June 16, 2019

Livro de ensaios põe zumbis ‘no divã’ e faz análise sobre fenômeno

Cena de 'A noite dos mortos-vivos', de George Romero, clássico dos filmes de zumbis Foto: Reprodução

Bolívar Torres

O que a psicologia, a filosofia e antropologia têm a dizer sobre o fascínio pelos zumbis? É o que buscaram saber o psicanalista Diego Penha e o filósofo Rodrigo Gonsalves ao reunirem os textos de “ Ensaios sobre mortos-vivos — The walking dead e outras metáforas ”. Nos textos selecionados por eles no livro, Christian Dunker, Ivan Estevão, Lucio Reis e outros pesquisadores mergulham nos símbolos desses monstros do além-túmulo para falar sobre nossos medos, paranoias e mecanismos sociais. Conceitos de pensadores como Freud e Zizek são usados para analisar filmes como “A noite dos mortos-vivos” e séries como “The walkind dead” .

Doutorando em Psicologia Clínica pela USP, Penha resumiu alguns pontos essenciais abordados no livro.

Origem na escravidão

“O surgimento dos zumbis está relacionado com a colonização do Haiti: zumbis eram escravos que morriam e eram revividos por feiticeiros para trabalhar de volta nas lavouras. Mesmo após a morte, esse corpo continua eternamente escravizado. O notável é que, em 1929, quando o jornalista americano William Seabrook vai ao Haiti e volta dizendo que viu zumbis, essa história faz um sucesso imenso nos EUA. O discurso flertava com a antropologia e o jornalismo, além de flertar com a xenofobia. Porque, ao mesmo tempo que mostra um maravilhamento com o Outro, transformava esse Outro em monstro.”

Refugiados e imigrantes

“Os gregos já usavam as narrativas para controlar a imagem do outro — o estrangeiro, o imigrante, o diferente. Eles já falavam sobre os homens metade cachorros, as populações com pescoços compridos, e que por serem diferentes de nós acabam justificando nossa perfeição. Na Idade Média, os lugares distantes eram onde habitavam os monstros. A tendência é que, nas novas narrativas de zumbis modernos, a figura do morto-vivo vá englobar o refugiado, o imigrante. Algo que se vê em “Guerra Mundial Z “(2012) e até em “Game of thrones”, que tinha uma muralha para deixar os mortos do lado de fora, impedir esse povo que quer invadir o centro. E na mesma época em que o presidente dos EUA falava em construir um muro contra os imigrantes.”

Monstros no armário

“Os mortos ficam no cemitério, distantes, não queremos que eles lembrem nossa própria mortalidade. Não há sociedade que não conviva com fantasmas do passado, com monstros no armário. Mas os mortos-vivos insistem em não ficar enterrados. Eles voltam para abrir nossos olhos, e o medo opera uma transformação específica de ligar com um passado de violências que foi ignorado, obliterado, que ninguém queria lembrar.”
Diego Penha, um dos organizadores do livro 'Ensaios sobre os mortos-vivos' Foto: Divulgação / Divulgação
Diego Penha, um dos organizadores do livro 'Ensaios sobre os mortos-vivos' Foto: Divulgação / Divulgação

História dos vencidos

“Em termos de Brasil e de escravidão, em algum momento temos que desenterrar essas ossadas e olhar para elas, perceber que, este também, é um país construído em cima do genocídio. Por que o samba-enredo da Mangueira este ano, que homenageou Marielle, ou o do Tuiuti no ano passado, ofenderam tantas pessoas? São dois desfiles que repensam a nossa história a partir das populações vencidas, e não dos vencedores. É um retorno dos mortos-vivos, por assim dizer, que ameaça uma parcela da população que ainda acredita na manutenção desses corpos debaixo da terra.

‘Paranoização’ do mundo

“O filme ‘A noite dos mortos-vivos’ (1968) dá origem à forma como vemos os zumbis hoje. É a grande influência para todo mundo, porque consegue descrever processos que vivemos desde os anos 1960 até agora. No longa, não se explica por que os mortos se levantam, e o vazio dessa causa permite que os agentes sociais criem teorias mirabolantes, conspiratórias, para explicar o fenômeno. Enquanto a invasão paranoica vai crescendo, as pessoas vão se fechando cada vez mais, primeiro em suas casas, depois nos porões. Aqui no Brasil, não precisamos de outros exemplos, o discurso paranoico social e político já é uma avalanche que cresce sem fim.”
Capa de 'Ensaio sobre mortos-vivos', organizado por Diego Penha e Rodrigo Gonsalves Foto: Divulgação
Capa de 'Ensaio sobre mortos-vivos', organizado por Diego Penha e Rodrigo Gonsalves Foto: Divulgação
 

Zumbis do consumo

“Toda narrativa de zumbis já traz embutida uma crítica ao consumo. Em ‘Despertar dos mortos’ (1978), o primeiro lugar que os mortos vão ao acordar é o shopping. O lugar mais familiar, o elo afetivo com a memória da vida, não é a casa deles, ou a praia, etc. O shopping é o espaço simbólico, central, em que você pode i
r sem nem se perguntar por quê. Também dá para ver os próprios shoppings como zumbis, que vão surgindo sem que a gente perceba.”

Cracolândia

“Existe um discurso que compara moradores de rua e usuários de crack a zumbis, no sentido de dizer que ali não existe mais uma vida, que eles são destituídos de humanidade. Isso tem apenas um objetivo, tornar as políticas de opressão mais validadas. Quando se está lidando com mortos-vivos, fica muito mais fácil aprovar uma operação truculenta.”

1 de junho de 2008: O dia em que a música ardeu

Louis Armstrong Foto: Arquivo

Niraj Chokshi / The New York Times

NOVA YORK — Há 11 anos um incêndio atingiu parte dos estúdios da Universal, em Hollywood. Na época, a empresa disse que o fogo havia destruído a atração King Kong do parque temático e um cofre com vídeos que continha apenas cópias de obras antigas. Mas, de acordo com artigo publicado na terça-feira pela revista do "New York Times", o incêndio também destruiu gravações de áudio, transformando-se no que seria "o maior desastre da história da indústria fonográfica".

O que aconteceu?
O incêndio começou na madrugada de 1º de junho de 2008. Durante a noite, trabalhadores de manutenção usaram maçaricos para consertar o telhado de um prédio. A construção era parte de um conjunto de edifícios de estilo colonial que servia de cenário para filmes e programas de televisão.
Eles seguiram o protocolo e esperaram que as telhas esfriassem antes de sair. Pouco depois de deixarem o local, perto das 5h da manhã, porém, um incêndio irrompeu.
As chamas alcançaram o Edifício 6.197, conhecido como cofre de vídeo, onde estavam fitas de vídeo, bobinas de filme e, principalmente, uma biblioteca de gravações de som de propriedade da Universal Music Group.
Centenas de bombeiros responderam ao incêndio. Depois de tentar controlar as chamas com espuma e água retirada de um lago próximo, a equipe de emergência decidiu desmantelar o armazém que continha o cofre para apagar mais facilmente o fogo.

O que foi perdido?
Quase todas as gravações guardadas no cofre foram destruídas, incluindo aquelas produzidas por alguns dos músicos mais famosos desde os anos 1940.
Em um relatório confidencial em 2009, a Universal Music Group estimou a perda em cerca de 500 mil títulos. Entre eles estariam masters da coleção Decca Records de Billie Holiday, Louis Armstrong, Duke Ellington, Al Jolson, Bing Crosby, Ella Fitzgerald e Judy Garland. O incêndio provavelmente também destruiu algumas das principais gravações de Chuck Berry, produzidas para a Chess Records, bem como as masters de algumas das primeiras aparições de Aretha Franklin na História.
Quase todas as masters de Buddy Holly foram perdidas, assim como a maioria de John Coltrane na coleção da Impulse Records. O incêndio também teria destruído inúmeros singles de sucesso, como "Rock Around the Clock", de Bill Haley and His Comets, "At Last", de Etta James, e "Louie Louie", do Kingsmen.
A lista de artistas afetados abrange décadas de música popular. Inclui gravações de Ray Charles, BB King, Four Tops, Joan Baez, Neil Diamond, Sonny e Cher, Joni Mitchell, Cat Stevens, Gladys Knight e Pips, Al Green, Elton John, Eric Clapton, Jimmy Buffett, os Eagles, Aerosmith, Rufus e Chaka Khan, Barry White, Patti LaBelle, Tom Petty e os Heartbreakers, The Police, Sting, Steve Earle, REM, Janet Jackson, Guns N 'Roses, Mary J. Blige, No Doubt, Nine Inch Nails, Snoop Dogg, Nirvana, Beck, Sheryl Crow, Tupac Shakur, Eminem e 50 Cent.

O que são gravações master e por que elas importam?
Uma master é a gravação original única de uma peça musical. É a fonte a partir da qual outros discos de vinil, CDs, MP3s e todas as outras gravações são feitas.
De acordo com o artigo, documentos mostram que o cofre continha décadas de masters, incluindo gravações multifaixa nas quais instrumentos individuais permaneciam isolados uns dos outros.
Havia também masters de sessão, incluindo gravações nunca lançadas comercialmente. O material dentro do cofre veio de algumas das mais importantes gravadoras de todos os tempos. Audiófilos e profissionais de áudio veem essas gravações com especial atenção.
"Uma master é a captura mais verdadeira de uma peça de música gravada", diz à revista Adam Block, ex-presidente da Legacy Recordings, braço de catálogo da Sony Music Entertainment. “Cada cópia daí em diante fica a um passo de distância.”

Por que só ficamos sabendo disso agora?
Na época, o incêndio foi notícia em todo o mundo com destaque para a destruição do cofre. Mas a maioria dos artigos focalizou apenas nas gravações de vídeo existentes no arquivo e, mesmo assim, os veículos de notícias consideraram que o desastre maior havia sido evitado.
Jody Rosen, a autora do artigo, descreveu o esforço para minimizar o alcance das perdas como um “triunfo da gestão de crises” da Universal Music Group. Esses esforços tiveram, sem dúvida, o objetivo de minimizar o constrangimento público, mas alguns sugerem que a empresa também estava particularmente preocupada com a reação dos artistas e herdeiros de artistas cujas masters haviam sido destruídas.
A extensão real da perda foi apresentada em litígios e documentos da empresa obtidos pela reportagem.

Qual a gravidade da perda?
Rosen classifica a perda como histórica e mesmo a Universal Music Group — em mensagens privadas — descreveu o ocorrido em termos sombrios: "O que perdemos no fogo foi, sem dúvida, uma imensa herança musical", diz um relatório interno de 2009.
As gravadoras têm um histórico conturbado com essas gravações e são conhecidas por destruí-las em massa. Décadas atrás, funcionários da CBS Records teriam destruído masters com serras elétricas para vender as bobinas como sucata de metal. Na década de 1970, a RCA perdeu masters de Elvis Presley em meio a um material mais amplo.
Por causa desse histórico, profissionais do setor há muito tempo questionam o comprometimento das principais gravadoras com a preservação do que consideram
artefatos inestimáveis. Hoje, a maioria das gravações comerciais do século passado é controlada por apenas três gigantes da indústria fonográfica: Sony Music Entertainment, Warner Music Group e, é claro, a Universal Music Group.




June 12, 2019

Moro, pede pra sair





ELIO GASPARI

As conversas impróprias de Sergio Moro com o procurador Deltan-Dallagnole nodoaram a Lava-Jato e fragilizaram a condenação imposta a Lula pelo tríplex do Guarujá. Se isso fosse pouco, apostura arrogante do ministro da horas seguintes às revelações do site Intercepto briga muitos daqueles que gostariam de defendê-lo aficar no papel de bobos :“Basta le roques e tem lá e verificar que ofato graveéa invasão criminosa do celular dos procuradores”. Antes fosse. O fato grave é ver um juiz, numa rede de papos, cobrando do Ministério Público a realização de “operações”, oferecendo uma testemunha a um procurador, propondo e consultando-o a respeito de estratégias.

As mensagens de Moro e de Dallagnol deram um tom bananeiro à credibilidade da Operação Lava-Jato e mudaram o eixo do debate nacional em torno de seus propósitos. O ministro e o procurador reagiram como imperadores ofendidos, tocando o realejo da invasão de privacidade. Parolagem. Dispunham de uma rede oficial e segura para trocar mensagens e decidiram tratar de assuntos oficiais numa rede chumbrega e privada. Noves fora essa batatada, precisam explicar o conteúdo de suas falas. Sem explicações, a presença dos dois nos seus cargos ofende amor aleo bom senso. No caso de Moro, ofende também a leida gravidade. Ele entro uno governo amparando Jair Bolsonaro e agora depende de seu amparo. Se o capitão soltar, ele cai.

Em nome de um objetivo maior, a Lava-Jato e Moro cometeram inúmeros pecados factuais e algumas exorbitâncias, tais como o uso das prisões preventivas como forma de pressão para levar os acusados às delações premiadas. Como não houve réu-delator que fosse inocente, o exorbitante tornou-se conveniente. Ao longo dos anos, Moro e os procuradores cultivaram e, em alguns casos, manipularam a opinião pública. Agora, precisam respeitá-la.

Uma das revelações mais tenebrosas das mensagens é aquela em que, dias depois de divulgar o conteúdo do grampo de uma conversa da presidente Dilma Rousseff com Lula, Moro diz :“não me arrependo do levantamento do sigilo, era a melhor decisão, mas areação está ruim ”.
Não houve “levantamento” mas quebra, poisa conversa foi interceptada depois que expirara o prazo para as escutas. Dias depois de cometera exorbitância, Moro explicou se ao ministro Te ori Zavascki comum a argumentação desconexa, até sonsa.

A conversa de Dilma com Lula deu-se no dia 16 de março de 2016, quando eles concluíam a armação da ida do ex-presidente para a Casa Civil.

A reportagem do Intercept informa que, às 12h44m, Moro e Dallagnol discutiram a divulgação “mesmo com a nomeação”. Sabia-se que Dilma pretendia nomear Lula, mas o telefonema só ocorreu às 13h22m. Às 15h27m, Dallagnol disse que sua posição era de “abrir” o assunto, e às 18h40m ela estava no ar, detonando a manobra do comissariado petista.

Para quem tinha esse objetivo, foi um sucesso, mas não está combinado que juízes e procuradores se metam em coisas desse tipo. O viés militante de Moro e Dallagnol na Lava-Jato afasta-osdodevidoprocessolegal,aproximando-os da República do Galeão, instalada em 1954 em cima de um Inquérito Policial Militar que desaguou no suicídio de Getúlio Vargas.

June 8, 2019

Triste do país que dorme com tantos homicídios



Flávia Oliveira

Triste do país que deita — e dorme — em berço esplêndido, quando teve 65 mil filhos assassinados em um ano. Foi devastadora a edição 2019 do Atlas da Violência, publicação do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que deveria deixar insones autoridades e sociedade civil, tão assombrosos são os números da epidemia homicida capturados da base de dados do sistema de saúde. Desta vez, os 13 pesquisadores, além de quantificarem e qualificarem a tragédia que avança sobre jovens, negros, mulheres e LGBTIs, apresentaram gênese e desdobramentos da expansão das facções do tráfico de drogas do Rio de Janeiro e, sobretudo, de São Paulo, Norte e Nordeste adentro.

O Brasil experimentou em 2017 o recorde histórico de letalidade violenta intencional. Nunca tantos brasileiros foram assassinatos, nem em números absolutos (65.602) nem em relativos (31,6 mortos por grupo de cem mil habitantes). Sete em cada dez mortes foram causadas por armas de fogo, atualmente em vias de flexibilização da posse e do porte, promessa de campanha do presidente da República. Nas últimas décadas, nenhum governo foi capaz de pôr de pé um pacto pela redução dos homicídios e valorização da vida. Projetos políticos que chegaram aos palácios do Planalto e Guanabara, no caso do Rio de Janeiro, sugerem que também não será desta vez. O discurso do grupo político dominante é pontuado não só de justificativa, mas de exaltação ao extermínio de criminosos — que tampouco poupa inocentes.

A violência alcança mulheres: em 2017, foram 4.936 vítimas no país, 13 por dia, o maior número em dez anos. No Rio, o ano terminou com 401 mortas. Os 13 pesquisadores, debruçados sobre os dados do sistema de saúde, identificaram queda de 3,3% nos assassinatos fora de casa e aumento de 17,1% no ambiente doméstico. A informação confirma a escalada dos casos de feminicídio, tipificado em lei de 2015. Diz a publicação: “a possibilidade de que cada vez mais cidadãos tenham uma arma de fogo dentro de casa tende a vulnerabilizar ainda mais a vida de mulheres em situação de violência”. É um jeito não alarmista de avisar que os assassinatos de mulheres vão crescer.

Pela primeira vez, o Atlas da Violência se dedicou à população LGBTI, ainda invisível à luz da produção de dados e estatísticas oficiais. Na falta de legislação específica aprovada no Legislativo, o Supremo Tribunal Federal já aprovou por maioria a aplicação da lei contra o racismo nos crimes contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas trans e intersex — falta concluir o julgamento. Ainda assim, os pesquisadores encontraram em denúncias de violações de direitos humanos evidências de aumento dos casos de violência contra os LGBTIs no país. E recomendaram a criação de mecanismos de coleta e monitoramento de dados e indicadores específicos.

Mas são jovens e negros os grupos esmagados pela violência homicida. Têm a pele preta ou parda 75% das pessoas assassinadas no Brasil. Homicídio é causa de morte de seis em cada dez rapazes de 15 a 19 anos, a ponto de a publicação usar a expressão “juventude perdida”. A taxa de homicídios na faixa de 15 a 29 anos chega a 69,9 por cem mil habitantes, mais que o dobro da média nacional; em um ano, 35.783 perderam a vida. No Rio de Janeiro, o índice chega a 92,6 por cem mil; no Rio Grande do Norte, recordista, a 152,3.

O Brasil está literalmente exterminando o futuro. Estudo de 2010 do economista Daniel Cerqueira estimou que as mortes violentas de jovens equivaleram a 1,5% do Produto Interno Bruto. O custo social da barbárie nossa de cada dia — expresso em perdas econômicas, gastos com seguros e segurança privada e pública, despesas do Estado com forças policiais, sistema de saúde e assistência — beira 6% de toda a riqueza produzida.

O mesmo país que debate a necessidade de reformar a Previdência para acomodar o desequilíbrio crescente entre otamanho das populações ativa e inativa não se importa em enterrar milhares de jovens em idade produtiva. Faltam políticas públicas que aplaquem a evasão escolar aguda no ensino médio, escassez de formação profissional e dificuldade de inserção no mercado de trabalho. O que há de sobra é munição.

ilustração ANDRÉ MELLO

June 5, 2019

Peixe Grande

Jair Bolsonaro durante pesca na Ilha da Samambaia, Rio de Janeiro. Ele reclamou que pescadores são prejudicados por proibição de trabalhar em área de proteção ecológica. Foto: Reprodução

Vinicius Sassine

A única lancha da equipe de fiscais do Ibama percorria os entornos das 29 ilhas que formam a Estação Ecológica de Tamoios, na Baía da Ilha Grande, no sul do estado do Rio de Janeiro, num dia do verão de 2012. Tentava impedir que atividades humanas maculassem a área de proteção ambiental, quando deparou com um barco praticando pesca ilegal na Ilha da Samambaia. Ao ser abordados, os pescadores se recusaram a se identificar. Um deles, no entanto, era conhecido: o então deputado federal Jair Bolsonaro.

O parlamentar alegou que não havia placa indicativa da proibição. Tinha uma vara de pescar na mão. “Eu não tinha arpão nem rede de arrastão. Só estava pescando umas cocorocas”, justificou Bolsonaro à época, em referência a uma espécie de peixe pequeno e abundante na região.
A Baía da Ilha Grande é a mais preservada do Estado. Seus 800 quilômetros quadrados — o equivalente à área territorial de Cingapura — são ricos em biodiversidade Marinha. Possui sete Unidades de Conservação. A Estação Ecológica de Tamoios é a única que abrange o espelho d’água. É uma Unidade de Conservação federal de proteção integral. Representa 6% da área da Baía, onde a atividade humana precisa ser autorizada. Situada entre Angra dos Reis e Paraty, encravada no Mosaico da Boicana, em plena Mata Atlântica, Tamoios é formada por um conjunto de 29 ilhas, ilhotas, lajes e rochedos e seu entorno marinho. É um paraíso habitado por espécies raras, como o boto-cinza, e peixes de grande porte que atraem a indesejada e proibida caça submarina.
A Ilha da Samambaia, onde Bolsonaro foi multado pescando, é uma das 29 que integram a Estação Ecológica de Tamoios, na Baía da Ilha Grande, no sul do estado do Rio de Janeiro. Foto: Marcelo Piu / Agência O Globo
A Ilha da Samambaia, onde Bolsonaro foi multado pescando, é uma das 29 que integram a Estação Ecológica de Tamoios, na Baía da Ilha Grande, no sul do estado do Rio de Janeiro. Foto: Marcelo Piu / Agência O Globo
Começava naquele verão uma batalha pessoal de Bolsonaro em favor da pesca em Tamoios. O então parlamentar chegou a recorrer à Justiça para que fosse autorizado a pescar ali. Afirmou que havia 15 mil pescadores na região sendo “humilhados e proibidos de trabalhar”. Ele foi multado em R$ 10 mil, menos da metade do salário que recebia mensalmente na Câmara dos Deputados. Peixe grande que era, nunca mais se esqueceu do chefe da equipe que o autuou.
O processo do Ibama que trata da multa de R$ 10 mil aplicada a Jair Bolsonaro é um compilado sobre o estilo do político. Investido no papel de presidente da República, Bolsonaro quer agora transformar a área de preservação ambiental na Cancún brasileira, alterando por decreto as regras de conservação, como anunciou no último dia 8.
“Ao ser surpreendido por fiscais, Bolsonaro disse que pescava com vara pequena, sem arpões ou redes, mirando apenas peixes abundantes na região. Ele alegou que não havia placas informando a proibição”
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No decorrer do processo administrativo no Ibama em que tentou se livrar da multa, Bolsonaro distorceu a informação sobre onde estava no dia em que foi flagrado dentro de um bote; pediu investigação do fiscal do órgão por falsa comunicação de crime; e acusou o servidor de prevaricar. A defesa nos autos foi conduzida por três funcionários do gabinete de seu primogênito, Flávio (PSL-RJ), os três remunerados pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e, agora, pelo Senado.
Os assessores de Flávio, deputado estadual por quatro mandatos consecutivos e eleito senador com 4,3 milhões de votos, advogaram pela derrubada da multa aplicada ao chefe do clã. Eles não usaram os serviços de nenhum escritório de advocacia — pelo contrário, forneceram como número de contato o telefone fixo do gabinete de Flávio na Alerj. Assim fizeram a advogada Lygia Regina de Oliveira Martan, que foi assessora parlamentar do deputado Flávio, e o suboficial da Marinha Juraci Passos dos Reis, que chegou a chefiar o gabinete da liderança do PSL na Alerj. Reis foi nomeado para representar Bolsonaro no processo do Ibama, mas seu nome não aparece no cadastro público de advogados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O principal defensor no processo é o coronel da Aeronáutica e advogado Miguel Ângelo Braga Grillo, chefe de gabinete de Flávio na Alerj pelo menos desde 2014. Martan, Reis e Grillo foram levados por Flávio para o Senado.
Fiscais do Ibama fotografaram peixe morto boiando na Ilha Grande após tentar escapar de redes e arpões de pescadores. Foto: Reprodução
Fiscais do Ibama fotografaram peixe morto boiando na Ilha Grande após tentar escapar de redes e arpões de pescadores. Foto: Reprodução
Até o último dia 8, não havia no processo qualquer transferência da defesa a outros advogados, mesmo com a eleição de Bolsonaro para a Presidência da República e com a ida de Flávio ao Senado. A advogada Karina Kufa disse que passou a centralizar a defesa de todos os processos relacionados a Bolsonaro, inclusive o procedimento administrativo no Ibama. “Desde que o presidente assumiu, os processos estão centralizados em mim. Isso demora muito, estou esperando os subestabelecimentos, que já foram enviados”, afirmou. Kufa foi designada pelo gabinete de Flávio para responder aos questionamentos de ÉPOCA. Ela não soube dizer se houve contrato de remuneração entre Bolsonaro e os três assessores do filho. “Provavelmente o contrato é ad exitum ( quando o pagamento é feito após eventual êxito no processo ).” Os assessores não responderam se existe contrato de remuneração e se receberam algum pagamento do presidente.
O êxito já ocorreu. Bolsonaro obteve três importantes vitórias no processo, todas elas alcançadas depois de ter sido eleito presidente. Primeiro, o Ibama anulou a multa aplicada, revertendo uma decisão que havia sido tomada na primeira e na segunda instância do órgão. O caso voltou à estaca zero, com a necessidade de que seja praticamente instruído outra vez, mais de sete anos depois do flagrante da infração ambiental. A segunda vitória foi a constatação pelo próprio Ibama de que o caso pode estar prescrito. Um parecer diz que a prescrição ocorreu há mais de um ano. Um terceiro êxito ocorreu fora dos autos: o Ibama exonerou o servidor José Olímpio Morelli do cargo de chefe do Centro de Operações Aéreas. Morelli foi quem multou Bolsonaro na área de preservação em Angra dos Reis. Funcionário público por 17 anos, ele afirmou, em entrevista à Agência Pública, que seu afastamento foi uma “vingança pessoal” do agora presidente.
Agora, o presidente pretende retirar o status de área de preservação da Estação Ecológica de Tamoios, onde foi flagrado com farto material de pesca.
“Procuradores investigam a anulação da multa aplicada ao hoje presidente. O processo administrativo voltou à estaca zero e o crime ambiental pode estar prescrito, reconheceu o Ibama”
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Os defensores de Bolsonaro no Ibama têm um longo histórico político com Flávio e com o partido da família, o PSL. Grillo é vice-presidente do partido no Rio; Flávio é o presidente. Agora no Senado, recebe salário de R$ 22.900. Na Alerj, o salário era semelhante. O Ministério Público no Rio convocou o coronel da Aeronáutica a depor sobre o caso de Fabrício Queiroz, o ex-assessor e ex-motorista de Flávio que retinha parte dos salários do gabinete. Reis, por sua vez, é suplente da comissão executiva do PSL no estado. Na Alerj, ganhava R$ 12.600. No Senado, mais especificamente no escritório de apoio no Rio, recebe R$ 8.900. Já Martan segue figurando como advogada de Flávio e do pai em diversos processos, como no inquérito do “Você não merece ser estuprada”, frase dirigida à deputada Maria do Rosário (PT-RS), no Supremo Tribunal Federal (STF). No gabinete na Alerj, recebia quase R$ 10 mil. No Senado, como assessora parlamentar, recebe R$ 22.900.
A primeira defesa de Bolsonaro no processo no Ibama foi feita por ele mesmo. São duas páginas em que o então deputado usou a data escrita no auto de infração como a data da infração. Ele alegou que, no dia em que aparece no registro dos fiscais, ele havia viajado para Brasília. A infração, porém, ocorrera dois meses antes. Ainda em 2012, o então deputado confere a Grillo e Reis a possibilidade de o representarem nos autos. O primeiro ato de defesa do chefe de gabinete de Flávio Bolsonaro registrou que “o requerente cabalmente demonstrou que não se encontrava na localidade referida no ato infracional”. E que o Ibama havia deixado de adotar ações por mais de 90 dias para encerrar a instrução do processo. Por fim, a defesa disse existir “confessa prática de crimes funcionais por parte do agente autuador” e pediu a abertura de processo administrativo disciplinar. O documento foi assinado por Bolsonaro e Grillo.
A defesa mais consistente foi apresentada um ano depois, com assinatura de Bolsonaro, Grillo e Martan. Eles alegaram descumprimento de prazos legais, inconsistência de documentos anexados aos autos, incoerências de declarações e falta de critérios na fixação de multas. “Os fatos ora descritos deixam claro que o agente José Olímpio Morelli agiu com a intenção deliberada de atingir o autuado e não a de exercer sua função pública”, afirmaram, em relação ao fiscal que anos mais tarde seria exonerado de cargo de chefia do Ibama, nos primeiros meses do governo de quem ele multara por pesca ilegal. Bolsonaro e seus defensores pediram na mesma peça a anulação da multa e uma investigação sobre a atuação de Morelli “ante a confessa prática de crime de prevaricação e de outras condutas incompatíveis efetuadas pelo agente autuador”.
José Olímpio Morelli, que multou Bolsonaro, foi afastado de suas funções após 17 anos como servidor público. Foto: Reprodução de vídeo
José Olímpio Morelli, que multou Bolsonaro, foi afastado de suas funções após 17 anos como servidor público. Foto: Reprodução de vídeo
Ao anular a multa e determinar que o caso volte à estaca zero, o Ibama, já após a eleição de Bolsonaro para a Presidência, concordou com o argumento de que houve um cerceamento da defesa. O argumento foi expresso num parecer da Advocacia-Geral da União (AGU). Um novo parecer, agora da área técnica do Ibama, apontou a prescrição da infração. A decisão caberá ao superintendente do órgão no Rio, alinhado ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Salles e Bolsonaro costumam repetir que existe um “excesso de multas” por parte do Ibama e dão cabo a uma flexibilização nas regras de fiscalização ambiental.
Bolsonaro foi flagrado dentro de um bote, com vara, material de pesca e peixes dentro de um cesto, numa área onde a presença é proibida. Conseguiu reverter e subverter toda a acusação formulada a partir do flagrante, inclusive com punição ao fiscal e promoção de seus defensores, agora servidores de confiança no gabinete do filho no Senado.
Em março, o Ministério Público Federal em Angra dos Reis abriu um inquérito para investigar possíveis atos de improbidade administrativa na anulação da multa aplicada a Bolsonaro. A defesa do agora presidente decidiu-se por uma linha menos combativa. “Antes, havia uma orientação dos outros advogados de que ele deveria processar todo mundo. Essa não é minha orientação”, disse a advogada Karina Kufa.

Aula de história



SERGIO AUGUSTO

O professor de história entra, sorridente, na sala de aula, deposita uma pasta sobre a mesa e vai direto para o que no seu tempo de estudante chamavam de quadro-negro e agora é verde. Sem hífen, quadro negro são duas palavras separadas, um substantivo e um adjetivo, usadas para qualificar uma situação ruim, que tanto pode ser a saúde periclitante de alguém, a economia do Brasil ou apenas uma pintura de Romero Britto.
Na também chamada lousa o professor escreve, com um toco de giz, oito números, verticalmente enfileirados: 1538, 1551, 1580, 1586, 1621, 1678, 1721 e 1723.
“Estes números são datas, anos”, explica. “Em cada um desses anos, criou-se uma universidade na América Latina. Às vezes, duas, como ocorreu em 1551, quando surgiram as primeiras universidades de Lima, no Peru, e da Cidade do México, e em 1721, quando foram fundadas as universidades de Havana, em Cuba, e Caracas, na Venezuela.” Apontando para o ano de 1538, o professor ensina: “A primeira de todo o continente foi construída na ilha de São Domingos, no Caribe, ao lado de Cuba”.
Aí deu uma pausa, logo retomando a lição: “Dez capitais da América Espanhola tiveram universidades antes do Brasil. Além das citadas, Bogotá, Quito, Santiago, Guatemala e Assunção. Quase um século depois da última desta lista, a paraguaia, é que ganhamos nossa primeira organização de ensino superior, a Academia Real Militar, dois anos após a chegada da corte portuguesa ao Rio, em 1808. Ou seja, precisamos da ajuda de Napoleão para nos livrarmos da obrigação de estudar em Coimbra”.
Antes que algum aluno lhe perguntasse se Bonaparte financiara a construção do pioneiro estabelecimento acadêmico real e militar, o professor explicou: “Como vocês sabem ou deveriam saber, d. João VI e sua corte fugiram para o Brasil por medo da invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas. Foi nessas circunstâncias que ganhamos nossos primeiros cursos superiores. Mas antes de uma universidade igual às das capitais latino-americanas vizinhas, tivemos uma academia militar e uma escola de cirurgia, na Bahia.”
Algum aluno mais perspicaz poderia ter argumentado que, apesar da demora no aprimoramento do ensino nestas paragens, afinal criamos universidades de reconhecida excelência, como a USP, por exemplo, e nenhum país do sul do continente tornou-se uma potência cultural e científica por ter construído universidades antes de nós.
Mas como ninguém na turma levantou essas questões, ficou no ar a impressão, não de todo equivocada, de que nossa educação nunca se recuperou direito do atraso com que foi implantada sem a canga jesuítica.
“Nosso atraso não se restringe ao campo do ensino”, prosseguiu o professor. “Demoramos a tomar providências necessárias num bocado de coisas. Somos uma nação com vocação para o atraso, uma nação atrasada.”
De volta ao quadro, o professor apagou as dez datas ali arroladas e, no mesmo espaço, acrescentou duas: 1794 e 1888. E, já de frente para os alunos, falou: “Poderia acrescentar mais uma dúzia de datas, pois entre estas duas aqui quase 20 países americanos aboliram a escravidão, alguns quase simultaneamente. Haiti deu a partida, em 1794, no bojo de uma revolução anticolonialista e antiescravocrata deflagrada e vencida por sua população negra. Ou seja, os haitianos não se livraram da escravidão por um decreto lavrado pela elite branca da ilha, mas lutando por sua independência do domínio francês”.
Enquanto dirigia o olhar de volta ao quadro, acrescentou: “A última data se refere à nossa Lei Áurea e identifica o último país do Novo Mundo a libertar seus escravos. Outro atraso em relação a todas as repúblicas ao redor de nosso solitário império”.
Apagando a lousa, o professor começou a explicar por que juntara os dois atrasos, o da educação e o do fim da escravidão. Ambos, segundo ele, explicariam o Brasil, nosso passado e nosso presente, nosso arraigado racismo e tantas outras mazelas.
“Um sujeito nascido na Espanha, depois naturalizado americano, George Santayana, disse, há mais de um século, uma das frases mais bonitas e verdadeiras que já li: ‘Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la’, frase que eu, aliás, não me canso de repetir.”
Tirando de sua pasta um livro de quase 300 páginas, continuou: “Por acaso reencontrei essa frase do Santayana numa das epígrafes deste livro aqui. Anotem seu título: Sobre o Autoritarismo Brasileiro. Foi escrito pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz e acaba de ser lançado. Adotei-o como nossa leitura do mês, quem sabe do semestre, pois se encaixa à perfeição nos objetivos do nosso curso”.
Com uma rápida folheada até a página 223, o professor detém-se na epígrafe que abre o último capítulo, dedicado aos nossos fantasmas do presente, e a lê, sem disfarçar seu deleite: “O Brasil tem um enorme passado pela frente’. Esta é do Millôr Fernandes e resume tão bem as intenções do livro quanto a do Santayana”.
As raízes de nosso racismo, de nosso mandonismo, de nosso patrimonialismo, da corrupção, desigualdade social, violência e intolerância que diariamente testemunhamos – enumera o professor, percorrendo com o dedo o sumário – “estão todas neste livro, examinadas e historiadas pela autora. Embora ela faça frequentes e procedentes alusões ao tenebroso tempo presente, os nomes dos poderosos do momento permanecem escrupulosamente ocultos por elipse em suas páginas”.
Ao vislumbrar um aluno de celular em punho, no fundo da sala, o professor suspirou com ar de enfado e, dirigindo-se ao pupilo, disse: “Não se esqueça de me enviar uma cópia por e-mail”.

June 2, 2019

O novo Febeapá

Xexeo Foto: OGlobo
Ninguém está livre de proferir uma piada de mau gosto. Não é porque o sujeito virou prefeito ou ministro que uma dádiva dos céus faz com que ele só diga coisas certas e relevantes. Se bem que prefeitos e ministros têm o dever de pensar duas vezes antes de falar qualquer coisa. Mas, pelo jeito, os prefeitos, ministros e presidentes que nos cercam não pensam nem uma vez inteira antes de falar. É o que ficou demonstrado esta semana. 

Começou na terça-feira, num evento da prefeitura, quando Marcelo Crivella achou apropriado descontrair o ambiente com uma piada sem graça: “O pessoal está sugerindo aqui de colocar o nome da ciclovia de Vasco da Gama”, disse ele, para completar: “Está caindo muito”. Como é que é? O sujeito é responsável por uma ciclovia que já despencou quatro vezes, matou duas pessoas, e ele ainda acha que pode fazer chiste com isso? Pior, quando foi cobrado, três dias depois, pela inconveniência, pôs um sorriso nos lábios e disparou: “Quem vê o vídeo vai ver que teve um flamenguista que fez a proposta. Eu coloquei em votação exatamente para fazer a brincadeira e depois fui claro quando disse ‘a proposta foi rejeitada’. Isso é brincadeira que todo carioca faz.”
Não é não, prefeito. O carioca, geralmente, é sensível e sabe que brincadeira tem hora. Mas há exceções, é claro. 

Crivella parecia ter o direito de ganhar o troféu Mico da Semana, mas aí, na quinta-feira, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, postou um vídeo na sua conta no Twitter. Aparentemente gravado em seu gabinete, o vídeo mostra o ministro entrando pelo canto esquerdo da tela, portando um guarda-chuva aberto e cantarolando “Singin’ in the rain”, de Arthur Freed e Nacio Herb Brown. Mas o que é isso? Weintraub quer fazer teste para algum musical? Não! Quer denunciar fake news. “Essa última fake news, fresquinha pra vocês, alega que a paralisação da recuperação do Museu Nacional, aquele que o reitor da UFRJ não conseguiu explicar...” Peraí, como é que é? O que o ministro quis dizer? Que o reitor não soube explicar o museu? Como assim? O museu precisa de explicação? Bem, deixa o vídeo rodar. O ministro continua: “O que acontece? Haviam emendas parlamentares...” Para de novo. O sujeito é ministro da Educação e não conhece uma regra básica de concordância verbal?

Geralmente, esse erro é cometido por quem não sabe português direito, mas quer falar difícil. Aí surge o “houveram erros” ou o “haviam emendas”. No post, o ministro apresenta o vídeo com o seguinte texto: “Mais uma #FakeNews. Agora, sobre o contingenciamento de verbas no Museu Nacional, do Rio de Janeiro. Descubra a verdade”. Pois descobri. A verdade é que o ministro não sabe que o verbo haver, no sentido de existir, não varia. Nunca! É fácil, ministro. Não varia nunca! 
Nos anos 60 do século passado, o genial cronista Sergio Porto, na pele de seu heterônimo, Stanislaw Ponte Preta, inventou o Febeapá — o Festival de Besteira que Assola o País. Nele, colecionava burrices, bobagens, idiotices, cretinices, enfim, besteiras proferidas por políticos e autoridades do Brasil. Nos dias de hoje, ele realizaria um Febeapá e tanto.

Gentil com Jair, João?

Conrado Hübner Mendes

 

Bill de Blasio, prefeito de Nova York, não estava na festa. Semanas antes, mandara avisar a Bolsonaro que “seu ódio não é bem-vindo”. Por considerar que a declaração caracterizava a “ideologização da atividade”, o presidente brasileiro cancelou a visita. Jair acha ideológico o que não é espelho. Desconfia que sua sombra também conspira contra ele. O prefeito nova-iorquino aproveitou para cutucar a masculinidade do capitão: “Valentões geralmente não aguentam um tranco”. Ernesto Araújo não avisou que, na diplomacia, presidente não passa recibo para prefeito.
O evento de homenagem a Bolsonaro foi mantido, e João Doria farejou a oportunidade. Avisou que falaria em inglês para que o prefeito não pudesse se fazer de desentendido: “Da próxima vez, seja gentil com o presidente do Brasil. (...) Você pode não gostar de Jair Bolsonaro, mas ele é o presidente eleito e merece respeito em qualquer parte do mundo, sobretudo aqui na América”. Lembrou que aprendeu a respeitar “a América” por “seu respeito a liberdade, pluralidade e direitos universais”. Encerrou com um grito de “Viva o Brasil!”.
Qual Brasil, João? O Brasil do “não vou combater nem discriminar, mas, se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”? Do “filho gayzinho leva um coro e muda seu comportamento”? Ou aquele do “erro da ditadura foi torturar e não matar” e do “Polícia Militar do Brasil tinha que matar é mais”? Por essas rasteiras da história, esse Brasil assumiu a Presidência.
Por falar em polícia que mata e tortura, João, lembro-me também do estado brasileiro em que, “a partir de janeiro, polícia vai atirar para matar”, do, “se forem bandidos, estão indo para o lugar que merecem” ou do que dá “parabéns aos policiais por colocarem bandidos no cemitério”. Por essas surpresas da história, esse virou governador de São Paulo.
Desculpe tirar suas frases do contexto, João, corrija-me por favor se elas queriam dizer algo diverso de sua literalidade. Alguém precisa lhe dizer que este Brasil não é nem o da Constituição brasileira, nem o da Constituição da “América”, como prefere. Goste-se ou não do gesto de Bill de Blasio, a provocação estava em total sintonia com os ideais de “liberdade, pluralidade e direitos universais”. Combater o ódio ao qual ele se referia representa mais brasileiros do que imagina (pelo menos os quase 60% do eleitorado brasileiro que não votou em Jair Bolsonaro).
“A afinidade ideológica entre Jair e João não deve ser subestimada”
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No campo da segurança, a linhagem de Doria é apenas um pouco mais polida e envernizada. Quando a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, após o trabalhoso concerto entre vários partidos espalhados pelo espectro ideológico e o intenso diálogo com a sociedade civil, aprovou a lei de criação do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, Doria disse que, embora reconhecesse “os nobres propósitos do legislador”, viu-se “compelido a negar assentimento ao projeto”. O veto foi uma pérola do que José Carlos Dias chamou de “Brasil declaratório”, aquele que “brada sua civilidade enquanto corrói os pilares da democracia por dentro”.
As razões jurídicas do veto desprezaram as especificidades do órgão e recorreram a generalidades sobre separação de Poderes e simetria federativa para impedir a inovação institucional. Argumento para bacharel nenhum botar defeito. Notas de repúdio ao veto foram emitidas por todos os órgãos congêneres pelo país, pelo Ministério Público Federal e por mais de 50 organizações da sociedade civil. O Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, que integraria a estrutura do próprio Legislativo paulista, teria função de monitorar práticas de violência em prisões e delegacias, inspirado em órgãos parecidos de diversas partes do mundo e também de outros estados brasileiros e do governo federal.
Se sincera a motivação do veto, um governador preocupado com a tortura no estado que mais encarcera no país teria apresentado alternativa institucional que sanasse as alegadas ilegalidades. A sociedade paulista permanece à espera de mais do que isso: que ofereça soluções para a segurança baseadas em ciência e que comece por investir na dignidade de policiais, como prometeu em campanha. Em nome dos “direitos universais da América”, João.

Como Ricardo Salles tem desmontado a agenda verde em favor do agronegócio

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, reclama que recebeu a pasta sucateada, afirma que há “abusos” na fiscalização do Ibama e reconhece que há motivos para que agropecuaristas se sintam injustiçados. Foto: Tratamento sobre foto de Nacho Doce / Reuters

Ministro do Meio Ambiente dá sinais antagônicos à pasta ao ir na direção de licenciamentos flexíveis, menor controle de agrotóxicos e leniência com punições 
 

June 1, 2019

Ex-ministros e órgãos ligados a ciência e meio ambiente questionam redução do Conama

Conama discutiu resoluções como o licenciamento ambiental para empreendimentos que usam energia eólica Foto: Carlos Barria/Reuters/15-9-2013


Renato Grandelle

Instituída por um decreto presidencial nesta semana, a redução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) de cem para 21 integrantes provocou protestos entre ex-ministros , acadêmicos e membros da sociedade civil, que questionam se o colegiado conseguirá conduzir seus trabalhos diante de seu enxugamento.

Com a reforma, órgãos com ligação estreita com o meio ambiente, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ( ICMBio ) e aAgência Nacional de Águas , perderam seus lugares. Também não há mais assentos para o Ministério da Saúde e entidades ligadas a questões indígenas. Os estados deixaram de ter um representante cada — agora, serão apenas cinco vagas, uma por região geográfica. Os municípios, que contavam com oito assentos, terão dois, e sempre de capitais — uma medida criticada, já que desconsidera o interior.

Antes com oito vagas, as confederações de atividades econômicas terão apenas duas. E a representação da sociedade civil passou de 21 pessoas para quatro.
— A nova estrutura do Conama reduz a representação de segmentos da sociedade, sua capilaridade e transparência — critica José Sarney Filho, ministro do Meio Ambiente nos governos de FHC e Michel Temer.
O ex-ministro avalia que o colegiado é uma “caixa de ressonância, um Parlamento ambiental do país”.
— Nunca foi um órgão radical, porque tinha representantes da indústria, pecuária, estados, municípios, sociedade civil.
Criado em 1981, durante a presidência de João Figueiredo, o Conama esteve à frente de pontos cruciais da política ambiental do país. Por seu plenário passaram assuntos como o controle das emissões de poluentes de automóveis e orientações sobre a presença de substâncias químicas no solo.
O colegiado também definiu modos de recuperação das áreas de preservação permanente, determinou o licenciamento ambiental para setores econômicos, como a aquicultura, e também para empreendimentos que usam energia eólica. Estabeleceu critérios para uso e manejo da fauna silvestre e, também, o modo de inspeção de indústrias que utilizam produtos madeireiros.

Interferência ideológica

Antes mesmo da posse de Jair Bolsonaro , seu grupo de transição afirmou, em um documento, que o colegiado delibera suas pautas “emocionalmente, sem a devida técnica, sujeitando-se a interferências de ordem ideológica e corporativista pouco afetas à política de Estado”.
No entanto, a justificativa apresentada nesta semana para alterar a estrutura do Conama foi “garantir o princípio da eficiência administrativa para tornar mais objetivos e com melhor foco de atuação os trabalhos desenvolvidos em plenário, bem como nos grupos temáticos”.

O Ministério do Meio Ambiente (MMA) alega que a redução do conselho implicará em uma economia de 80% nos gastos com passagens e diárias dos membros que precisam se deslocar para as reuniões. A pasta banca as despesas de 19 integrantes do Conama. O valor absoluto economizado não foi divulgado porque, segundo a assessoria de imprensa do MMA, “varia em função da época do evento”.
O ex-ministro Carlos Minc , que esteve à frente do Meio Ambiente no governo Lula, considera que, ao contrário do apregoado pelo governo, a nova configuração do Conama não mantém a proporcionalidade de cada setor:
— Os órgãos ambientais eram uma minoria representativa, que não podia ser ignorada. Agora, no entanto, serão um fragmento simbólico, servirão apenas como carimbadores das decisões antiecológicas do governo — lamenta. — Em dois anos no ministério, fui pelo menos 20 vezes ao Conama para debater diversas questões, do Fundo Amazônia a bacias hidrográficas.
Ex-presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Cláudio Maretti pondera que, se o problema do conselho era a falta de eficiência, o governo poderia ter debatido alternativas dentro do próprio colegiado.
— O ICMBio administra unidades de conservação que equivalem a 15% do território nacional. É um órgão fundamental para a discussão da política de meio ambiente — defende. — Nele estão centrados temas como a água que abastece as cidades e a sobrevivência de pelo menos 70 mil famílias de comunidades tradicionais.
Presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência — órgão excluído na nova configuração do Conama —, Helena Nader avalia que a saída de membros da academia é um sinal de negligência à “excelência científica”.
Helena lembra que o Brasil foi sede da Rio 92, que foi o berço das convenções sobre biodiversidade e mudanças climáticas, e da Rio+20, onde foram estabelecidos os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Somados, eles estabelecem cerca de 500 metas, em que o meio ambiente interage com diversos setores.
— O Brasil passou a ser respeitado internacionalmente porque aprendeu a conciliar a atividade agropecuária com a sustentabilidade. O Conama é uma instituição-chave para a economia. É onde se estabelece um diálogo entre pessoas de alto conhecimento. E, sem diálogo, ninguém governa.