Vende livros e objetos reciclados nas ruas de Botafogo. A terra natal de Marcos Antônio de Oliveira, de 43, é Bom Jesus do Itabapoana, mas ele vive de bicos no Centro do Rio. Vindos do interior do estado, os dois chegaram à capital atrás das oportunidades nas obras da Olimpíada de 2016. Acabaram no sereno, sem trabalho formal. Vagam sem teto levando algumas das características mais comuns entre os moradores de rua da cidade.

De acordo com o perfil dessa população traçado pelas equipes de abordagem da Secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Márcio e Marco Antônio estão na faixa etária predominante entre os que não têm lar, dos 25 a 59 anos — que, no fim de 2016, eram 11.234 (78,67% do total). Os dois são negros, e, segundo a prefeitura, pretos e pardos somam 11.292 (79,08%) das pessoas que vivem nas ruas. Além disso, nasceram fora do município do Rio, como 6.778 (47,47%) dos que perambulam pela cidade. Alheios aos números, têm, entre si, outra coisa em comum: dizem que só voltam para casa de cabeça erguida.

— Não sou um cara que desiste, não. Acredito que dará tudo certo. Sou pedreiro, desenho, pinto... Vou arrumar trabalho. Por enquanto, meus parentes não sabem de minha situação. Não quero que eles saibam. A rua é violenta, as pessoas não se entendem bem — diz Marcos Antônio.
Márcio é da mesma opinião:

— Desde que cheguei, trabalhei numa lanchonete, num quiosque na praia e como auxiliar de obras. Vou conseguir. O mais difícil é a saudade de casa. Mas agora não vou voltar, não. Assim, humilhado, de forma alguma.

Enquanto não alcançam seus objetivos, os dois levam a vida “no corre”, o que, no linguajar das ruas, significa um trabalho informal, muitas vezes com duração de algumas horas. E sem “manguear”, ou seja, sem pedir esmolas. Mas, nesse caso, destoam da maioria. Só 17,72% (2.530) moradores de rua têm alguma ocupação. Os outros 82,28%, não.

Novato: há três meses na rua, Fabiano lê um livro deitado no chão, em Copacabana - Alexandre Cassiano / Agência O Globo

Por uma trilha parecida com a dos dois segue Fabiano de Azevedo, de 32 anos. Faz três meses que ele vive sem lar, só que por uma decisão voluntária, depois de se desentender com a família e de largar o trabalho de garçom em Maricá. Passou pelo Centro, pelo Aterro e, agora, vive nas calçadas de Copacabana. De noite, sua maloca fica nas proximidades da Praça Serzedelo Correa, onde aproveita as horas vagas para ouvir música num radinho e ler — ganhou livros de uma ONG. De dia, bem cedo, vai para a praia, onde conseguiu um bico num quiosque. Alguns dias, consegue ganhar até R$ 80.

— Assim como eu, aqui, em Copacabana, muitos moradores de rua vivem “no corre”. Não nos preocupamos com comida nem com produtos de higiene pessoal porque recebemos doações. Por isso, meu grande receio é me acostumar com a rua. Não quero. Vou juntar os trocados que ganho para tentar alugar logo um cantinho — diz Fabiano.

EM CADA BAIRRO, CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS

De fato, ter alguma ocupação é um dos aspectos que marcam a população de rua do bairro, afirma Jonathan Marques, coordenador da equipe de abordagem especializada da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. Há anos tentando convencer grupos a irem para abrigos, ele consegue traçar uma geografia particular do Rio.

Histórias. Márcio é um dos vendedores de livros das ruas de Botafogo - Alexandre Cassiano / Agência O Globo

Normalmente, diz Jonathan, a porta de entrada de quem fica sem lar é o Centro, que concentra a maior quantidade de moradores de rua (2.638, ou 18,47% do total). Recentemente, no entanto, com o Programa Centro Presente, Jonathan afirma que houve uma migração de parte deles para bairros próximos. De forma geral, adolescentes , grande parte usuários de drogas, deslocaram-se para Botafogo e Laranjeiras. Adultos optaram por Copacabana — bairro que, no fim de 2016, ocupava o segundo lugar no ranking da população de rua, com 928 pessoas (6,5% do total).
Número de moradores de 
Ainda na Zona Sul, a Glória costuma concentrar aqueles que vendem objetos nas calçadas. Na Zona Oeste, eles procuram pontos movimentados como a rodoviária de Campo Grande e o calçadão de Bangu. Na Zona Norte, o entorno de bairros como Madureira, Jacaré e Bonsucesso concentra usuários de drogas, principalmente nas proximidades de favelas que vendem crack.

As drogas também são o maior problema da população de rua na Zona Portuária e na Lapa. Em Cascadura, a principal questão é o alcoolismo. Entre os que falam sobre o assunto, as justificativas para o vício variam muito, porém boa parte afirma que o consumo é uma forma de amenizar a fome, o frio e a tristeza. No levantamento da secretaria, 76,77% (10.962 pessoas) declararam utilizar algum tipo de substância, lícita ou não. Cachaça é a mais comum. Maconha, cocaína, tíner e crack também aparecem na lista.

Mulher dorme sentada em ponto de ônibus de Copacabana - Alexandre Cassiano / Agência O Globo

ABRIGO PARA GRÁVIDAS
Foi justamente para abrigar usuárias de drogas grávidas ou que tiveram filhos recentemente que a prefeitura inaugurou, na semana passada, um abrigo em Campinho. Erika Alves Mendonça, de 36 anos e no sexto mês de gestação, foi a primeira a chegar. Antes, viveu uma trajetória de turbulências. Aos 17 anos, caiu no vício. Iniciou com a maconha; depois, o álcool e a cocaína. As desavenças com o padrasto pioraram tudo. E assim começaram as estadas na rua. Teve quatro filhos, nenhum deles criado por ela. Foi abusada sexualmente duas vezes. A última passagem ao relento completaria um ano este mês: dormia em frente ao Hospital Souza Aguiar, no Centro.
— Não desejo uma gravidez na rua nem para um cachorro. Sofri todo tipo de preconceito. As pessoas me chamavam de mendiga e cracuda porque hoje em dia, para a sociedade, todo mundo que dorme na calçada é viciado em crack — diz Erika, cuja família vive no Morro da Formiga, na Tijuca. — O mais difícil é voltar para casa. Bate a vergonha dos parentes e dos vizinhos.

Secretária municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Teresa Bergher reconhece a dificuldade de lidar com a questão. Ela defende que não adianta a prefeitura acolher essa população sem inseri-la socialmente e no mercado de trabalho. Teresa diz que vem buscando parcerias para a capacitação dos abrigados. Além disso, ressalta a retomada de um programa que patrocina a volta à terra natal daqueles que quiserem (este ano, 60 pessoas foram beneficiadas). Ela vem fazendo mudanças na estrutura da secretaria, como as abordagens na rua sempre acompanhadas por assistentes sociais, mas admite haver problemas e afirma que encontrou uma rede de abrigos em péssimas condições.

— Realmente, ficou defasado o número de abrigos e de funcionários quando se tem um aumento tão absurdo na população de rua. No entanto, vale lembrar que quantidade não é sinônimo de qualidade. Desde o início da nossa gestão, estamos investindo na capacitação dos agentes — garante a secretária.

JOVENS NAS RUAS

Um bom trabalho social pode ser o divisor de águas na vida de todos, sobretudo das 129 crianças e dos 396 adolescentes que vivem nas ruas, segundo a estimativa da prefeitura. Pode ajudar jovens como Rafaela dos Santos, de 19 anos, e Lucas Mendes, de 20, a darem uma guinada. Ambos vivem nas ruas e têm o sonho de se tornarem cantores. Ela, na adolescência, passou por vários abrigos da cidade. Agora, depois de completar 18 anos, dorme nas imediações da Praça da Cruz Vermelha. Ele saiu de casa, na comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, há um ano, depois de uma briga com a família. Dorme nas esquinas de Ipanema, onde conseguiu trabalho numa banca de jornais. Ainda lembra dos detalhes de seu primeiro dia na rua.

— Quando cheguei ao Rio, fui a Copacabana, deitei na areia da praia e pensei se conseguiria ter o que comer no dia seguinte. Eu ainda me preocupo com isso porque não nasci para roubar nem para traficar. Mas tenho um trabalho e componho minhas músicas. Um dia vou chegar lá.

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June 15, 2017

A noite, o chão e mais nada: um perfil da crescente população de rua do Rio



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June 13, 2017

Refugiados da Violência: Moradores de comunidades conflagradas no Rio se mudam


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RIO - Uma cama desmontada, uma geladeira velha, uma televisão com prestações atrasadas. Em cima do sofá de dois lugares, desfiado por um gato de estimação, uma cômoda e um colchão de viúvo. Tudo empilhado na caçamba de um caminhão, junto a caixas que guardam roupas, livros e coisas difíceis de abandonar, como um vestido com o cheiro da mulher falecida e fotografias da vida toda. O homem de cabelos brancos vai embora da Cidade Alta sem intenção de voltar.

Um êxodo silencioso se pôs em marcha na cidade. São pessoas que estão deixando suas casas, muitas vezes na favela onde nasceram, para fugir da violência. Em cada beco onde o terror virou rotina, postes e paredes estão tomados de anúncios de “vende-se” e “aluga-se”, com uma observação recorrente: “aceito proposta”.

Foi na semana passada que o aposentado empacotou tudo que tinha e se mudou da Cidade Alta para o interior do estado. Deixou para trás um apartamento de dois quartos na Rua Ponto Chique em um prédio de cinco andares cravejado de balas. Nas paredes do edifício, leem-se pichações religiosas com dizeres como “até aqui nos ajudou o Senhor”, feitas a mando da facção dominante, bandidos que se dizem “o exército do Deus vivo”. No último episódio da guerra entre traficantes no conjunto habitacional de Cordovil, dois tiros entraram na sala do aposentado, um deles na altura de sua cabeça.
 
— Quando seus vizinhos começam a se trancar em casa, é hora de partir — diz o senhor, que não pode se identificar por ainda ter parentes na região. —Minha casa valia R$ 120 mil há poucos anos. Hoje, as pessoas querem pagar R$ 40 mil. Minha vontade era continuar, mas estou ficando deprimido. Meu filho me implorou para sair.

CASAS VAZIAS

O medo que o tirou de casa se espalha. Segundo dados do Fogo Cruzado, aplicativo da Anistia Internacional que contabiliza confrontos, foram notificados 87 na Região Metropolitana do Rio apenas na primeira semana de maio, uma média de 12 por dia. Nesse período, 25 pessoas morreram baleadas — 3,5 por dia — e 18 ficaram feridas. Entre janeiro e abril, a Anistia informou 1.493 tiroteios e uma média diária de quatro mortos (488 no total).

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Quem sai de casa alega que a causa principal é a falta de segurança. Mas não é o único motivo: o desemprego também castiga a capital do estado, que perdeu sozinha 80% dos 64 mil postos de trabalho fechados no Brasil no primeiro trimestre deste ano. Ainda não existem dados ou pesquisas sobre quantas pessoas se mudaram e para que lugar foram, mas basta entrar numa favela em que os tiros sejam frequentes para ver o sobe e desce de caminhões, especialmente nos fins de semana.
Retirada forçada. Um dia depois de guerra do tráfico, no início do mês, mulheres vão embora da Cidade Alta, em Cordovil, com a roupa do corpo e algumas poucas bolsas - Fabiano Rocha / Fabiano Rocha
Com braços largos e tatuados que saltam para fora da camisa regata, o caminhoneiro Maurilan Cordeiro olha desconfiado para um de seus três ajudantes. Pergunta se há “algum problema”. O outro resmunga que torceu o pé. “Se quiser pode ir embora, te pago metade do combinado”, responde, sem olhar para o funcionário. Era o primeiro serviço naquele dia e, depois, eles teriam mais um. Há 20 anos no mundo dos fretes, Maurilan anota quantas mudanças faz na Cidade Alta. Nos últimos três meses, foram 96. Algumas famílias foram para bairros próximos e não precisaram trocar as crianças de escola. Outras se mudaram para São Paulo, Belo Horizonte, Vitória, Salvador, Corumbá... Todas saíram em busca de paz.

— O que mais tem aqui é casa vazia. Tenho feito de cinco a dez mudanças por semana. O movimento aumentou uns 200% este ano — conta Maurilan, chamado por muitos de Murilão.

Ele cobra R$ 300 por um frete até o Centro. Até Jacarepaguá, são R$ 800 e, para São Paulo, R$ 1.600.

— Trabalho muito, mas com tristeza. Cada mudança tem uma história. Às vezes, a pessoa acaba num lugar pior, depois volta. Esta semana mesmo vou trazer uma moça que saiu daqui para a Ilha do Governador e foi assaltada quatro vezes em dois meses. Mas, a cada um que volta, dez vão embora.

E se cada mudança tem uma história, cada história, um drama. O de uma secretária de 30 anos nascida e criada no Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, narra a esperança de quem acreditava na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Mas ela viu uma boca de fumo ser instalada na porta de sua casa, com sessões de tortura em ladrões no meio da noite. Há pouco tempo, quando voltava para casa com seu filho de 8 anos, um dos bandidos cismou que ela estava filmando a boca. Os traficantes olharam todas as fotos e vídeos do celular.


— Tem criança de 9 anos entre os bandidos. Meu filho já estava sabendo o calibre das armas pelo som do tiro. Fiquei com medo do que poderia acontecer com ele, já perdi um irmão que virou traficante — conta a secretária, que trabalha no Leblon e conseguiu alugar um conjugado na Cruzada São Sebastião por cerca de mil reais. — Aqui tem tráfico também, mas nem parece: em um mês, ainda não ouvimos tiro algum.

ROTINA ALTERADA

Mudar não é fácil. O filho da secretária ainda não contou aos amigos do morro o motivo que o levou a sair: tem vergonha de dizer que foi por causa da violência, afinal de contas, os colegas continuam lá. Quando soube do conjugado na Cruzada, no fim de março, a mãe pensou que havia elevador no prédio. Mas são apenas escadas nos dez blocos de 945 apartamentos, com edifícios de seis andares. Eles moram no último.

O comportamento das pessoas também é diferente daquele que a pequena família de duas pessoas estava acostumada. No morro, uma única bola de futebol faz a alegria de 50 crianças. No asfalto, o menino só conseguiu jogar depois que a mãe comprou uma redonda para ele. Apaixonado por futebol, em breve o garoto começará a treinar na Associação Atlética Banco do Brasil (AABB), clube na Lagoa que tem a saída dos fundos voltada para a Cruzada São Sebastião.

— Eu descia o morro com medo, tinha que ser muito rápido, porque o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) entrava na favela quando estávamos indo para a escola. Chorei quando minha mãe falou que íamos sair. Tenho sete amigos no morro. Aqui, por enquanto, só tenho um — conta o menino, antes de dizer que está de castigo por ter jogado bola até a noite na semana passada.

Rotina de tiroteios no Complexo do Alemão

  • Janela virou parede de tijolos após chegada dos PMsFoto: Fabiano Rocha em 23/02/2017 / Agência O Globo

  • Moradores se queixam de que policiais estão ocupando casasFoto: Fabiano Rocha em 23/02/2017 / Agência O Globo

  • Moradores do Complexo do Alemão dizem que os policiais estão baseados nas casasFoto: Fabiano Rocha em 23/02/2017 / Agência O Globo

  • Desde fevereiro, homens da UPP vêm usando residências como postos de observaçãoFoto: Fabiano Rocha em 23/02/2017 / Agência O Globo

  • Marcas de tiros em parede de casaFoto: Fabiano Rocha em 23/02/2017 / Agência O Globo

  • Tiros atravessaram parede de casa na Praça do Samba, na Nova Brasília, no Complexo do AlemãoFoto: Fabiano Rocha em 23/02/2017 / Agência O Globo


Em estado de guerra desde fevereiro — quando teve início a polêmica instalação de uma torre blindada na Praça do Samba, região da Alvorada, que terminou com dez mortos em uma semana —, o Complexo do Alemão certamente é uma das regiões da cidade de onde mais pessoas foram embora. A vendedora X. morava na Rua 2, onde os tiros são tão intensos que o dono de uma padaria construiu um bloco de concreto na porta, espécie de bunker improvisado que as balas já destruíram.

— Minha casa era a mais perfurada da rua. Eu não tinha a opção de morar fora da favela. Depois que me casei, meu marido e eu viemos para a Estrada Velha da Pavuna. Quando tem tiroteio no Alemão, escuto de longe. Minha mãe me liga sempre que os tiros começam. Ela tem vontade de sair também, mas mora junto com meus três irmãos. Seria impossível pagar uma casa no asfalto — afirma X., que não visita a mãe há aproximadamente um mês por causa dos confrontos quase diários entre policiais e traficantes.
 A gota d’água que a fez procurar outro lugar foi a última festa de réveillon, quando todos no Alemão estavam na rua e um intenso tiroteio começou. Os transformadores de luz explodiram com os tiros, e as pessoas ficaram no escuro, com as ruas cheias do óleo escuro que escorria dos equipamentos. Um vizinho de X. tinha acabado de reformar a casa.

— Deu pena. A casa virou uma peneira, toda cheia de furos. Naquele dia, ele perdeu micro-ondas, geladeira... Até a cama ficou repleta de buracos. Foi quando decidi ir embora — recorda.

Todos que se mudaram têm medo. Além de parentes, amigos continuam morando nas favelas, e muitos são proprietários de imóveis nos locais. Uma ex-moradora da Cidade de Deus saiu desesperada ao descobrir que o próprio filho estava começando a se envolver com o tráfico. O menino de 15 anos parou de estudar em dezembro, após repetir de ano pela segunda vez em um colégio particular de Jacarepaguá que a mãe pagava com esforço — metade de todas as faxinas do mês iam para a mensalidade escolar.

— Em casa, ficava mais na cozinha do que na sala, onde os tiros batem. Só relaxava quando meu filho chegava. Ele estava começando a se envolver, tinha virado olheiro. Tem três meses que a gente saiu, pela graça de Deus — afirma a mãe, que se mudou para uma rua de acesso a uma favela de Ricardo de Albuquerque, onde o tráfico também dá as cartas.

Até no Santa Marta, primeira favela com uma UPP instalada, em 2008, há pessoas indo embora, apesar de ainda ser grande a procura por casas na favela, no coração de Botafogo. Um produtor cultural se mudou há poucos dias por vários motivos. Entre eles, a volta do tráfico ostensivo.

— É triste ver de novo uma criança olhando os traficantes e querendo ser igual a eles. Pensei que isso iria acabar, mas me enganei — lamenta.

DE VOLTA PARA O NORDESTE

No Complexo do Alemão, ao se apresentar, Seu Elias entrega um cartão de visitas: “De volta para minha terra — mudanças interestaduais”. Nascido na Grota, uma das comunidades do conjunto de favelas, ele tem 60 anos de experiência com frete. Começou ajudando o pai, aos 10, subindo material para a construção de novas residências.

— Havia 40 casas de estuque na Grota quando eu era criança — lembra.

Nos pontos extremos do complexo, nas partes mais perigosas e de difícil acesso, só ele encara o serviço com sua carreta preta que “parece o caveirão”. Enquanto Elias dirige sem pressa pelos becos, um ajudante vai no alto do caminhão com um cabo de vassoura, erguendo o emaranhado de fios que, às vezes, acabam se rompendo no trajeto.
 
— Apesar de parecer o caveirão, todos me respeitam. Só trabalha aqui quem é conhecido da comunidade. Tem muita gente saindo, principalmente as pessoas que moram lá em cima. Muitos voltam para o Nordeste. Este ano já fui para Bahia e Pernambuco. Na semana que vem, vou para o Maranhão. Um pedreiro desistiu de tudo aqui, já mandou a família e só está terminando um serviço para ir embora — conta ele, que cobrou R$ 6 mil pelo percurso de 3 mil quilômetros. — É triste ver as pessoas partindo. A gente branqueia os cabelos e não consegue alcançar nossos objetivos nessa vida.

Ao se preparar para ir embora no caminhão de Elias, uma manicure de mudança para Rio das Ostras pede ao caminhoneiro que a espere um instante na Estrada do Itararé, onde há um bar na esquina. É hora do almoço, o lugar está cheio. Ela vai até o banheiro e para na porta, onde um amigo do morro escreveu a seguinte poesia: “A noite chegou... / Sair pra brincar / Na chuva / Sonhar em descer / A ladeira / Num barco de papel”. Ela tira uma foto do poema, se emociona e vai embora. Diz que não volta mais.