O que a psicologia, a filosofia e antropologia têm a dizer sobre o fascínio pelos
zumbis?
É o que buscaram saber o psicanalista Diego Penha e o filósofo Rodrigo Gonsalves ao reunirem os textos de “
Ensaios sobre mortos-vivos — The walking dead e outras metáforas
”. Nos textos selecionados por eles no livro, Christian Dunker, Ivan
Estevão, Lucio Reis e outros pesquisadores mergulham nos símbolos desses
monstros do além-túmulo
para falar sobre nossos medos, paranoias e mecanismos sociais. Conceitos
de pensadores como Freud e Zizek são usados para analisar filmes como
“A noite dos mortos-vivos”
e séries como
“The walkind dead”
.
Doutorando em Psicologia Clínica pela USP, Penha resumiu alguns pontos essenciais abordados no livro.
Origem na escravidão
“O surgimento dos zumbis está relacionado com a colonização do Haiti:
zumbis eram escravos que morriam e eram revividos por feiticeiros para
trabalhar de volta nas lavouras. Mesmo após a morte, esse corpo continua
eternamente escravizado. O notável é que, em 1929, quando o jornalista
americano William Seabrook vai ao Haiti e volta dizendo que viu zumbis,
essa história faz um sucesso imenso nos EUA. O discurso flertava com a
antropologia e o jornalismo, além de flertar com a xenofobia. Porque, ao
mesmo tempo que mostra um maravilhamento com o Outro, transformava esse
Outro em monstro.”
Refugiados e imigrantes
“Os gregos já usavam as narrativas para controlar a imagem do outro — o
estrangeiro, o imigrante, o diferente. Eles já falavam sobre os homens
metade cachorros, as populações com pescoços compridos, e que por serem
diferentes de nós acabam justificando nossa perfeição. Na Idade Média,
os lugares distantes eram onde habitavam os monstros. A tendência é que,
nas novas narrativas de zumbis modernos, a figura do morto-vivo vá
englobar o refugiado, o imigrante. Algo que se vê em “Guerra Mundial Z
“(2012) e até em “Game of thrones”, que tinha uma muralha para deixar os
mortos do lado de fora, impedir esse povo que quer invadir o centro. E
na mesma época em que o presidente dos EUA falava em construir um muro
contra os imigrantes.”
Monstros no armário
“Os mortos ficam no cemitério, distantes, não queremos que eles lembrem
nossa própria mortalidade. Não há sociedade que não conviva com
fantasmas do passado, com monstros no armário. Mas os mortos-vivos
insistem em não ficar enterrados. Eles voltam para abrir nossos olhos, e
o medo opera uma transformação específica de ligar com um passado de
violências que foi ignorado, obliterado, que ninguém queria lembrar.”
Diego Penha, um dos organizadores do livro 'Ensaios sobre os mortos-vivos' Foto: Divulgação / Divulgação
História dos vencidos
“Em termos de Brasil e de escravidão, em algum momento temos que
desenterrar essas ossadas e olhar para elas, perceber que, este também, é
um país construído em cima do genocídio. Por que o samba-enredo da
Mangueira este ano, que homenageou Marielle, ou o do Tuiuti no ano
passado, ofenderam tantas pessoas? São dois desfiles que repensam a
nossa história a partir das populações vencidas, e não dos vencedores. É
um retorno dos mortos-vivos, por assim dizer, que ameaça uma parcela da
população que ainda acredita na manutenção desses corpos debaixo da
terra.
‘Paranoização’ do mundo
“O filme ‘A noite dos mortos-vivos’ (1968) dá origem à forma como vemos
os zumbis hoje. É a grande influência para todo mundo, porque consegue
descrever processos que vivemos desde os anos 1960 até agora. No longa,
não se explica por que os mortos se levantam, e o vazio dessa causa
permite que os agentes sociais criem teorias mirabolantes,
conspiratórias, para explicar o fenômeno. Enquanto a invasão paranoica
vai crescendo, as pessoas vão se fechando cada vez mais, primeiro em
suas casas, depois nos porões. Aqui no Brasil, não precisamos de outros
exemplos, o discurso paranoico social e político já é uma avalanche que
cresce sem fim.”
Capa de 'Ensaio sobre mortos-vivos', organizado por Diego Penha e Rodrigo Gonsalves Foto: Divulgação
Zumbis do consumo
“Toda narrativa de zumbis já traz embutida uma crítica ao consumo. Em
‘Despertar dos mortos’ (1978), o primeiro lugar que os mortos vão ao
acordar é o shopping. O lugar mais familiar, o elo afetivo com a memória
da vida, não é a casa deles, ou a praia, etc. O shopping é o espaço
simbólico, central, em que você pode i
r sem nem se perguntar por quê. Também dá para ver os próprios shoppings como zumbis, que vão surgindo sem que a gente perceba.”
Cracolândia
“Existe um discurso que compara moradores de rua e usuários de crack a
zumbis, no sentido de dizer que ali não existe mais uma vida, que eles
são destituídos de humanidade. Isso tem apenas um objetivo, tornar as
políticas de opressão mais validadas. Quando se está lidando com
mortos-vivos, fica muito mais fácil aprovar uma operação truculenta.”
NOVA YORK — Há 11 anos um incêndio atingiu parte dos estúdios da
Universal, em Hollywood. Na época, a empresa disse que o fogo havia
destruído a atração King Kong do parque temático e um cofre com vídeos
que continha apenas cópias de obras antigas. Mas, de acordo com artigo
publicado na terça-feira pela revista do "New York Times", o incêndio
também destruiu gravações de áudio, transformando-se no que seria "o
maior desastre da história da indústria fonográfica".
O que aconteceu?
O incêndio começou na madrugada de 1º de junho de 2008. Durante a noite,
trabalhadores de manutenção usaram maçaricos para consertar o telhado
de um prédio. A construção era parte de um conjunto de edifícios de
estilo colonial que servia de cenário para filmes e programas de
televisão.
Eles seguiram o protocolo e esperaram que as telhas esfriassem antes de
sair. Pouco depois de deixarem o local, perto das 5h da manhã, porém, um
incêndio irrompeu.
As chamas alcançaram o Edifício 6.197, conhecido como cofre de vídeo,
onde estavam fitas de vídeo, bobinas de filme e, principalmente, uma
biblioteca de gravações de som de propriedade da Universal Music Group.
Centenas de bombeiros responderam ao incêndio. Depois de tentar
controlar as chamas com espuma e água retirada de um lago próximo, a
equipe de emergência decidiu desmantelar o armazém que continha o cofre
para apagar mais facilmente o fogo.
O que foi perdido?
Quase todas as gravações guardadas no cofre foram destruídas, incluindo
aquelas produzidas por alguns dos músicos mais famosos desde os anos
1940.
Em um relatório confidencial em 2009, a Universal Music Group estimou a
perda em cerca de 500 mil títulos. Entre eles estariam masters da
coleção Decca Records de Billie Holiday, Louis Armstrong, Duke
Ellington, Al Jolson, Bing Crosby, Ella Fitzgerald e Judy Garland. O
incêndio provavelmente também destruiu algumas das principais gravações
de Chuck Berry, produzidas para a Chess Records, bem como as masters de
algumas das primeiras aparições de Aretha Franklin na História.
Quase todas as masters de Buddy Holly foram perdidas, assim como a
maioria de John Coltrane na coleção da Impulse Records. O incêndio
também teria destruído inúmeros singles de sucesso, como "Rock Around
the Clock", de Bill Haley and His Comets, "At Last", de Etta James, e
"Louie Louie", do Kingsmen.
A lista de artistas afetados abrange décadas de música popular. Inclui
gravações de Ray Charles, BB King, Four Tops, Joan Baez, Neil Diamond,
Sonny e Cher, Joni Mitchell, Cat Stevens, Gladys Knight e Pips, Al
Green, Elton John, Eric Clapton, Jimmy Buffett, os Eagles, Aerosmith,
Rufus e Chaka Khan, Barry White, Patti LaBelle, Tom Petty e os
Heartbreakers, The Police, Sting, Steve Earle, REM, Janet Jackson, Guns N
'Roses, Mary J. Blige, No Doubt, Nine Inch Nails, Snoop Dogg, Nirvana,
Beck, Sheryl Crow, Tupac Shakur, Eminem e 50 Cent.
O que são gravações master e por que elas importam?
Uma master é a gravação original única de uma peça musical. É a fonte a
partir da qual outros discos de vinil, CDs, MP3s e todas as outras
gravações são feitas.
De acordo com o artigo, documentos mostram que o cofre continha décadas
de masters, incluindo gravações multifaixa nas quais instrumentos
individuais permaneciam isolados uns dos outros.
Havia também masters de sessão, incluindo gravações nunca lançadas
comercialmente. O material dentro do cofre veio de algumas das mais
importantes gravadoras de todos os tempos. Audiófilos e profissionais de
áudio veem essas gravações com especial atenção.
"Uma master é a captura mais verdadeira de uma peça de música gravada",
diz à revista Adam Block, ex-presidente da Legacy Recordings, braço de
catálogo da Sony Music Entertainment. “Cada cópia daí em diante fica a
um passo de distância.”
Por que só ficamos sabendo disso agora?
Na época, o incêndio foi notícia em todo o mundo com destaque para a
destruição do cofre. Mas a maioria dos artigos focalizou apenas nas
gravações de vídeo existentes no arquivo e, mesmo assim, os veículos de
notícias consideraram que o desastre maior havia sido evitado.
Jody Rosen, a autora do artigo, descreveu o esforço para minimizar o
alcance das perdas como um “triunfo da gestão de crises” da Universal
Music Group. Esses esforços tiveram, sem dúvida, o objetivo de minimizar
o constrangimento público, mas alguns sugerem que a empresa também
estava particularmente preocupada com a reação dos artistas e herdeiros
de artistas cujas masters haviam sido destruídas.
A extensão real da perda foi apresentada em litígios e documentos da empresa obtidos pela reportagem.
Qual a gravidade da perda?
Rosen classifica a perda como histórica e mesmo a Universal Music Group —
em mensagens privadas — descreveu o ocorrido em termos sombrios: "O que
perdemos no fogo foi, sem dúvida, uma imensa herança musical", diz um
relatório interno de 2009.
As gravadoras têm um histórico conturbado com essas gravações e são
conhecidas por destruí-las em massa. Décadas atrás, funcionários da CBS
Records teriam destruído masters com serras elétricas para vender as
bobinas como sucata de metal. Na década de 1970, a RCA perdeu masters de
Elvis Presley em meio a um material mais amplo.
Por causa desse histórico, profissionais do setor há muito tempo
questionam o comprometimento das principais gravadoras com a preservação
do que consideram
artefatos inestimáveis. Hoje, a maioria das
gravações comerciais do século passado é controlada por apenas três
gigantes da indústria fonográfica: Sony Music Entertainment, Warner
Music Group e, é claro, a Universal Music Group.
As conversas impróprias de Sergio Moro com o
procurador Deltan-Dallagnole nodoaram a Lava-Jato e fragilizaram a
condenação imposta a Lula pelo tríplex do Guarujá. Se isso fosse pouco,
apostura arrogante do ministro da horas seguintes às revelações do site
Intercepto briga muitos daqueles que gostariam de defendê-lo aficar no
papel de bobos :“Basta le roques e tem lá e verificar que ofato graveéa
invasão criminosa do celular dos procuradores”. Antes fosse. O fato
grave é ver um juiz, numa rede de papos, cobrando do Ministério Público a
realização de “operações”, oferecendo uma testemunha a um procurador,
propondo e consultando-o a respeito de estratégias.
As mensagens de Moro e de Dallagnol deram um
tom bananeiro à credibilidade da Operação Lava-Jato e mudaram o eixo do
debate nacional em torno de seus propósitos. O ministro e o procurador
reagiram como imperadores ofendidos, tocando o realejo da invasão de
privacidade. Parolagem. Dispunham de uma rede oficial e segura para
trocar mensagens e decidiram tratar de assuntos oficiais numa rede
chumbrega e privada. Noves fora essa batatada, precisam explicar o
conteúdo de suas falas. Sem explicações, a presença dos dois nos seus
cargos ofende amor aleo bom senso. No caso de Moro, ofende também a
leida gravidade. Ele entro uno governo amparando Jair Bolsonaro e agora
depende de seu amparo. Se o capitão soltar, ele cai.
Em nome de um objetivo maior, a Lava-Jato e
Moro cometeram inúmeros pecados factuais e algumas exorbitâncias, tais
como o uso das prisões preventivas como forma de pressão para levar os
acusados às delações premiadas. Como não houve réu-delator que fosse
inocente, o exorbitante tornou-se conveniente. Ao longo dos anos, Moro e
os procuradores cultivaram e, em alguns casos, manipularam a opinião
pública. Agora, precisam respeitá-la.
Uma das revelações mais tenebrosas das
mensagens é aquela em que, dias depois de divulgar o conteúdo do grampo
de uma conversa da presidente Dilma Rousseff com Lula, Moro diz :“não me
arrependo do levantamento do sigilo, era a melhor decisão, mas areação
está ruim ”.
Não houve “levantamento” mas quebra, poisa
conversa foi interceptada depois que expirara o prazo para as escutas.
Dias depois de cometera exorbitância, Moro explicou se ao ministro Te
ori Zavascki comum a argumentação desconexa, até sonsa.
A conversa de Dilma com Lula deu-se no dia 16
de março de 2016, quando eles concluíam a armação da ida do
ex-presidente para a Casa Civil.
A reportagem do Intercept informa que, às
12h44m, Moro e Dallagnol discutiram a divulgação “mesmo com a nomeação”.
Sabia-se que Dilma pretendia nomear Lula, mas o telefonema só ocorreu
às 13h22m. Às 15h27m, Dallagnol disse que sua posição era de “abrir” o
assunto, e às 18h40m ela estava no ar, detonando a manobra do
comissariado petista.
Para quem tinha esse objetivo, foi um
sucesso, mas não está combinado que juízes e procuradores se metam em
coisas desse tipo. O viés militante de Moro e Dallagnol na Lava-Jato
afasta-osdodevidoprocessolegal,aproximando-os da República do Galeão,
instalada em 1954 em cima de um Inquérito Policial Militar que desaguou
no suicídio de Getúlio Vargas.
Triste do país que deita — e dorme — em berço esplêndido, quando teve 65
mil filhos assassinados em um ano. Foi devastadora a edição 2019 do
Atlas da Violência, publicação do Ipea e do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública que deveria deixar insones autoridades e sociedade
civil, tão assombrosos são os números da epidemia homicida capturados da
base de dados do sistema de saúde. Desta vez, os 13 pesquisadores, além
de quantificarem e qualificarem a tragédia que avança sobre jovens,
negros, mulheres e LGBTIs, apresentaram gênese e desdobramentos da
expansão das facções do tráfico de drogas do Rio de Janeiro e,
sobretudo, de São Paulo, Norte e Nordeste adentro.
O Brasil experimentou em 2017 o recorde histórico de letalidade violenta
intencional. Nunca tantos brasileiros foram assassinatos, nem em
números absolutos (65.602) nem em relativos (31,6 mortos por grupo de
cem mil habitantes). Sete em cada dez mortes foram causadas por armas de
fogo, atualmente em vias de flexibilização da posse e do porte,
promessa de campanha do presidente da República. Nas últimas décadas,
nenhum governo foi capaz de pôr de pé um pacto pela redução dos
homicídios e valorização da vida. Projetos políticos que chegaram aos
palácios do Planalto e Guanabara, no caso do Rio de Janeiro, sugerem que
também não será desta vez. O discurso do grupo político dominante é
pontuado não só de justificativa, mas de exaltação ao extermínio de
criminosos — que tampouco poupa inocentes.
A violência alcança mulheres: em 2017, foram 4.936 vítimas no país, 13
por dia, o maior número em dez anos. No Rio, o ano terminou com 401
mortas. Os 13 pesquisadores, debruçados sobre os dados do sistema de
saúde, identificaram queda de 3,3% nos assassinatos fora de casa e
aumento de 17,1% no ambiente doméstico. A informação confirma a escalada
dos casos de feminicídio, tipificado em lei de 2015. Diz a publicação:
“a possibilidade de que cada vez mais cidadãos tenham uma arma de fogo
dentro de casa tende a vulnerabilizar ainda mais a vida de mulheres em
situação de violência”. É um jeito não alarmista de avisar que os
assassinatos de mulheres vão crescer.
Pela primeira vez, o Atlas da Violência se dedicou à população LGBTI,
ainda invisível à luz da produção de dados e estatísticas oficiais. Na
falta de legislação específica aprovada no Legislativo, o Supremo
Tribunal Federal já aprovou por maioria a aplicação da lei contra o
racismo nos crimes contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais, pessoas trans e intersex — falta concluir o julgamento.
Ainda assim, os pesquisadores encontraram em denúncias de violações de
direitos humanos evidências de aumento dos casos de violência contra os
LGBTIs no país. E recomendaram a criação de mecanismos de coleta e
monitoramento de dados e indicadores específicos.
Mas são jovens e negros os grupos esmagados pela violência homicida. Têm
a pele preta ou parda 75% das pessoas assassinadas no Brasil. Homicídio
é causa de morte de seis em cada dez rapazes de 15 a 19 anos, a ponto
de a publicação usar a expressão “juventude perdida”. A taxa de
homicídios na faixa de 15 a 29 anos chega a 69,9 por cem mil habitantes,
mais que o dobro da média nacional; em um ano, 35.783 perderam a vida.
No Rio de Janeiro, o índice chega a 92,6 por cem mil; no Rio Grande do
Norte, recordista, a 152,3.
O Brasil está literalmente exterminando o futuro. Estudo de 2010 do
economista Daniel Cerqueira estimou que as mortes violentas de jovens
equivaleram a 1,5% do Produto Interno Bruto. O custo social da barbárie
nossa de cada dia — expresso em perdas econômicas, gastos com seguros e
segurança privada e pública, despesas do Estado com forças policiais,
sistema de saúde e assistência — beira 6% de toda a riqueza produzida.
O mesmo país que debate a necessidade de reformar a Previdência para acomodar o desequilíbrio crescente entre otamanho
das populações ativa e inativa não se importa em enterrar milhares de
jovens em idade produtiva. Faltam políticas públicas que aplaquem a
evasão escolar aguda no ensino médio, escassez de formação profissional e
dificuldade de inserção no mercado de trabalho. O que há de sobra é
munição.
A única lancha da equipe de fiscais do Ibama percorria os entornos das
29 ilhas que formam a Estação Ecológica de Tamoios, na Baía da Ilha
Grande, no sul do estado do Rio de Janeiro, num dia do verão de 2012.
Tentava impedir que atividades humanas maculassem a área de proteção
ambiental, quando deparou com um barco praticando pesca ilegal na Ilha
da Samambaia. Ao ser abordados, os pescadores se recusaram a se
identificar. Um deles, no entanto, era conhecido: o então deputado
federal Jair Bolsonaro.
O parlamentar alegou que não havia placa indicativa da proibição. Tinha
uma vara de pescar na mão. “Eu não tinha arpão nem rede de arrastão. Só
estava pescando umas cocorocas”, justificou Bolsonaro à época, em
referência a uma espécie de peixe pequeno e abundante na região.
A Baía da Ilha Grande é a mais preservada do Estado. Seus 800
quilômetros quadrados — o equivalente à área territorial de Cingapura —
são ricos em biodiversidade Marinha. Possui sete Unidades de
Conservação. A Estação Ecológica de Tamoios é a única que abrange o
espelho d’água. É uma Unidade de Conservação federal de proteção
integral. Representa 6% da área da Baía, onde a atividade humana precisa
ser autorizada. Situada entre Angra dos Reis e Paraty, encravada no
Mosaico da Boicana, em plena Mata Atlântica, Tamoios é formada por um
conjunto de 29 ilhas, ilhotas, lajes e rochedos e seu entorno marinho. É
um paraíso habitado por espécies raras, como o boto-cinza, e peixes de
grande porte que atraem a indesejada e proibida caça submarina.
A Ilha da Samambaia, onde
Bolsonaro foi multado pescando, é uma das 29 que integram a Estação
Ecológica de Tamoios, na Baía da Ilha Grande, no sul do estado do Rio de
Janeiro. Foto: Marcelo Piu / Agência O Globo
Começava naquele verão uma batalha pessoal de Bolsonaro em favor da
pesca em Tamoios. O então parlamentar chegou a recorrer à Justiça para
que fosse autorizado a pescar ali. Afirmou que havia 15 mil pescadores
na região sendo “humilhados e proibidos de trabalhar”. Ele foi multado
em R$ 10 mil, menos da metade do salário que recebia mensalmente na
Câmara dos Deputados. Peixe grande que era, nunca mais se esqueceu do
chefe da equipe que o autuou.
O processo do Ibama que trata da multa de R$ 10 mil aplicada a Jair
Bolsonaro é um compilado sobre o estilo do político. Investido no papel
de presidente da República, Bolsonaro quer agora transformar a área de
preservação ambiental na Cancún brasileira, alterando por decreto as
regras de conservação, como anunciou no último dia 8.
“Ao ser surpreendido por fiscais, Bolsonaro disse que pescava com
vara pequena, sem arpões ou redes, mirando apenas peixes abundantes na
região. Ele alegou que não havia placas informando a proibição”
No decorrer do processo administrativo no Ibama em que tentou se livrar
da multa, Bolsonaro distorceu a informação sobre onde estava no dia em
que foi flagrado dentro de um bote; pediu investigação do fiscal do
órgão por falsa comunicação de crime; e acusou o servidor de prevaricar.
A defesa nos autos foi conduzida por três funcionários do gabinete de
seu primogênito, Flávio (PSL-RJ), os três remunerados pela Assembleia
Legislativa do Rio (Alerj) e, agora, pelo Senado.
Os assessores de Flávio, deputado estadual por quatro mandatos
consecutivos e eleito senador com 4,3 milhões de votos, advogaram pela
derrubada da multa aplicada ao chefe do clã. Eles não usaram os serviços
de nenhum escritório de advocacia — pelo contrário, forneceram como
número de contato o telefone fixo do gabinete de Flávio na Alerj. Assim
fizeram a advogada Lygia Regina de Oliveira Martan, que foi assessora
parlamentar do deputado Flávio, e o suboficial da Marinha Juraci Passos
dos Reis, que chegou a chefiar o gabinete da liderança do PSL na Alerj.
Reis foi nomeado para representar Bolsonaro no processo do Ibama, mas
seu nome não aparece no cadastro público de advogados da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB). O principal defensor no processo é o coronel
da Aeronáutica e advogado Miguel Ângelo Braga Grillo, chefe de gabinete
de Flávio na Alerj pelo menos desde 2014. Martan, Reis e Grillo foram
levados por Flávio para o Senado.
Fiscais do Ibama
fotografaram peixe morto boiando na Ilha Grande após tentar escapar de
redes e arpões de pescadores. Foto: Reprodução
Até o último dia 8, não havia no processo qualquer transferência da
defesa a outros advogados, mesmo com a eleição de Bolsonaro para a
Presidência da República e com a ida de Flávio ao Senado. A advogada
Karina Kufa disse que passou a centralizar a defesa de todos os
processos relacionados a Bolsonaro, inclusive o procedimento
administrativo no Ibama. “Desde que o presidente assumiu, os processos
estão centralizados em mim. Isso demora muito, estou esperando os
subestabelecimentos, que já foram enviados”, afirmou. Kufa foi designada
pelo gabinete de Flávio para responder aos questionamentos de ÉPOCA.
Ela não soube dizer se houve contrato de remuneração entre Bolsonaro e
os três assessores do filho. “Provavelmente o contrato é ad exitum (
quando o pagamento é feito após eventual êxito no processo
).” Os assessores não responderam se existe contrato de remuneração e se receberam algum pagamento do presidente.
O êxito já ocorreu. Bolsonaro obteve três importantes vitórias no
processo, todas elas alcançadas depois de ter sido eleito presidente.
Primeiro, o Ibama anulou a multa aplicada, revertendo uma decisão que
havia sido tomada na primeira e na segunda instância do órgão. O caso
voltou à estaca zero, com a necessidade de que seja praticamente
instruído outra vez, mais de sete anos depois do flagrante da infração
ambiental. A segunda vitória foi a constatação pelo próprio Ibama de que
o caso pode estar prescrito. Um parecer diz que a prescrição ocorreu há
mais de um ano. Um terceiro êxito ocorreu fora dos autos: o Ibama
exonerou o servidor José Olímpio Morelli do cargo de chefe do Centro de
Operações Aéreas. Morelli foi quem multou Bolsonaro na área de
preservação em Angra dos Reis. Funcionário público por 17 anos, ele
afirmou, em entrevista à Agência Pública, que seu afastamento foi uma
“vingança pessoal” do agora presidente.
Agora, o presidente pretende retirar o
status
de área de preservação da Estação Ecológica de Tamoios, onde foi flagrado com farto material de pesca.
“Procuradores investigam a anulação da multa aplicada ao hoje
presidente. O processo administrativo voltou à estaca zero e o crime
ambiental pode estar prescrito, reconheceu o Ibama”
Os defensores de Bolsonaro no Ibama têm um longo histórico político com
Flávio e com o partido da família, o PSL. Grillo é vice-presidente do
partido no Rio; Flávio é o presidente. Agora no Senado, recebe salário
de R$ 22.900. Na Alerj, o salário era semelhante. O Ministério Público
no Rio convocou o coronel da Aeronáutica a depor sobre o caso de
Fabrício Queiroz, o ex-assessor e ex-motorista de Flávio que retinha
parte dos salários do gabinete. Reis, por sua vez, é suplente da
comissão executiva do PSL no estado. Na Alerj, ganhava R$ 12.600. No
Senado, mais especificamente no escritório de apoio no Rio, recebe R$
8.900. Já Martan segue figurando como advogada de Flávio e do pai em
diversos processos, como no inquérito do “Você não merece ser
estuprada”, frase dirigida à deputada Maria do Rosário (PT-RS), no
Supremo Tribunal Federal (STF). No gabinete na Alerj, recebia quase R$
10 mil. No Senado, como assessora parlamentar, recebe R$ 22.900.
A primeira defesa de Bolsonaro no processo no Ibama foi feita por ele
mesmo. São duas páginas em que o então deputado usou a data escrita no
auto de infração como a data da infração. Ele alegou que, no dia em que
aparece no registro dos fiscais, ele havia viajado para Brasília. A
infração, porém, ocorrera dois meses antes. Ainda em 2012, o então
deputado confere a Grillo e Reis a possibilidade de o representarem nos
autos. O primeiro ato de defesa do chefe de gabinete de Flávio Bolsonaro
registrou que “o requerente cabalmente demonstrou que não se encontrava
na localidade referida no ato infracional”. E que o Ibama havia deixado
de adotar ações por mais de 90 dias para encerrar a instrução do
processo. Por fim, a defesa disse existir “confessa prática de crimes
funcionais por parte do agente autuador” e pediu a abertura de processo
administrativo disciplinar. O documento foi assinado por Bolsonaro e
Grillo.
A defesa mais consistente foi apresentada um ano depois, com assinatura
de Bolsonaro, Grillo e Martan. Eles alegaram descumprimento de prazos
legais, inconsistência de documentos anexados aos autos, incoerências de
declarações e falta de critérios na fixação de multas. “Os fatos ora
descritos deixam claro que o agente José Olímpio Morelli agiu com a
intenção deliberada de atingir o autuado e não a de exercer sua função
pública”, afirmaram, em relação ao fiscal que anos mais tarde seria
exonerado de cargo de chefia do Ibama, nos primeiros meses do governo de
quem ele multara por pesca ilegal. Bolsonaro e seus defensores pediram
na mesma peça a anulação da multa e uma investigação sobre a atuação de
Morelli “ante a confessa prática de crime de prevaricação e de outras
condutas incompatíveis efetuadas pelo agente autuador”.
José Olímpio Morelli, que
multou Bolsonaro, foi afastado de suas funções após 17 anos como
servidor público. Foto: Reprodução de vídeo
Ao anular a multa e determinar que o caso volte à estaca zero, o Ibama,
já após a eleição de Bolsonaro para a Presidência, concordou com o
argumento de que houve um cerceamento da defesa. O argumento foi
expresso num parecer da Advocacia-Geral da União (AGU). Um novo parecer,
agora da área técnica do Ibama, apontou a prescrição da infração. A
decisão caberá ao superintendente do órgão no Rio, alinhado ao ministro
do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Salles e Bolsonaro costumam repetir
que existe um “excesso de multas” por parte do Ibama e dão cabo a uma
flexibilização nas regras de fiscalização ambiental.
Bolsonaro foi flagrado dentro de um bote, com vara, material de pesca e
peixes dentro de um cesto, numa área onde a presença é proibida.
Conseguiu reverter e subverter toda a acusação formulada a partir do
flagrante, inclusive com punição ao fiscal e promoção de seus
defensores, agora servidores de confiança no gabinete do filho no
Senado.
Em março, o Ministério Público Federal em Angra dos Reis abriu um
inquérito para investigar possíveis atos de improbidade administrativa
na anulação da multa aplicada a Bolsonaro. A defesa do agora presidente
decidiu-se por uma linha menos combativa. “Antes, havia uma orientação
dos outros advogados de que ele deveria processar todo mundo. Essa não é
minha orientação”, disse a advogada Karina Kufa.
O
professor de história entra, sorridente, na sala de aula, deposita uma
pasta sobre a mesa e vai direto para o que no seu tempo de estudante
chamavam de quadro-negro e agora é verde. Sem hífen, quadro negro são
duas palavras separadas, um substantivo e um adjetivo, usadas para
qualificar uma situação ruim, que tanto pode ser a saúde periclitante de
alguém, a economia do Brasil ou apenas uma pintura de Romero Britto.
Na também chamada lousa o professor escreve, com um toco de giz, oito
números, verticalmente enfileirados: 1538, 1551, 1580, 1586, 1621,
1678, 1721 e 1723.
“Estes números são datas, anos”, explica. “Em cada um desses anos,
criou-se uma universidade na América Latina. Às vezes, duas, como
ocorreu em 1551, quando surgiram as primeiras universidades de Lima, no
Peru, e da Cidade do México, e em 1721, quando foram fundadas as
universidades de Havana, em Cuba, e Caracas, na Venezuela.” Apontando
para o ano de 1538, o professor ensina: “A primeira de todo o continente
foi construída na ilha de São Domingos, no Caribe, ao lado de Cuba”.
Aí deu uma pausa, logo retomando a lição: “Dez capitais da América
Espanhola tiveram universidades antes do Brasil. Além das citadas,
Bogotá, Quito, Santiago, Guatemala e Assunção. Quase um século depois da
última desta lista, a paraguaia, é que ganhamos nossa primeira
organização de ensino superior, a Academia Real Militar, dois anos após a
chegada da corte portuguesa ao Rio, em 1808. Ou seja, precisamos da
ajuda de Napoleão para nos livrarmos da obrigação de estudar em
Coimbra”.
Antes que algum aluno lhe perguntasse se Bonaparte financiara a
construção do pioneiro estabelecimento acadêmico real e militar, o
professor explicou: “Como vocês sabem ou deveriam saber, d. João VI e
sua corte fugiram para o Brasil por medo da invasão de Portugal pelas
tropas napoleônicas. Foi nessas circunstâncias que ganhamos nossos
primeiros cursos superiores. Mas antes de uma universidade igual às das
capitais latino-americanas vizinhas, tivemos uma academia militar e uma
escola de cirurgia, na Bahia.”
Algum aluno mais perspicaz poderia ter argumentado que, apesar da
demora no aprimoramento do ensino nestas paragens, afinal criamos
universidades de reconhecida excelência, como a USP, por exemplo, e
nenhum país do sul do continente tornou-se uma potência cultural e
científica por ter construído universidades antes de nós.
Mas como ninguém na turma levantou essas questões, ficou no ar a
impressão, não de todo equivocada, de que nossa educação nunca se
recuperou direito do atraso com que foi implantada sem a canga
jesuítica.
“Nosso atraso não se restringe ao campo do ensino”, prosseguiu o
professor. “Demoramos a tomar providências necessárias num bocado de
coisas. Somos uma nação com vocação para o atraso, uma nação atrasada.”
De volta ao quadro, o professor apagou as dez datas ali arroladas e,
no mesmo espaço, acrescentou duas: 1794 e 1888. E, já de frente para os
alunos, falou: “Poderia acrescentar mais uma dúzia de datas, pois entre
estas duas aqui quase 20 países americanos aboliram a escravidão, alguns
quase simultaneamente. Haiti deu a partida, em 1794, no bojo de uma
revolução anticolonialista e antiescravocrata deflagrada e vencida por
sua população negra. Ou seja, os haitianos não se livraram da escravidão
por um decreto lavrado pela elite branca da ilha, mas lutando por sua
independência do domínio francês”.
Enquanto dirigia o olhar de volta ao quadro, acrescentou: “A última
data se refere à nossa Lei Áurea e identifica o último país do Novo
Mundo a libertar seus escravos. Outro atraso em relação a todas as
repúblicas ao redor de nosso solitário império”.
Apagando a lousa, o professor começou a explicar por que juntara os
dois atrasos, o da educação e o do fim da escravidão. Ambos, segundo
ele, explicariam o Brasil, nosso passado e nosso presente, nosso
arraigado racismo e tantas outras mazelas.
“Um sujeito nascido na Espanha, depois naturalizado americano, George
Santayana, disse, há mais de um século, uma das frases mais bonitas e
verdadeiras que já li: ‘Um povo que não conhece sua história está
condenado a repeti-la’, frase que eu, aliás, não me canso de repetir.”
Tirando de sua pasta um livro de quase 300 páginas, continuou: “Por
acaso reencontrei essa frase do Santayana numa das epígrafes deste livro
aqui. Anotem seu título: Sobre o Autoritarismo Brasileiro. Foi
escrito pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz e acaba de ser lançado.
Adotei-o como nossa leitura do mês, quem sabe do semestre, pois se
encaixa à perfeição nos objetivos do nosso curso”.
Com uma rápida folheada até a página 223, o professor detém-se na
epígrafe que abre o último capítulo, dedicado aos nossos fantasmas do
presente, e a lê, sem disfarçar seu deleite: “O Brasil tem um enorme
passado pela frente’. Esta é do Millôr Fernandes e resume tão bem as
intenções do livro quanto a do Santayana”.
As raízes de nosso racismo, de nosso mandonismo, de nosso
patrimonialismo, da corrupção, desigualdade social, violência e
intolerância que diariamente testemunhamos – enumera o professor,
percorrendo com o dedo o sumário – “estão todas neste livro, examinadas e
historiadas pela autora. Embora ela faça frequentes e procedentes
alusões ao tenebroso tempo presente, os nomes dos poderosos do momento
permanecem escrupulosamente ocultos por elipse em suas páginas”.
Ao vislumbrar um aluno de celular em punho, no fundo da sala, o
professor suspirou com ar de enfado e, dirigindo-se ao pupilo, disse:
“Não se esqueça de me enviar uma cópia por e-mail”.
Ninguém está livre de proferir uma piada de mau gosto. Não é porque o
sujeito virou prefeito ou ministro que uma dádiva dos céus faz com que
ele só diga coisas certas e relevantes. Se bem que prefeitos e ministros
têm o dever de pensar duas vezes antes de falar qualquer coisa. Mas,
pelo jeito, os prefeitos, ministros e presidentes que nos cercam não
pensam nem uma vez inteira antes de falar. É o que ficou demonstrado
esta semana.
Começou na terça-feira, num evento da prefeitura, quando Marcelo
Crivella achou apropriado descontrair o ambiente com uma piada sem
graça: “O pessoal está sugerindo aqui de colocar o nome da ciclovia de
Vasco da Gama”, disse ele, para completar: “Está caindo muito”. Como é
que é? O sujeito é responsável por uma ciclovia que já despencou quatro
vezes, matou duas pessoas, e ele ainda acha que pode fazer chiste com
isso? Pior, quando foi cobrado, três dias depois, pela inconveniência,
pôs um sorriso nos lábios e disparou: “Quem vê o vídeo vai ver que teve
um flamenguista que fez a proposta. Eu coloquei em votação exatamente
para fazer a brincadeira e depois fui claro quando disse ‘a proposta foi
rejeitada’. Isso é brincadeira que todo carioca faz.”
Não é não, prefeito. O carioca, geralmente, é sensível e sabe que brincadeira tem hora. Mas há exceções, é claro.
Crivella parecia ter o direito de ganhar o troféu Mico da Semana, mas
aí, na quinta-feira, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, postou
um vídeo na sua conta no Twitter. Aparentemente gravado em seu gabinete,
o vídeo mostra o ministro entrando pelo canto esquerdo da tela,
portando um guarda-chuva aberto e cantarolando “Singin’ in the rain”, de
Arthur Freed e Nacio Herb Brown. Mas o que é isso? Weintraub quer fazer
teste para algum musical? Não! Quer denunciar fake news. “Essa última
fake news, fresquinha pra vocês, alega que a paralisação da recuperação
do Museu Nacional, aquele que o reitor da UFRJ não conseguiu
explicar...” Peraí, como é que é? O que o ministro quis dizer? Que o
reitor não soube explicar o museu? Como assim? O museu precisa de
explicação? Bem, deixa o vídeo rodar. O ministro continua: “O que
acontece? Haviam emendas parlamentares...” Para de novo. O sujeito é
ministro da Educação e não conhece uma regra básica de concordância
verbal?
Geralmente, esse erro é cometido por quem não sabe português
direito, mas quer falar difícil. Aí surge o “houveram erros” ou o
“haviam emendas”. No post, o ministro apresenta o vídeo com o seguinte
texto: “Mais uma #FakeNews. Agora, sobre o contingenciamento de verbas
no Museu Nacional, do Rio de Janeiro. Descubra a verdade”. Pois
descobri. A verdade é que o ministro não sabe que o verbo haver, no
sentido de existir, não varia. Nunca! É fácil, ministro. Não varia
nunca!
Nos anos 60 do século passado, o genial cronista Sergio Porto, na pele
de seu heterônimo, Stanislaw Ponte Preta, inventou o Febeapá — o
Festival de Besteira que Assola o País. Nele, colecionava burrices,
bobagens, idiotices, cretinices, enfim, besteiras proferidas por
políticos e autoridades do Brasil. Nos dias de hoje, ele realizaria um
Febeapá e tanto.
Bill de Blasio, prefeito de Nova York, não estava na festa. Semanas
antes, mandara avisar a Bolsonaro que “seu ódio não é bem-vindo”. Por
considerar que a declaração caracterizava a “ideologização da
atividade”, o presidente brasileiro cancelou a visita. Jair acha
ideológico o que não é espelho. Desconfia que sua sombra também conspira
contra ele. O prefeito nova-iorquino aproveitou para cutucar a
masculinidade do capitão: “Valentões geralmente não aguentam um tranco”.
Ernesto Araújo não avisou que, na diplomacia, presidente não passa
recibo para prefeito.
O evento de homenagem a Bolsonaro foi mantido, e João Doria farejou a
oportunidade. Avisou que falaria em inglês para que o prefeito não
pudesse se fazer de desentendido: “Da próxima vez, seja gentil com o
presidente do Brasil. (...) Você pode não gostar de Jair Bolsonaro, mas
ele é o presidente eleito e merece respeito em qualquer parte do mundo,
sobretudo aqui na América”. Lembrou que aprendeu a respeitar “a América”
por “seu respeito a liberdade, pluralidade e direitos universais”.
Encerrou com um grito de “Viva o Brasil!”.
Qual Brasil, João? O Brasil do “não vou combater nem discriminar, mas,
se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”? Do “filho gayzinho
leva um coro e muda seu comportamento”? Ou aquele do “erro da ditadura
foi torturar e não matar” e do “Polícia Militar do Brasil tinha que
matar é mais”? Por essas rasteiras da história, esse Brasil assumiu a
Presidência.
Por falar em polícia que mata e tortura, João, lembro-me também do
estado brasileiro em que, “a partir de janeiro, polícia vai atirar para
matar”, do, “se forem bandidos, estão indo para o lugar que merecem” ou
do que dá “parabéns aos policiais por colocarem bandidos no cemitério”.
Por essas surpresas da história, esse virou governador de São Paulo.
Desculpe tirar suas frases do contexto, João, corrija-me por favor se
elas queriam dizer algo diverso de sua literalidade. Alguém precisa lhe
dizer que este Brasil não é nem o da Constituição brasileira, nem o da
Constituição da “América”, como prefere. Goste-se ou não do gesto de
Bill de Blasio, a provocação estava em total sintonia com os ideais de
“liberdade, pluralidade e direitos universais”. Combater o ódio ao qual
ele se referia representa mais brasileiros do que imagina (pelo menos os
quase 60% do eleitorado brasileiro que não votou em Jair Bolsonaro).
“A afinidade ideológica entre Jair e João não deve ser subestimada”
No campo da segurança, a linhagem de Doria é apenas um pouco mais polida
e envernizada. Quando a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo,
após o trabalhoso concerto entre vários partidos espalhados pelo
espectro ideológico e o intenso diálogo com a sociedade civil, aprovou a
lei de criação do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, Doria
disse que, embora reconhecesse “os nobres propósitos do legislador”,
viu-se “compelido a negar assentimento ao projeto”. O veto foi uma
pérola do que José Carlos Dias chamou de “Brasil declaratório”, aquele
que “brada sua civilidade enquanto corrói os pilares da democracia por
dentro”.
As razões jurídicas do veto desprezaram as especificidades do órgão e
recorreram a generalidades sobre separação de Poderes e simetria
federativa para impedir a inovação institucional. Argumento para
bacharel nenhum botar defeito. Notas de repúdio ao veto foram emitidas
por todos os órgãos congêneres pelo país, pelo Ministério Público
Federal e por mais de 50 organizações da sociedade civil. O Mecanismo de
Prevenção e Combate à Tortura, que integraria a estrutura do próprio
Legislativo paulista, teria função de monitorar práticas de violência em
prisões e delegacias, inspirado em órgãos parecidos de diversas partes
do mundo e também de outros estados brasileiros e do governo federal.
Se sincera a motivação do veto, um governador preocupado com a tortura
no estado que mais encarcera no país teria apresentado alternativa
institucional que sanasse as alegadas ilegalidades. A sociedade paulista
permanece à espera de mais do que isso: que ofereça soluções para a
segurança baseadas em ciência e que comece por investir na dignidade de
policiais, como prometeu em campanha. Em nome dos “direitos universais
da América”, João.
Ministro do Meio Ambiente dá sinais antagônicos à pasta ao ir na direção
de licenciamentos flexíveis, menor controle de agrotóxicos e leniência
com punições
Vinicius Sassine e Thiago Herdy
No começo de abril, fiscais do Ibama entraram na Floresta Nacional do
Jamari, em Rondônia, para pôr um fim momentâneo na exploração ilegal de
madeira empreendida por um grupo de produtores da região. Feito o
flagrante, constatada a necessidade de evitar a retirada de outras toras
da floresta e diante das dificuldades inerentes a uma mata de difícil
acesso, os agentes fizeram aquilo que a lei determina: atearam fogo a
dois caminhões e a um trator usados no crime ambiental. Assim é feito há
quase 11 anos, desde julho de 2008, quando entrou em vigor um decreto
presidencial que ampara a prática de destruir bens usados em crimes
ambientais.
A ação dos fiscais provocou uma reação em cascata. Produtores da região
passaram a trocar mensagens indignadas. “Parece que teve uns caminhões
queimados em Cujubim, e o secretário aqui de Rondônia, o Elias, entrou
em contato com o ministro do Meio Ambiente”, disse um deles, celebrando o
respaldo ministerial franqueado pelo governo de Jair Bolsonaro. Cujubim
está a pouco mais de 200 quilômetros de Porto Velho. A floresta se
localiza entre as duas cidades. “Vamos prejudicar os caras que queimaram
esses caminhões. Não vamos deixar esse trem barato, não”, respondeu um
segundo produtor. “Acho que vai dar problema pra eles. O que a gente
puder fazer para prejudicar esse povo, a gente vai fazer. Tá na hora.
Chega.”
Elias Rezende, secretário de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia,
queixou-se ao governador, Coronel Marcos Rocha, do PSL, o mesmo partido
do presidente. Rocha ligou para o ministro do Meio Ambiente, Ricardo
Salles. Na conversa, disse que a destruição de equipamentos usados em
crimes ambientais causava revolta e não deveria ser feita. O governador
ouviu de Salles que a situação mudaria em breve. “O ministro se
comprometeu a apresentar uma minuta para alterar esse decreto”, disse
Rezende. O próprio presidente Bolsonaro gravou um vídeo em que
desautorizava a ação do Ibama — e que viralizou nas redes sociais.
“A estrutura de políticas públicas voltadas para os efeitos das
mudanças climáticas foi esvaziada com o fim da secretaria que tratava do
tema e o orçamento para a área reduzido praticamente a zero”
A ideia de que agora é possível “prejudicar esses caras”, ou seja, os
agentes de fiscalização ambiental, e a promessa feita no dia seguinte
por Salles, de viabilizar o afrouxamento desse trabalho, mimetizam o que
foram até aqui os quatro meses do advogado de 43 anos no posto de
ministro do Meio Ambiente. No fim do ano passado, a pasta quase foi
extinta pelo presidente. A ideia de Bolsonaro era transformá-la em uma
secretaria ligada ao Ministério da Agricultura. Contudo, a ministra
Tereza Cristina e a bancada ruralista foram contra: avaliaram que a
mudança traria dores de cabeça e cobranças extras para a pasta do
agronegócio. Indicaram, então, que ela fosse comandada por Salles, que
chefiara a Secretaria de Meio Ambiente do governo de Geraldo Alckmin, em
São Paulo, em 2016 e 2017. Bolsonaro acatou a indicação. No cargo,
Salles tem colocado em prática um plano de desmonte de políticas
ambientais cujo norte é claro: adequar o meio ambiente aos interesses do
agronegócio, de setores da indústria e outros interesses privados.
Tal convicção é tão patente no governo que Jair Bolsonaro não demonstrou
constrangimento quando, ao discursar no Fórum Econômico Mundial, em
Davos, na Suíça, em janeiro, afirmou que sua gestão teria como premissa a
aliança entre os dois setores, chamados pelo presidente de
“indissociáveis”. Para justificar sua fala, o presidente recorreu a um
sofisma que induz à ideia de que o Brasil avançou demasiado na
preservação ambiental, deixando o agronegócio, que traz muito mais
recursos ao Produto Interno Bruto (PIB) do que florestas, comendo poeira
na estrada. Disse ele: “Somos o país que mais preserva o meio ambiente.
Nenhum outro país do mundo tem tantas florestas como nós. A agricultura
se faz presente em apenas 9% do nosso território e cresce graças a sua
tecnologia e à competência do produtor rural. Menos de 20% de nosso solo
é dedicado à pecuária. Essas commodities, em grande parte, garantem
superávit em nossa balança comercial e alimentam boa parte do mundo”.
A fala do presidente resume o que pensa a bancada ruralista e a função
do ministro Salles em seu governo. Mais que um funcionário de alto
escalão do Executivo, Salles é a personificação de um conjunto de ideias
que encontrou solo fértil em setores conservadores no Brasil e no mundo
— e que vai além do mero pragmatismo econômico. São grupos que, em
alguns casos, mostram-se céticos sobre os efeitos das mudanças
climáticas (alguns acreditam que o aquecimento global é um fenômeno
natural que ocorre de tempos em tempos na atmosfera, sem qualquer
relação com o impacto humano), defendem o afrouxamento do Código
Florestal e são entusiastas da tese de que povos indígenas são
beneficiados por políticas de demarcação, muitas vezes à custa de
prejuízos aos agricultores. A ideia que norteia esses grupos é que a
preservação ambiental criou um ambiente de injustiça contra
proprietários de terra.
O presidente do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Adalberto Eberhard, pediu
exoneração após o ministro Ricardo Salles ameaçar punir agentes. Foto:
Antonio Augusto / Câmara dos Deputados
Os efeitos da nova agenda podem ser percebidos na administração federal.
Documentos obtidos por ÉPOCA mostram um afrouxamento de regras para o
descarte de resíduos decorrentes da perfuração de poços de petróleo,
contrariando recomendações dos próprios técnicos do governo. Ofícios
também apontam gestos no sentido de flexibilizar licenciamentos
ambientais. Atos tornaram o controle de agrotóxicos menos efetivo.
Discussões sobre pagamentos de serviços ambientais e sobre o Cadastro
Ambiental Rural (CAR) foram paralisadas. O sistema de punição e
aplicação de multas foi afrouxado. E áreas centrais do ministério seguem
acéfalas. Pela visão dos críticos, a gestão ideológica no Ministério do
Meio Ambiente produz efeitos imediatos. Além disso, ataques virtuais
vindos do presidente e do ministro a fiscais a serviço do Ibama e do
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão
que cuida das Unidades de Conservação federais, têm estimulado
produtores a resistir a qualquer tipo de controle.
No início dos anos 2000, Salles era um jovem advogado que integrava o
solitário grupo de paulistanos que organizavam eventos para levantar a
bandeira do livre mercado, da defesa da propriedade privada e do Estado
mínimo, reunidos em torno do movimento Endireita Brasil. O país vivia o
auge do lulismo, que perduraria até a segunda eleição de Dilma Rousseff
(PT), e não havia grande espaço para a direita no espectro político. O
grupo, no entanto, não abandonou a causa. E escolheu o jovem advogado
como representante para tentar uma vaga no Legislativo. Salles tentou
ser vereador, deputado estadual e federal por São Paulo. Fracassou em
todas tentativas. As críticas ao PT o levaram a se aproximar do
governador Geraldo Alckmin (PSDB), de quem virou secretário particular e
depois secretário de Meio Ambiente. Durante esse período, colecionou
inimizades ao criticar publicamente o que via nos bastidores do Palácio
dos Bandeirantes: a força da aliança “de políticos picaretas que se
ajudam, se conhecem e se acobertam”, independentemente da filiação
partidária.
Afinado com Bolsonaro,
Salles cercou-se de militares no ministério: cinco dos nove assessores
têm origem no Exército. Foto: Reprodução
Filho de um casal de advogados paulistanos, Salles não tem como origem o
campo. Aproximou-se de lideranças da Sociedade Rural Brasileira e da
União Democrática Ruralista (UDR) graças ao Endireita Brasil. Em 2018,
candidatou-se pelo Novo a uma vaga na Câmara dos Deputados, defendendo
medidas como a mudança da sede da capital do país de Brasília para São
Paulo, o fim das visitas íntimas em presídios e o uso de munição de
fuzil contra a esquerda e o MST. Fiou a candidatura à Presidência de
João Amoedo (Novo) e por isso teve de avisar ao antigo chefe, Alckmin,
também candidato ao Planalto, que seria fiel à nova legenda e infiel ao
tucano. Percebeu no meio da campanha que a candidatura Amoedo
naufragaria e aderiu discretamente a Bolsonaro, depois de participar de
um encontro dele com militares e empresários, em São Paulo.
Ao chegar a Brasília, o ministro trocou quase todos os superintendentes
do Ibama nos estados. Cercou-se de militares. Dos nove assessores em seu
gabinete, cinco vêm do Exército, assim como o chefe de gabinete, o
ouvidor do órgão e o assessor de imprensa. Sob sua gestão, a diretoria
do ICMBio também foi militarizada — e uma ação na Justiça contesta a
nomeação de um coronel, um major e um tenente-coronel da PM de São Paulo
na diretoria do órgão.
Há convergência de ideias entre o ministro e setores das Forças Armadas,
em especial na questão das reservas indígenas. Por serem alguns dos
poucos grupos a ter permissão legal para circular em regiões
preservadas, militares dizem ver de perto a pobreza das regiões e
defendem que haja políticas de desenvolvimento em áreas preservadas —
ideia criticada por ambientalistas.
Entre os técnicos, é dado como certo que Salles proporá a alteração do
decreto que permite a destruição de bens flagrados em crimes ambientais.
É um pleito antigo de políticos da bancada ruralista. “Em Rondônia, a
orientação é para que não ocorra a destruição. O governador conversou
com o ministro e pediu para que ele repita o que ocorre aqui. O
posicionamento do ministro é que o decreto seja reformulado. E isso não
significa um incentivo ao desmatamento, mas ao amplo contraditório”,
disse o secretário de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia.
Salles fracassou como
candidato em diversas esferas do Legislativo, depois de ter se engajado
em grupos de direita que protestaram contra o PT. Foto: Reprodução
Salles também prepara a flexibilização dos licenciamentos ambientais,
que prevê até a dispensa deles para determinados setores. Indicado pelo
ministro para presidir o Ibama, Eduardo Bim assinou uma instrução
normativa há menos de um mês estabelecendo os procedimentos para a
delegação de licenças da União para estados e municípios. Uma semana
depois, o Ibama delegou ao governo da Paraíba as atribuições de
licenciamento para as atividades econômicas de uma grande empresa no
estado.
Nos últimos dias de abril, Bim enviou um ofício ao Ministério da
Economia dizendo ter interesse em seis servidores que trabalhavam na
Valec em Tocantins, a estatal responsável por construir ferrovias. Ele
não viu impedimento no fato de os funcionários terem atuado no outro
lado do balcão. Pelo contrário: o presidente do Ibama pediu que os
servidores trabalhem no órgão especificamente no “licenciamento
ambiental de grandes obras de infraestrutura”.
Salles também nomeou para a chefia da assessoria de relações
interministeriais do Meio Ambiente o criador das peças gráficas de sua
própria campanha, de acordo com os registros do TSE. Trata-se do
linguista, publicitário e criador de memes paulista David Boutsiavaras,
que atende por diferentes pseudônimos no ringue virtual pró-Bolsonaro.
Na terça-feira 7, ÉPOCA perguntou a Boutsiavaras que atividades executa
no ministério e como sua experiência na internet poderia ser útil ao
novo trabalho. Ele preferiu não se manifestar.
“Com quatro meses no cargo, Salles ainda deixa em aberto postos-chave
do ministério. Ele levou um grupo de militares para agradar o
presidente”
Passados mais de quatro meses na cadeira de ministro do Meio Ambiente,
Salles ainda não conseguiu preencher os cargos mais importantes do
ministério. Permaneciam vagos até o último dia 7, por exemplo, a
Secretaria de Florestas e Biodiversidade, a Coordenação de Concessão de
Florestas, a Coordenação de Políticas de Desenvolvimento Sustentável, a
Coordenação de Repartição de Benefícios e o Departamento de Conservação.
Esvaziar áreas que não considerava prioritárias era uma estratégia na
época em que era titular da pasta de Meio Ambiente de São Paulo.
Centralizador, o então secretário causou polêmica ao cancelar pagamentos
de contratos já assinados, medida semelhante à que tentou adotar ao
deparar-se com o custo de aluguel de veículos no Ibama. Depois de
anunciar o cancelamento do contrato com estardalhaço e retuíte do
presidente, voltou atrás ao ser alertado sobre a necessidade de
manutenção do aluguel. Bolsonaro teve de apagar a postagem.
No ministério, Salles esvaziou o desenho de políticas públicas voltadas
para os efeitos das mudanças climáticas e quase zerou o orçamento para a
área. Acabou com a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas, ainda
nos primeiros dias de janeiro. Depois, alocou integrantes da extinta
secretaria — os que permaneceram no ministério — numa assessoria
especial. Até agora, a única posição do ministro a favor dessas
políticas foi a defesa de que o Brasil continue fazendo parte do Acordo
de Paris, um compromisso de 195 países para a redução da emissão de
gases de efeito estufa. No fim do ano, por decisão de Bolsonaro, o país
desistira de sediar a Conferência do Clima da ONU.
Salles na posse com
Bolsonaro. Ele começou fazendo campanha para o tucano Alckmin, mas logo
embarcou na candidatura que se tornaria vitoriosa. Foto: Daniel Marenco /
Agência O Globo
O impacto internacional das novas políticas faz técnicos do governo
prever dificuldades para que o Brasil acesse dinheiro do Fundo do Clima,
que recebe aportes de diversos países. O mesmo temor existe em relação a
recuos de investidores do Fundo da Amazônia. A Noruega, por exemplo, já
aportou US$ 1,2 bilhão ao fundo. Ambos são operacionalizados pelo
BNDES.
No fim de abril, mais de 600 pesquisadores e integrantes da comunidade
científica internacional pediram à União Europeia que condicione
parcerias com o Brasil a novas garantias de proteção ambiental. O
manifesto foi publicado na revista
Science
e leva em conta o reconhecimento, pela comunidade internacional, do Brasil como o país mais biodiverso do mundo.
O ministro do Meio Ambiente não se opôs à transferência do Serviço
Florestal Brasileiro (SFB) de seu ministério para o Ministério da
Agricultura. Nem à nomeação do principal opositor do Código Florestal, o
ex-deputado e ex-líder da bancada ruralista Valdir Colatto, como
diretor-geral do SFB. É ele quem cuida agora, por exemplo, das
concessões de florestas. Trata-se de decidir que empresas e comunidades
receberão do governo o direito de manejar florestas públicas para
extrair madeira, produtos não madeireiros e oferecer serviços de
turismo. Em contrapartida ao uso sustentável, os concessionários pagam
ao governo quantias que variam conforme o valor de licitação das áreas.
Salles vem seguindo à risca a orientação de Bolsonaro — ele próprio
multado e desmultado pelo Ibama por pesca ilegal — para derrubar o que
entende por “indústria da multa” ambiental. Um decreto estabeleceu uma
nova fase processual, com possibilidades amplas de conciliação e
conversão da multa em serviços ambientais.
Na primeira viagem à
Amazônia Legal, Salles visitou a Terra Indígena Utiariti, no noroeste de
Mato Grosso, onde produtores rurais brancos plantam soja e milho
transgênicos mediante o pagamento de porcentagem da safra à etnia
pareci. Foto: Reprodução
Procuradores da República avaliam se as mudanças são legais. “Quando se
adota discurso muito crítico em relação aos órgãos de fiscalização,
fragilizam-se esses órgãos. Crimes ambientais, muitas vezes, envolvem
grande movimentação de recursos, lavagem de dinheiro, falsificação
tributária”, afirma o procurador da República Daniel Azeredo, com
atuação na Câmara de Meio Ambiente da Procuradoria-Geral da República
(PGR). Ele diz que o ministro do Meio Ambiente pode ser alvo de ação em
caso de aumento do desmatamento na Amazônia. “Se o desmatamento subir,
não há dúvida de que a culpa é do ministro.”
Na ponta do sistema, fiscais do Ibama passaram a ter de requerer reforço
policial para conseguir entrar em áreas com suspeita de crime
ambiental, especialmente na Amazônia. Outros têm recebido mensagens
ameaçadoras. “Bolsonaro venceu prometendo acabar com a fiscalização, e o
Ibama não é bem-vindo”, dizem produtores nessas mensagens. A cúpula do
órgão já foi alertada sobre o acirramento dos ânimos.
“Salles não tem como origem o campo. Juntou-se à Sociedade Rural
Brasileira e à União Democrática Ruralista (UDR) graças ao Endireita
Brasil, movimento que ajudou a fundar”
O primeiro dado oficial de desmatamento da Amazônia sob Bolsonaro deverá
ser divulgado só no segundo semestre. O monitoramento atual mostra um
aumento do desmatamento desde 2012. O instituto de pesquisa Imazon faz
um acompanhamento mensal que costuma antecipar o movimento dos dados
oficiais. Entre agosto de 2018 e março de 2019, foram desmatados 1.974
quilômetros quadrados de vegetação amazônica. Em todo o ano anterior, o
desmatamento foi de 1.590 quilômetros quadrados. “O desmonte pode gerar
uma aceleração do desmatamento, embora seja difícil estabelecer uma
relação precisa de causa e efeito”, disse Carlos Souza Jr., pesquisador
associado do Imazon e coordenador do programa de monitoramento da
Amazônia.
Os pontos mais preocupantes, disse Souza Jr., são a proposta de extinção
de reservas legais, o desmonte de políticas de gestão de Unidades de
Conservação, a inibição da fiscalização e a liberação de atividades
econômicas — em especial a mineração — em terras indígenas. Os meses
críticos de desmatamento batem na porta: maio, junho e julho. “Não
consigo me lembrar de intervenções desse tipo do governo. Pode-se perder
o total controle do desmatamento”, afirmou o pesquisador. Ele disse que
os dados vêm apontando um crescimento do “desmatamento especulativo”,
quando se desmata para garantir a apropriação de uma terra pública — a
grilagem, em outras palavras. Novas fronteiras de grilagem vêm sendo
abertas no norte do Pará e no sul e sudeste do Amazonas.
A proatividade de Salles em beneficiar empresas em detrimento da
preservação já o fez se tornar alvo do Ministério Público (MP) paulista
quando era secretário de Meio Ambiente. Foi condenado por improbidade
administrativa e sofreu penas de suspensão de três anos dos direitos
políticos, além de multa correspondente a dez vezes o valor de seu
salário, por adulterar mapas de zoneamento da Área de Proteção (APA) do
Tietê para permitir a ampliação da atividade mineratória na região do
rio. A investigação do MP concluiu que a alteração no mapa foi feita a
pedido de representantes da Fiesp. Salles é alvo, também, de um um
inquérito policial que versa sobre os mesmos fatos, que deverá embasar
um processo criminal. A investigação, sigilosa, se arrasta desde 2017 e
está no gabinete do Procurador-Geral de Justiça.
Na gestão como secretário do Meio Ambiente em São Paulo, Salles aproximou-se das lideranças ruralistas. Foto: Reprodução
Em janeiro de 2018, o Ibama editou uma norma estabelecendo regras claras
para o descarte de resíduos decorrentes da perfuração de poços
marítimos e produção de petróleo. Entre essas regras, estava a proibição
de descartar no mar o cascalho e os fluidos usados nas fases de
reservatório dos poços. Não demorou para as empresas do setor,
representadas pelo Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP), contestarem
as novas normas. As empresas pediram — e a Agência Nacional do Petróleo
(ANP) concordou — que houvesse a suspensão exatamente dos itens que
tratam do descarte de cascalho e fluidos. O IBP argumentou que houve
excesso por parte do Ibama e que as regras não encontravam paralelo em
nenhuma parte do mundo. Teve início, então, uma batalha por parte dos
técnicos do Ibama para manter a norma editada no começo de 2018. Em
março, o presidente do Ibama decidiu suspender a norma — apesar de os
pareceres dos técnicos defenderem a vigência das novas regras.
O Ibama também afrouxou regras para o uso de agrotóxicos, permitindo
registros para uso emergencial na Bacia do Rio São Francisco e
prorrogando prazos para regularização. No Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama), presidido por Salles, a primeira decisão tomada, num
processo com efeitos práticos, foi favorável à indústria. Em reunião em
24 de abril, o Conama aprovou, por 36 a 35, uma emenda da Confederação
Nacional da Indústria (CNI) que flexibiliza regras na fabricação para o
controle de emissão de poluentes por motocicletas. Salles encampou a
proposta, e o Ministério do Meio Ambiente votou a favor dela, a exemplo
de quase todos os representantes do governo. O Ministério da Saúde foi
exceção: votou contra.
“Em sua gestão como secretário em SP, o atual ministro foi condenado
por improbidade administrativa, com multa e penas de suspensão de três
anos dos direitos políticos por adulterar mapas de zoneamento de área de
proteção”
No início da noite da última terça-feira, dia 7, Salles recebeu a
reportagem ÉPOCA em seu gabinete no Ministério do Meio Ambiente. O
ministro demonstrou irritação com parte das perguntas feitas e deu
respostas lacônicas.
Segundo ele, o ministério vai detalhar melhor quais são as hipóteses em
que se podem destruir bens flagrados em crimes ambientais. Uma instrução
normativa em vigor já diz que isso só deve ocorrer em caráter
excepcional, conforme o ministro. “Quem está em campo precisa de
autorização da supervisão da fiscalização (
para destruir os bens
)”, disse. O ministro afirmou ainda que existe um “sentimento de
injustiça” entre produtores rurais, um sentimento de que “existe abuso”
na fiscalização.
Por isso, segundo ele, foi editado o decreto para permitir a conciliação
ambiental. “É um bom instrumento para restabelecer o diálogo.” Sobre
licenciamentos ambientais, Salles disse que uma lei complementar já
permite as delegações a estados e municípios. “Quanto mais, melhor. O
Ibama precisa ficar com o que é de sua competência.” O ministro defendeu
que ocorra o chamado “licenciamento autodeclarado”, em que o próprio
produtor declara a licença, em casos de substituição de cultura — “Da
soja para o milho, da pecuária para a agricultura” — e de atividades com
baixo impacto ambiental.
Na quarta-feira 8, José
Sarney Filho, Carlos Minc, Izabella Teixeira, Marina Silva, Rubens
Ricupero e José Carlos de Carvalho (da esq. para a dir.), todos os
ex-ministros do Meio Ambiente vivos desde que a pasta foi criada, em
1992, assinaram um comunicado contra a política de Salles. Foto: Edilson
Dantas / Agência O Globo
Salles disse ainda que as discussões sobre pagamento de serviço
ambiental não estão paradas, que o assunto agrotóxicos é
preferencialmente do Ministério da Agricultura e que desconhece a
suspensão da norma sobre descarte de resíduos na exploração de petróleo.
Sobre a decisão do Conama a respeito de emissão de poluentes por
motocicletas, o ministro afirmou que o problema da poluição existe, mas
“o remédio era inadequado”.
Salles também afirmou defender a exploração de mineração e arrendamentos
em terras indígenas, desde que se analise “caso a caso”. “O Brasil está
sendo muito injustiçado internacionalmente. O país preserva muito. Os
problemas ambientais estão nas cidades. Não houve cancelamento de
agendas, como as associadas ao campo e a mudanças climáticas. Mas as
cidades são o problema mais premente e urgente”, disse.
Na manhã da quarta-feira 8, oito ex-ministros do Meio Ambiente chamaram a
imprensa na Universidade de São Paulo (USP) para anunciar uma frente de
mobilização contra o que chamaram de “desmonte da governança
socioambiental” no Brasil. Por mais de três horas, relataram ações que
entendem esvaziar a capacidade de implementação de políticas públicas no
ministério. A Salles, endereçaram carta em defesa do desenvolvimento
com atenção ao sistema de proteção ambiental. Ele respondeu na tarde do
mesmo dia, em nota que terminou por atacar gestões anteriores, alegando
“sucateamento” da pasta. Marina Silva ponderou, durante a reunião, que
“só a sociedade poderá criar o espaço para uma outra agenda”,
referindo-se à nova política ambiental. Salles respondeu, em sua nota,
que está cumprindo a missão dada pelo Presidente da República. Sempre
houve dúvida sobre até que ponto a eleição de Jair Bolsonaro foi
motivada pelas ideias que defende ou pelo antipetismo. A aprovação
popular — se houver — das rápidas medidas tomadas por Salles no Meio
Ambiente pode começar a dirimir esse enigma.
Instituída por um decreto presidencial nesta semana, a redução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) de cem para 21 integrantes provocou protestos entre ex-ministros , acadêmicos e membros da sociedade civil, que questionam se o colegiado conseguirá conduzir seus trabalhos diante de seu enxugamento. Com a reforma, órgãos com ligação estreita com o meio ambiente, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ( ICMBio ) e aAgência Nacional de Águas , perderam seus lugares. Também não há mais assentos para o Ministério da Saúde e entidades ligadas a questões indígenas. Os estados deixaram de ter um representante cada — agora, serão apenas cinco vagas, uma por região geográfica. Os municípios, que contavam com oito assentos, terão dois, e sempre de capitais — uma medida criticada, já que desconsidera o interior.
Antes com oito vagas, as confederações de atividades econômicas terão apenas duas. E a representação da sociedade civil passou de 21 pessoas para quatro.
— A nova estrutura do Conama reduz a representação de segmentos da sociedade, sua capilaridade e transparência — critica José Sarney Filho, ministro do Meio Ambiente nos governos de FHC e Michel Temer.
O ex-ministro avalia que o colegiado é uma “caixa de ressonância, um Parlamento ambiental do país”.
— Nunca foi um órgão radical, porque tinha representantes da indústria, pecuária, estados, municípios, sociedade civil.
Criado em 1981, durante a presidência de João Figueiredo, o Conama esteve à frente de pontos cruciais da política ambiental do país. Por seu plenário passaram assuntos como o controle das emissões de poluentes de automóveis e orientações sobre a presença de substâncias químicas no solo.
O colegiado também definiu modos de recuperação das áreas de preservação permanente, determinou o licenciamento ambiental para setores econômicos, como a aquicultura, e também para empreendimentos que usam energia eólica. Estabeleceu critérios para uso e manejo da fauna silvestre e, também, o modo de inspeção de indústrias que utilizam produtos madeireiros.
Interferência ideológica
Antes mesmo da posse de Jair Bolsonaro , seu grupo de transição afirmou, em um documento, que o colegiado delibera suas pautas “emocionalmente, sem a devida técnica, sujeitando-se a interferências de ordem ideológica e corporativista pouco afetas à política de Estado”.
No entanto, a justificativa apresentada nesta semana para alterar a estrutura do Conama foi “garantir o princípio da eficiência administrativa para tornar mais objetivos e com melhor foco de atuação os trabalhos desenvolvidos em plenário, bem como nos grupos temáticos”.
O Ministério do Meio Ambiente (MMA) alega que a redução do conselho implicará em uma economia de 80% nos gastos com passagens e diárias dos membros que precisam se deslocar para as reuniões. A pasta banca as despesas de 19 integrantes do Conama. O valor absoluto economizado não foi divulgado porque, segundo a assessoria de imprensa do MMA, “varia em função da época do evento”.
O ex-ministro Carlos Minc , que esteve à frente do Meio Ambiente no governo Lula, considera que, ao contrário do apregoado pelo governo, a nova configuração do Conama não mantém a proporcionalidade de cada setor:
— Os órgãos ambientais eram uma minoria representativa, que não podia ser ignorada. Agora, no entanto, serão um fragmento simbólico, servirão apenas como carimbadores das decisões antiecológicas do governo — lamenta. — Em dois anos no ministério, fui pelo menos 20 vezes ao Conama para debater diversas questões, do Fundo Amazônia a bacias hidrográficas.
Ex-presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Cláudio Maretti pondera que, se o problema do conselho era a falta de eficiência, o governo poderia ter debatido alternativas dentro do próprio colegiado.
— O ICMBio administra unidades de conservação que equivalem a 15% do território nacional. É um órgão fundamental para a discussão da política de meio ambiente — defende. — Nele estão centrados temas como a água que abastece as cidades e a sobrevivência de pelo menos 70 mil famílias de comunidades tradicionais.
Presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência — órgão excluído na nova configuração do Conama —, Helena Nader avalia que a saída de membros da academia é um sinal de negligência à “excelência científica”.
Helena lembra que o Brasil foi sede da Rio 92, que foi o berço das convenções sobre biodiversidade e mudanças climáticas, e da Rio+20, onde foram estabelecidos os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Somados, eles estabelecem cerca de 500 metas, em que o meio ambiente interage com diversos setores.
— O Brasil passou a ser respeitado internacionalmente porque aprendeu a conciliar a atividade agropecuária com a sustentabilidade. O Conama é uma instituição-chave para a economia. É onde se estabelece um diálogo entre pessoas de alto conhecimento. E, sem diálogo, ninguém governa.