Eles foram apagados há menos de três meses, mas já estão de volta. E
desta vez não pelas mãos de grafiteiros, mas pela falta de "demãos" da
própria prefeitura.
Os grafites da avenida 23 de Maio,
na zona sul de São Paulo, que foram quase inteiramente cobertos por uma
tinta cinza a mando de João Doria (PSDB) em janeiro, estão ressurgindo
aos poucos nos muros da via.
Em vários pontos da av. 23 de Maio, os grafites cobertos de tinta cinza pela gestão Doria estão voltando a aparecer por baixo da pintura
O prefeito considerou a pintura o principal erro de sua gestão, após uma pesquisa Datafolha mostrar que ela foi reprovada por 61% dos paulistanos.
Agora, em diversos pontos entre o parque Ibirapuera e o centro, o revestimento está descascando ou deixando transparecer os desenhos que há pouco tempo estiveram ali.
Para o grafiteiro Mauro Neri, 36, do projeto Veracidade, isso não é novidade. "É o que chamo de grafite reverso, que aparece quando se apaga a tinta, e não quando se pinta."
O artista foi detido em janeiro, quando lavou o cinza que cobria suas obras –embaixo do complexo viário João Jorge Saad, o Cebolinha– apenas com água e um esfregão, técnica que usa desde 2010.
Isso é possível, segundo ele, porque a tinta utilizada para apagar os grafites e pichações em São Paulo normalmente é composta por uma proporção maior de cal e menor de corante e aglutinante (cola), portanto sai mais facilmente.
"As empresas de limpeza usam essa mistura porque ela vence em pouco tempo, para ganharem mais dinheiro apagando o grafite de novo", diz.
O grafiteiro e ativista Mundano, 31, também usou só água e esponja para ressuscitar uma obra sua em janeiro, no Largo da Batata (zona oeste), que trazia a frase "São Paulo não é Miami".
O artista fazia referência ao "grafitódromo" que o tucano quer criar, inspirado em um bairro da cidade americana. "Quando você apenas limpa a sujeira, ela volta. O [programa] Cidade Linda não está focando em soluções reais, mas só numa maquiagem monocromática, cinza", critica.
Em manifestação nas redes sociais, o procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima, que integra a força-tarefa da Operação Lava Jato, disse neste sábado (20) que o Brasil vive "uma história de horror" após as revelações de corrupção por executivos delatores da JBS.
Para ele, que defendeu punição de todos os envolvidos em ilegalidades, o
Brasil está "mais para The Walking Dead" do que House of Cards —numa
referência a duas séries de TV, a primeira sobre zumbis e a segunda sobre a política americana, cujo enredo vem sendo comparado à crise política nacional.
"[É] um país de zumbis morais", afirmou, em nota no Facebook, em que diz se posicionar "como cidadão".
Para ele, as gravações do presidente Michel Temer (PMDB)
feitas pelo delator Joesley Batista são "estarrecedoras", e não há
"relativismo moral" nem justificativa econômica que explique a conversa.
"Nem me venham dizer que devemos tapar o nariz para isso, na esperança
de uma volta à normalidade do sistema econômico", escreveu. "As
motivações econômicas não podem justificar que esses cadáveres
insepultos continuem entre nós."
Lima afirma que, nas escutas, estão "explicitadas as bases de tudo o que
de errado, podre e vil a Operação Lava Jato tem tentado mostrar".
Ele ainda critica a "cegueira ética intencional" daqueles que aplaudiram
a Lava Jato quando revelou "a podridão dos governos do PT" e, agora,
"desejam fechar os olhos" às suspeitas contra políticos do PSDB e PMDB.
Tem surgido um tipo especial de golpista no Brasil: aquele que pede
eleições diretas. De todos os tipos de golpe (baixo, traumático,
militar, de mestre, da maioridade, do sequestro), esse novo tipo de
golpe é o único que não quer transferir o poder pras mãos de uma pessoa
só mas para as mãos de um grupo de 140 milhões de pessoas. Ou seja:
bagunça.
Por que se trata de um golpe? Pra começar, porque não tá previsto na
Constituição. Nossa Carta Magna não prevê eleições diretas na segunda
metade do mandato. No entanto, acho melhor não evocar a Constituição,
nesse caso, porque ela também não prevê impeachment sem crime de
responsabilidade e nem terceirização da atividade fim e nem a
possibilidade de pagar trabalhador rural com casa e comida. Em vez disso
tem lá toda uma parte sobre respeito ao meio ambiente, direito ao
lazer, e diz que o empregado tem direito a uma parcela dos lucros da
empresa.
Nossa Constituição parece que foi escrita na praça Roosevelt. Se o
pessoal começar a ler, pode dar merda pro nosso lado. Vamos continuar
usando só como calço de mesa, que pra isso tem servido bem (embora
pudesse ser um pouco mais fina, até pra isso a americana é melhor).
Por isso, o melhor argumento contra esse golpe não é constitucional.
Precisamos dizer a verdade: quem quer "Diretas Já" na verdade só quer
botar o Lula lá. Sim, eles acham que enganam, mas existe um plano claro:
primeiro derrubam o Temer, depois põem o povo pra votar no Lula. Sim,
tudo já foi combinado com o povo. Se for provado que o povo tá nessa,
vai ser a primeira vez que 140 milhões de pessoas conspiraram juntas.
"Não dá pra comprar uma nação inteira." O que seria o Bolsa Família
senão um mega esquema de compra de voto?
Há quem chame esse processo de conspiração coletiva por outro nome:
democracia. Eu chamo de golpe mesmo. Não é porque o povo tá envolvido
nessa que não é golpe. É um golpe democrático, mas é golpe, porque o
povo não consultou o principal mandatário da nação: o mercado.
Eleição direta, pra mim, seria se o mercado escolhesse diretamente o
presidente. Quando o povo vota, a eleição deixa de ser direta, porque tá
passando por cima dos investidores. E dá um puta trabalho depois. Tem
que inflar um pato, tirar o presidente, desinflar o pato, botar outro
presidente. Por isso proponho eleições diretas de verdade: reúne o PIB e
deixa ele escolher. Vai poupar trabalho pra todo o mundo.
O doleiro Alberto Youssef, que enviou US$ 234 milhões ao exterior em contratos fictícios
Três anos depois de deflagrada a Operação Lava Jato, brechas legais e a falta de transparência na origem do escândalo continuam intocadas, ampliando as chances de um esquema parecido de desvio de recursos públicos voltar a se repetir.
A Folha ouviu alguns dos principais envolvidos na investigação (força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, o órgão de inteligência financeira do Ministério da Fazenda, a Petrobras e o Banco Central) para apontar o que mudou desde março de 2014.
Um dos buracos que persistem, por exemplo, é a relação de congressistas com lobistas, que funciona sem qualquer controle.
O lobby no Congresso é uma caixa-preta. Mesmo após a Lava Jato, Senado e Câmara não chegaram a qualquer iniciativa para alterar procedimentos sobre o comportamento dos parlamentares.
As investigações mostraram que lobistas como Fernando Baiano e Cláudio Melo Filho, da Odebrecht, tinham acesso livre às dependências da Casa e estavam desobrigados de declarar para quem trabalhavam, o local das reuniões, qual a matéria específica do seu trabalho (como projeto de lei ou medida provisória) e com quais parlamentares tratavam.
Da mesma forma, todos os parlamentares brasileiros são desobrigados de informar com quais lobistas se reúnem e o objetivo das conversas.
Para o coordenador da Lava Jato no Ministério Público Federal, Deltan Dallagnol, esse ponto é apenas uma das mudanças que o Congresso deixou de fazer.
Ele menciona as penas para os casos de corrupção, que considera "piada de mau gosto". "As penas são inadequadas e mais, raramente se chega a essas penas. O sistema recursal é um cipoal, praticamente infinito, que permite perpetuar o processo até que aconteça a prescrição", diz.
Desde que a Lava Jato foi às ruas, também continua baixa a transparência dos atos do presidente, diretores e executivos da Petrobras, cujos compromissos não eram divulgados pelo menos até a semana passada.
A Lava Jato mostrou que gestores da companhia, como Paulo Roberto Costa e Pedro Barusco, mantinham conversas frequentes com parlamentares sem que fossem obrigados a informar esses contatos publicamente.
O diretor de Governança, Risco e Conformidade da Petrobras, João Adalberto Elek Junior, menciona "assuntos estratégicos" para contemporizar sobre a falta de transparência das agendas.
"Estamos trabalhando em como fazer um uso melhor de agenda. Existe um regramento para isso", disse. "Agora, a gente sempre tem aquela preservação da agenda quando a gente trata de um assunto de natureza estratégica".
No tema da contratação de obras civis, a Petrobras continua seguindo regramentos internos próprios, como um decreto de 1998, para tocar seus processos de contratação. A empresa se recusa a adotar a lei das licitações, praticada pela administração pública em todo o país.
Em depoimento à Lava Jato, Paulo Roberto Costa explicou que, como diretor, tinha poderes extremos de convidar ou desconvidar empreiteiras para entrar no "clube", o cartel que pagava milhões de reais em propina.
Assim, um diretor tinha a capacidade de prejudicar empreiteiras que não quisessem pagar o suborno, bastando que as retirasse da lista de possíveis convidados.
A Petrobras argumenta que houve um reforço no sistema interno desse tipo de decisão. "Esse grau de flexibilidade que um diretor poderia ter no passado, de tomar decisões em caráter individual, foi fortemente combatido", disse Elek. "Agora as decisões são submetidas a um comitê."
SEM AMARRAS
No âmbito do sistema financeiro, continua sem qualquer amarra o sistema de remessa de dólares para o exterior por meio de contratos de câmbio. O doleiro Alberto Youssef enviou pelo menos US$ 234 milhões sem ser incomodado, em cinco anos. Os contratos eram fictícios.
O sistema não mudou e, para Banco Central e Coaf (órgão do Ministério da Fazenda), deve continuar como está.
Ambos entendem que o mercado não deve sofrer restrições mas, uma vez detectada a irregularidade, a ação punitiva deva ser dura. O BC diz em nota que "mantém permanente monitoramento e fiscalização do mercado de câmbio" e que detectou em 2014 "operações suspeitas" que foram atacadas em 2015.
Gregg Allman’s music became a foundation for both southern rock and the extrapolations of jam bands.
Credit
Karsten Moran for The New York Times Foto de: Karsten Moran for The New York Times
All
of the mythic South was in Gregg Allman’s music: soul, blues, country,
gospel, rock ’n’ roll, jazz. The roadhouse, the back porch, the juke
joint, the church, the farm, the highway.
It
was in the weary, determined drawl of his voice, rising to a sustained,
honeyed ache or rasping with stubborn gumption. It was in the way his
keyboard playing took turns steering the Allman Brothers Band and
creating its backdrop: the Hammond organ that could be greasy or
celestial, the piano that summoned hymns, honky-tonk, boogie-woogie and
jazz. (He played serviceable guitar, too.) And it was in the songs Mr.
Allman, who died Saturday at 69,
wrote, putting terse, bluesy riffs behind lyrics that spoke of endless
troubles, domestic and universal, and the will to survive them. “Bearing
sorrow, having fun,” as he put it in “Melissa.”
It
all sounded natural and rooted, straight from the Georgia soil, when
the Allman Brothers Band unveiled its musical hybrid on its self-titled
1969 debut album. It was music that would become a foundation for both
the sturdy structures of southern rock and the far-flung extrapolations
of jam bands.
There
was radical effort behind the band’s seeming ease. The Allman Brothers
Band had thoroughly figured out the segues among all of the styles they
merged: where rhythms could coincide and metamorphose, where simple
harmonies could support jazzy elaboration, how a soul revue’s horn lines
or a country band’s fiddle could be translated onto the band’s guitars
and keyboards. Outside the Allman Brothers Band, Mr. Allman led his own
jam bands, although at times his studio albums attempted something
crisper and more radio-friendly.
The
birthright the Allmans’ music claimed was geographical — American and
particularly Southern — and with it came a willingness to move past
genre lines and all their connotations of race and class. It was all at
their fingertips, inviting listeners to follow.
His
songs also drew on his own history, particularly in later years when he
looked back on his own past excesses and drug problems. His voice was
more weathered by then, but it stayed strong all the way into the 2010s,
past the Allman Brothers Band’s retirement in 2014. Steeped in the blues, he had always sung like someone experienced beyond his years.
Here are 10 definitive Gregg Allman songs. Unless otherwise noted, they were recorded by the Allman Brothers Band.
“Whipping Post” (1969)
“Whipping Post” carried the Allman Brothers to improvisational peaks through decades of concerts.
It’s a lover’s lament carried by a whirlwind through blues, jazz and
rock. Its riff first appears in a tricky 11/8 meter, then straightens
out to 12/8; its chorus heaves into a bluesy half time for a desperate a
cappella plaint — “Good Lord, I feel like I’m dyin’!” — but then revs
up again, lingering over an unchanging harmonic foundation that foments
open-ended improvisation. The band could push “Whipping Post” in any
direction — and did.
“Midnight Rider” (1970)
The
narrator of “Midnight Rider” is a fugitive in motion: broke and tired,
chased by unnamed pursuers. Mr. Allman’s music makes his journey a
one-chord meditation interrupted by a few bars of tension when he sings,
“I’m not gonna let ‘em catch me”; the rhythm keeps him moving.
“Dreams” (1969)
A
jazzy waltz with a circular, three-note bass riff and pattering
percussion cross-rhythms introduced the Allmans’ most psychedelic side
on their 1969 debut album. It’s a declaration of ambition to realize
“dreams I’ll never see”; it also stretched a long way in concert.
“Ain’t Wastin’ Time No More” (1972)
Mr.
Allman’s rolling piano riff is part gospel, part Mardi Gras mambo, and
his lyrics fight their way out of mourning toward gratitude for being
alive as Dickey Betts’s slide guitar pushes ahead. The song was on “Eat a
Peach,” the album completed after the death of Duane Allman, Gregg’s brother and the band’s founding guitarist; it insists, “You can’t let one precious day slip by.”
“Melissa” (1972)
“Melissa”
is a ballad about a constant traveler “knowing many, loving none” while
thinking about a woman back home. A hobo? An itinerant musician? The
song doesn’t decide whether to stay footloose or settle down; it lingers
between restlessness and longing.
“Rockin’ Horse” (2003)
“Never
could use just a little/Never could leave it alone.” Warren Haynes, a
latter-day member of the Allman Brothers, sang this song with both the
Allman Brothers and his own band, Gov’t Mule. But Mr. Allman helped
write it and his story was in it, facing down a lifelong
self-destructive streak he had survived. Even in this studio recording,
the song’s choppy, minor-key New Orleans groove spurs bluesy guitar
solos heading toward Hendrix territory.
“Wasted Words” (1973)
A
two-fisted piano boogie with a pugnacious slide guitar, “Wasted Words”
is a surly lover’s quarrel escalated to theological ground. The singer
compares his “baby” to God and Satan, and while he points out, “I ain’t
no saint,” he’s not confessing to any specific sin.
“It’s Not My Cross to Bear” (1969)
The
form is a by-the-book slow blues, with plenty of room for Mr. Allman to
let the vocal drama build, from bemoaning “our bad, bad misfortune” to
full-throated shouts and roars at the end. But it’s a crescendo of
anger, not sorrow; as he leaves the relationship wreckage behind, he
snarls, “Don’t reach out for me, babe.”
“Sailin’ ’Cross the Devil’s Sea” (1994)
A
low, bruising guitar riff and seething organ chords carry a tale of
temptation, blind lust and infidelity: “the beginning of the end of my
happy home.” Repentance arrives far too late.
“Floating Bridge” (2011)
Written
by the bluesman Sleepy John Estes, “Floating Bridge” is about a brush
with death: getting rescued from drowning. It’s from Mr. Allman’s most
recent solo album, “Low Country Blues,” and there’s relief and
remembered terror in his voice.
Correction: June 1, 2017 An earlier version of this story misstated the singer of “Rockin’ Horse.” It was Warren Haynes, not Gregg Allman.
Professores dizem sofrer censura de pais e alunos nas salas de aula
Profissionais de educação são acusados de promover doutrinação ideológica
por Paula Ferreira / Renato Grandelle
/ O GLOBO
Miguel diz que polarização é cada vez mais evidente em debates de temas polêmicos nas salas de aula - Fábio Guimarães
Quando escolhe a roupa que usará durante um dia de aula, Miguel (nome
fictício), professor de Português e Literatura de duas escolas
privadas, deixa as camisas vermelhas de lado. Nas duas vezes em que as
vestiu no trabalho, foi chamado pelos alunos de petista. Era
brincadeira, mas ele não baixa a guarda. Os estudantes já se queixaram
dos debates conduzidos por Miguel em sala sobre temas como racismo e
homofobia. Outros docentes já passaram por situações mais dramáticas —
tiveram trechos de aulas gravados e divulgados nas redes sociais, onde
foram acusados de promover doutrinação ideológica.
— A sala de aula é o reflexo da sociedade em muitos sentidos. A
polarização é explícita, e o professor deve ser um mediador para que
nenhuma voz seja calada — analisa Miguel. — Mas às vezes o aluno fica
incomodado, caso a turma tome uma posição diferente à dele. Neste caso, o
professor que media o debate fica com fama de doutrinador, e isso não
pode acontecer.
Embora nunca tenha recebido queixas diretas dos pais de seus alunos,
Miguel sabe que muitos podem ficar contrariados quando ele tenta
expandir sua matéria. Alguns pais querem que os filhos aprendam quem é o
escritor Graciliano Ramos, mas preferem ignorar a informação de que ele
era comunista, por exemplo.
Atualmente, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei alinhados
com o movimento Escola Sem Partido. Na Câmara dos Deputados e no Senado
as proposições passam pela avaliação de comissões. Entre os tópicos
estabelecidos pelos projetos, está a defesa da “neutralidade política,
ideológica e religiosa do Estado”. As propostas proíbem ainda que os
professores façam propaganda político-partidária e “incitem” alunos a
participar de manifestações, atos públicos e passeatas. No projeto que
tramita no Senado, o texto menciona ainda que o poder público não se
envolverá em questões relacionadas à orientação sexual e proíbe a
aplicação da Teoria de Gênero nas escolas.
Além das proposições em âmbito nacional, há projetos parecidos em
instâncias estaduais. O caso mais emblemático, relativo à “Lei da Escola
Livre”, aprovada em Alagoas, chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Em março, o ministro Luís Roberto Barroso concedeu liminar suspendendo a
nova legislação. Em sua decisão, Barroso destacou a importância da
liberdade de aprender e ensinar, e o pluralismo de ideias. A liminar de
Barroso já está pronta para ser encaminhada ao plenário do STF, mas
ainda não há previsão de quando será votada. Na mesma Corte, tramita
ainda uma Ação de Inconstitucionalidade a respeito do mesmo projeto.
Auxiliar de coordenação de um colégio da Zona Sul do Rio, uma
educadora que também não quis se identificar recebe e-mails com
denúncias sobre o conteúdo transmitido nas aulas. É, segundo ela, um
fenômeno recente, mas que forçou mudanças na linha pedagógica da
instituição.
— A escola está com menos liberdade de atuação. Até dois anos atrás,
podíamos fazer uma videoconferência sobre qualquer tema que estivesse
acontecendo no mundo. Hoje, temos que mostrar à direção, submeter à
aprovação dos pais, analisar com que série vamos trabalhar — revela. —
As famílias tinham mais confiança em nós. O medo da esquerda está
fazendo os pais conservadores buscarem colégios tradicionais.
De acordo com o Sindicato Estadual de Profissionais de Educação do
Rio, os pais de alunos estão sendo motivados “por parlamentares de
direita” a processarem professores que participem de greves. Os
estudantes, por sua vez, são estimulados a gravar o conteúdo de docentes
considerados “de esquerda”. Foi o caso de Valéria Borges, que dá aulas
de História em um colégio estadual em Niterói.
Em um áudio de pouco menos de três minutos, Valéria diz para alunos
do 3º ano do ensino médio que a maioria dos seguidores do deputado Jair
Bolsonaro (PSC-RJ) é “asquerosa, nojenta, homofóbica, racista,
preconceituosa”. A professora também é acusada de traçar um paralelo
entre os eleitores do parlamentar e os jovens militantes do ditador
Adolf Hitler — embora ela diga que “a questão do seguidor do Bolsonaro é
diferente do seguidor de Hitler”.
— Foram dois minutos e 44 segundos descontextualizados de uma
exposição de 40 minutos sobre regimes totalitários — explica. — Alguns
alunos me disseram no intervalo da aula que eu estava sendo gravada.
Eles e outros professores me deram apoio.
O vereador Carlos Jordy (PSC), que divulgou a gravação em uma rede
social, considera que Valéria e diversos professores “violam princípios
constitucionais sob o escudo da liberdade de expressão”.
Valéria: fala sobre Bolsonaro foi gravada por estudante - Analice Paron
— A liberdade de expressão é para o Facebook e o botequim ou em
qualquer outro lugar em que o professor não tenha a audiência cativa dos
alunos — diz Jordy. — Os alunos estão sendo manipulados e
influenciados. Quem expõe opinião contrária é mandado para fora da sala.
Para o sociólogo da UFRJ Paulo Baía, as diretrizes defendidas pelo Escola Sem Partido vão contra a produção de conhecimento:
— Essa prática da intolerância acaba ferindo a liberdade de cátedra e
expressão. Todos têm direito a uma liberdade de manifestação como têm
direito ao contraditório. Toda ação de cercear isso é uma ação de
censura e que atenta contra a produção de conhecimento. É uma ação para
cortar o pensamento crítico. É a imposição de um pensamento acrítico,
pré-definido, que vai formar cidadãos sem capacidade de análise e
comparação.
Há dez anos nas salas de aula, uma professora que preferiu não se
identificar conta que a sensação de vigilância durante as aulas cresceu
exponencialmente nos últimos anos. De acordo com ela, o acirramento dos
ânimos na sociedade contribuiu para que os estudantes levassem o embate
para a escola.
— Trabalho com produção de texto, então, inevitavelmente discussões
ideológicas são muito recorrentes na minha aula. Em vários momentos me
sinto pressionada. Fico constantemente me policiando para que em momento
nenhum eu fale algo que possa ser mal interpretado. Sinto a questão da
vigilância e me sinto limitada quando produzo determinados materiais —
afirma.
DIREITOS HUMANOS EM DISCUSSÃO
Responsável
pelas aulas de redação de uma escola particular do Rio, a professora diz
que os temas censurados por alunos e pais chegam a assuntos que
deveriam ser do interesse de todos, como os direitos humanos.
— É uma questão de resistência continuar levantando a discussão e
evitando que haja esse tipo de reducionismo. A confusão que existe de
que discutir direitos humanos é uma posição de esquerda é muito
complicada para a promoção da cidadania. Muitos alunos não querem falar
sobre o tema por vê-lo como uma pauta da esquerda. Entender que essa
discussão é humana e independe de partido é primordial para que tenhamos
espaço de sala de aula para trabalhar questões fundamentais.
No site do movimento “Escola Sem Partido”, uma aba chamada “Flagrando
o doutrinador” estabelece comportamentos dos professores que os alunos
podem identificar como doutrinação. Cita, por exemplo, o tópico “se
desvia frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos
relacionados ao noticiário político ou internacional”. Em outra parte do
site, o “Planeje sua denúncia” ensina os alunos a registrarem falas dos
professores que sejam “representativas da militância política e
ideológica”, entre outros pontos. O GLOBO entrou em contato com Miguel
Nagib, idealizador do movimento, que não quis dar entrevista.
Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense
(UFF), Fernando Penna argumenta que o Escola Sem Partido distorce as
funções da escola.
— Eles dizem, por exemplo, que uma pessoa pode estar sendo vítima de
doutrinação quando o professor desvia da matéria para falar sobre o
noticiário. Dialogar com a realidade do aluno é algo corriqueiro em sala
de aula, e, muitas vezes, isso é uma demanda dos alunos. É um projeto
que elimina a dimensão educacional da escola — diz.
A Taxa de Ódio Circulante (TOC) chegou a níveis insuportáveis no Brasil. Quando dois colunistas assumidamente de direita divergem, e um manda o outro, nas redes sociais, dar a terceiros determinada parte posterior da sua anatomia, chegamos a um limite. Até aqui havia golpistas e antigolpistas, coxinhas e mortadelas. Esquerda e direita. Tenho escrito aqui que acredito ainda existirem sensibilidades ideológicas de esquerda e direita.
Muito esquematicamente, correndo portanto, em falta de melhor, o risco da simplificação, há uma visão que põe ênfase no desenvolvimento humano e social, outra que prioriza o crescimento econômico. Com todas as consequências, boas e más, que políticas derivadas dessas escolhas implicam. Os grupos políticos que expressam essas tendências se combatem. É a regra. Mas, de repente, entre nós, o povo todo, as famílias, companheiros de trabalho, amigos têm posto uma energia odienta na relação com os seus adversários políticos, agora inimigos. “Vai pra Cuba!” “Vai pra Miami!” Esses são mimos que se trocam nas redes, e a grande imprensa ecoa e estimula. E não somos um povo politizado, de verdade. Nossa cultura política é paupérrima. Conheço gente que ia votar no Bolsonaro no ano que vem e, diante de algumas ponderações, decidiu que “então” votaria no Lula. Assim: “então.” Agora o ódio chegou na direita x direita. Foi engraçado. Mas é sintoma de um tremendo naufrágio. Dentro do mesmo campo, parece, há agora a esquerda da direita e a direita da esquerda. E esses desviantes devem ser execrados como a direita e a esquerda se execram: de maneira total. Totalitariamente. Sem resto.
Reinaldo Azevedo e Diogo Mainardi são notoriamente comentaristas políticos de direita. Seus artigos costumam ser pau puro no adversário-inimigo. Eles têm ideias, fazem análises. Os outros são cachorros de Pavlov, não pensam, babam. E tome ferro. São conhecidos assim. Em matéria de ódio à esquerda, podemos sempre contar com eles. Pois deu-se lá o dia em que Reinaldo decidiu escrever sobre o que considerou desmandos do juiz de Curitiba. Analisou suas atitudes no interrogatório do Lula e concluiu que o juiz havia pisoteado a lei. Análise meticulosa, mesmo serena. Pois bastou para Diogo mandar Reinaldo ir dar a parte do corpo que lhe serve de assento. Desavença nos arraias do ódio direitista. Mas, para quem está atento ao crescimento da TOC, foi um sinal alarmante. Uma TOC próxima de 100% tornará a vida inviável. A incivilidade já está nas nuvens. Para manter amizades está-se optando por não falar de política. Mas quando os do mesmo saco começam a derramar a própria farinha, o alerta dispara. Estamos talvez perto da ruptura. E não sei vocês, mas eu por mim sou dos cretinos do diálogo. Acredito nisso. Liberdade, igualdade, fraternidade são parte das minhas orações da noite. Se não puder mais rezar isso, pego o meu boné e vou... De fato, vou para onde? A TOC está se pandemizando.
Então vou ficando por aqui mesmo. Contrariado e triste. Abro o jornal: DENÚNCIA DE TAL ARRASA TAL OUTRO. E penso: agora ferrou. E leio a submanchete, em letras menores: ONTEM TAL AFIRMOU QUE SOUBERA QUE... etc. Chamada para a matéria. E nela: “TAL declarou ontem perante a Junta que teve informação de que alguém disse que TAL OUTRO teria dito em roda de amigos que...” etc. Aí, diante desses fatos alternativos na mesma notícia, vamos às redes procurar “o outro lado”. E encontramos: “Informações desmontam denúncia de TAL”. Opa! Notícia! Vai-se ver, era: “Corre que TAL tem uma amante que conhece um operador da Junta”. E abaixo dezenas de comentários ferinos, de júbilo. E quem tenha, ainda, a desueta (de propósito, palavra já sem uso) amizade à verdade, a tal filosofia, ensombrece. Foi enganado duas vezes em direções contrárias. E a verdade... Mora num poço, disse Noel. O poço secou. A verdade está prisioneira lá no fundo. E sedenta. Coitada.
Outra coisa que se ouve é que (depende de quem diga) os comunistas estão chegando e querem pintar nossa bandeira de vermelho (sangue, suponho); ou que nem no tempo da ditadura foi tão ruim. Nem no tempo do nazismo. A primeira alegação é de uma pobreza e ignorância histórica de fazer chorar Eremildo, o idiota, vigilante das bobagens do mundo que Elio Gaspari criou para nós. Os comunistas chegando...! É preciso ser cego, ter visão trocada. A segunda afirmação é monstruosa. Desrespeita os torturados e mortos, torna invisíveis os judeus, homossexuais, ciganos gaseificados. — De onde se tiram tamanhas barbaridades, de lado a lado? Da TOC. A TOC não deixa pensar. Não deseja pensar. Quando já se sabe, quando as convicções abundam, mandam a verdade tomar atrás. Ô, filósofos, poetas, místicos, músicos, cientistas humanistas, vão... Vão...
Depois de reconhecerem amigo em vídeo na Cracolândia, ex-colegas querem custear tratamento de carioca
por Caio Barretto Briso
Foto de infância do carioca encontrado na Cracolândia de São Paulo - Reprodução
- Sarda era o apelido de Carlos Eduardo Albuquerque Maranhão porque ele tinha
pequenas manchas pelo corpo todo. Depois começaram a chamá-lo de Jesus, por
causa dos cabelos compridos. Para a família, era Dudu. Ruivo e com olhos pequenos, ouvia Deep Purple e
AC/DC quando seus amigos do Colégio Santo Inácio, em Botafogo, ainda não sabiam
o que era rock. Morava com os pais e três irmãos em uma casa sobre o Túnel
Rebouças, no Jardim Botânico, antes de a família se mudar para um amplo
apartamento na Lagoa Rodrigo de Freitas, na esquina da Avenida Epitácio Pessoa
com a Rua Garcia D’Ávila.
O
garoto que matava aula para tocar violão com os amigos, atormentando os padres
jesuítas do colégio, começou a usar drogas aos 16. Trinta anos depois, Carlos
Eduardo mora nas ruas da Cracolândia paulistana e está sendo procurado por
amigos que não o veem há duas décadas e querem ajudá-lo, pagando um tratamento
para sua recuperação.
A não ser parentes próximos, ninguém sabia o destino daquele jovem
descabelado, descrito pelos colegas como brincalhão, rebelde, contestador,
irônico, às vezes irritante, outras assustador, comandante da “fuga” de uns 15
alunos que pularam o portão da tradicional escola, na Rua São Clemente, para ir
a um comício pelas Diretas Já. Até que ele apareceu na internet em um vídeo da
organização A Craco
Resiste, grupo de apoio a dependentes químicos que vivem na Cracolândia. Postado
dia 4 de janeiro, o vídeo viralizou na
semana passada, após o prefeito João Doria
determinar uma agressiva repressão na região com mil policiais, que espalhou os
usuários por ruas do entorno.
AMIGA VOLTAVA DA ESCOLA COM ELE
Quando assistiu ao vídeo com o monólogo de Carlos Eduardo, em que ele fuma um
cigarro no Centro escuro de São Paulo e manda um recado de nove minutos ao
prefeito Doria, a
executiva de marketing Pati Cannabrava
quase não o reconheceu. O homem envelhecido que dorme na rua e confessa sua
dependência química era o amigo com quem ela voltava de ônibus para casa, após
as aulas no Colégio Bahiense, na
Gávea. Pati morava ao lado da casa dele, na Rua Barão de Jaguaribe, a uma quadra
da Epitácio Pessoa. A amizade nasceu no Santo Inácio, onde os dois repetiram a
sétima série. O tempo os afastou, e Pati foi estudar em San Diego, na Califórnia, onde se formou em
marketing e negócios, enquanto Carlos Eduardo começou a estudar Direito, mas,
segundo amigos, abandonou o curso quando o vício se agravou.
Quando era conhecido como “Sarda”, no Colégio Santo Inácio, onde estudou até a sétima série
- Reprodução/Facebook
— Na hora dos intervalos entre uma aula e outra, ele tinha a mania de
arranhar o quadro negro de cima abaixo, fazendo aquele barulho que deixava todo
mundo louco. Era provocador, mas todos gostavam dele. Fiquei assustada com o
vídeo, foi difícil reconhecê-lo. O mais chocante é pensar que ele era como a
gente — conta Pati. — Voltamos de ônibus juntos muitas vezes, mas o Jesus não se
envolvia muito com a turma fora da escola, não ia para as festas com a
gente.
Também amigo dos tempos de Bahiense, o
baixista Vitor Queiroz, que integrava a banda LS Jack e foi da turma 23, no segundo ano do ensino
médio, a mesma de Carlos Eduardo e Pati, lembra do “cara divertido, inteligente,
sagaz, altamente comunicativo, apaixonado pelo seu time de coração, o
Fluminense”. Outro colega, do Santo Inácio, que prefere não se identificar,
conta que eles pichavam muros da Rua Dona Mariana, perto do colégio, com frases
de protesto.
— Admirávamos o Sarda. Sempre foi um cara que contestou tudo, dos pais e
professores até os próprios colegas. Eu era fanático por atletismo e ele me
zoava: “Você acha que vai ser o Joaquim Cruz (atleta que foi campeão olímpico
nos anos 1980)?”. Ele zoava todo mundo e, de tanto ser assim, às vezes assustava
as pessoas — afirma o amigo, que continuou no Santo Inácio até o fim do ensino
médio, em 1988. — Lembro que, se ele não tivesse saído, teria sido expulso. O
reitor Luís Fernando Klein era
altamente disciplinador e não sabia o que fazer com ele.
Nessa época, seu melhor amigo no colégio jesuíta se chamava Eduardo Henrique,
que costumava fazer os trabalhos escolares com Carlos Eduardo. Mas, ainda jovem,
o rapaz com quem Sarda mais se abria cometeu suicídio.
O depoimento de Carlos Eduardo teve repercussão impressionante no Facebook, com mais de um milhão de visualizações. O
homem fala com honestidade sobre sua vida, conta que toma banho a cada dez dias,
que não escova os dentes há oito anos e que os mesmos estão caindo, mas já “não
há mais muito o que comer”. Em comentários na rede social e em grupos de
ex-alunos do Santo Inácio e do Bahiense no
WhatsApp,
amigos se surpreenderam com sua lucidez. “Quando o prefeito diz que aqui só tem
lixo humano, tá parecendo que para o senhor prefeito é um problema estético.
(...) O seu problema estético está muito aquém do problema ético que é a gente
ter uma estética dessas numa cidade rica como São Paulo”, disse, antes de chamar
Doria de “senhor perfeito".
Ele ficou conhecido na Cracolândia em 2012 ao se tornar o primeiro morador de
rua de São Paulo a ter um salvo-conduto, obtido pelo defensor público Bruno
Shimizu, que
o impede de ser preso a menos que seja flagrado cometendo um crime. Telefona
para sua mãe, a economista Nara Albuquerque, duas vezes por semana. Numa
entrevista há cinco anos, ela disse que dava R$ 250 por semana ao filho. “Ele
morou na Bahia e na Alemanha. Foi internado várias vezes. Aqui no Rio, morava na
rua, mas tinha cartão de banco. Não dá para ficar perto da gente porque não
larga a droga. Está assim porque quer", declarou a mãe. Procurada agora, sua
família não quis dar entrevista. O irmão Pedro Paulo Maranhão disse não querer
falar sobre este assunto. “Não me sinto à vontade”, escreveu em mensagem.
Com amigos do Bahiense, Carlos Eduardo é o primeiro à direita
- Reprodução/Facebook
Uma sobrinha, explicando o motivo de nunca ter usado drogas, desabafou no
Facebook:
“Esse homem é meu tio. Um cara amado pela família, que tocava violão como
poucos, inteligente pra caramba e cheio de magnetismo, do tipo que monopoliza
atenções. Desde pequena, vi coisas chocantes. E minha avó em situações
impensáveis para uma senhora criada com todos os mimos e conforto. Ela foi muito
longe — e ainda vai — por amor a esse filho”. A esperança dos amigos da escola é
conseguir ajudá-lo a fazer o que ele já tentou muitas vezes, mas só conseguiu
por pouco tempo: parar de usar drogas.
— Crack e heroína são drogas tão devastadoras que não cabem nos moldes usuais
de internação. As relações sociais ficam muito afetadas, não há possibilidade de
redução de danos e os planos de saúde, quando alguém morre por uso abusivo
dessas substâncias, consideram como suicídio e fazem de tudo para não cobrir o
atendimento. Não temos locais adequados para atendimento gratuito, e falta
suporte público efetivo para a ressocialização — resume a psicoterapeuta e
conselheira em adicções Patricia de La Serviére.
Carlos Eduardo tem 46 anos e mora na Cracolândia: amigos estão à sua procura
- Reprodução/Facebook
Orçamento proposto despreza necessidades da maioria da população
Marcello Averbug, O Globo
Observando o comportamento de Donald Trump na Casa Branca, torna-se
impossível evitar apreensões quanto ao risco de ocorrer um retrocesso da
qualidade de vida nos Estados Unidos.
Para ilustrar essa sentimento, abordarei dois exemplos de medidas
adotadas pelo presidente: as propostas orçamentária e de reforma
tributária.
O Orçamento proposto para o próximo ano fiscal reflete desprezo pelas
necessidades da maioria da população e pelos avanços científicos. Em sua
essência, estabelece cortes de recursos em todas as atividades
intrínsecas ao progresso social, econômico e ambiental, ao mesmo tempo
em que amplia em 9% os gastos militares.
Bastante preocupante é o fato de o Ministério da Saúde receber o menor
valor em 20 anos, 18% inferior à dotação anterior. Essa queda afetará o
National Institutes of Health, a mais importante instituição de pesquisa
biomédica do país. Enfraquece o Community Services Block Grant,
destinado a diminuir a pobreza, e o Fogarty International Center,
dedicado a formar parcerias entre instituições de pesquisa em saúde
americanas e de outros países.
Em educação, o declínio chega a 14%, atingindo inclusive programas de ajuda ao ensino para famílias de baixa renda.
O prestigioso EPA, organismo responsável pela preservação do meio
ambiente, foi vitimado em 31%. No caso do Ministério do Transporte, a
redução alcança a 13%, afetando os já deficientes sistemas ferroviário e
portuário, o controle da segurança dos voos comerciais e inúmeros
projetos.
Encolhimento de 21% foi sugerido para o Ministério de Agricultura,
resultando em danos a atividades como pesquisa, controle da segurança de
alimentos, desenvolvimento rural, ajuda alimentar internacional e
sistema florestal.
No Ministério de Comércio, alvo do abate de 15,7%, será abolida a
agência que estimula investimentos em regiões mais pobres, e perdas
serão sofridas na pesquisa em clima e oceano e outros serviços
relevantes.
O aparente modesto declínio de 5,6% no Ministério de Energia encobre o
fato de a Agência de Segurança Nuclear ser contemplada com o incremento
de 11,3%, enquanto o resto do ministério sofre retrocesso de 17,9%,
abrangendo danos em pesquisa científica e na área ecológica.
Em princípio, até poderia haver mérito nessa suposta austeridade
fiscal, tendo em vista a meta de diminuir o déficit público. Porém, o
corte de gastos encontra-se conjugado ao projeto de reforma tributária,
visando drástica diminuição de imposto sobre famílias de maior renda e
empresas, sob o argumento de que esse é o caminho para estimular
investimentos privados e, por consequência, a arrecadação. No entanto, a
experiência histórica demonstra a inconsistência desse argumento.
Se os propósitos de Donald Trump forem alcançados, a concentração
social de renda e a precariedade ambiental serão acentuadas, além de o
país torna-se mais vulnerável à instabilidade econômica.
Historicamente, parlamentares costumam aproveitar momentos de
conturbação e incertezas políticas para realizar votações polêmicas que
significam retrocessos em relação a direitos. É o que parece estar se
desenhando no caso da PEC 29/2015 (Proposta de Emenda Constitucional).
A proposta altera a Constituição Federal e reconhece o direito à vida
desde o encontro entre o espermatozoide e o óvulo (fecundação), antes
mesmo da implantação do embrião no útero (nidação).
A tramitação da PEC 29 ficou parada na CCJ (Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania) do Senado durante um ano e quatro meses, aguardando
a designação de um relator.
Em 6 de abril deste ano, o presidente da CCJ, Edson Lobão (PMDB/MA),
designou o relator, senador Eduardo Amorim (PSDB/SE) que, em 50 dias,
apresentou seu parecer, favorável à aprovação da PEC. Caso seja aprovada
pelo plenário do Senado, a proposta seguirá para a Câmara dos
Deputados.
Qual o risco? De qualquer interrupção voluntária da gravidez passar a
ser considerada crime, mesmo naquelas situações em que o aborto hoje é
permitido: quando a gravidez traz risco à vida da gestante; quando ela
acontece em consequência de um estupro; ou nos casos de fetos com
anencefalia.
Sempre achei essa proposta descabida pela simples razão de que, a
despeito de fantasias filosóficas, há uma enorme distância entre um
amontado de células humanas fecundadas e um ser humano.
Se todo embrião já fosse uma vida de fato, a taxa de sucesso dos
tratamentos de infertilidade seria de 100%. A realidade é bem diferente.
Os estudos bem desenhados apontam que o índice médio de sucesso das
FIVs (fertilizações in vitro) não passa dos 50%. É muito frequente os
casais produzirem embriões, que, transferidos para o útero, não
"grudam", não há implantação. Outros tantos comemoram o teste positivo
de gravidez, mas a gestação não segue adiante.
Por isso, para mim e para muitos cientistas sérios, um embrião é um
conjunto de células com potencialidade de desenvolver um ser humano.
Conheço vários casos que exemplificam bem isso. Um deles é de uma amiga
que sofreu um hiperestímulo ovariano em uma FIV e produziu 24 embriões
avaliados como "ótimos/excelentes".
Eles foram congelados para serem transferidos ao útero, em grupos de
quatro, evitando, assim, uma gravidez múltipla. Durante um ano, ela fez
seis transferências. Em nenhuma delas engravidou. Pergunta aos nobres
senadores: cadê a vida, o ser humano, nesses embriões?
Se essa lei for aprovada, o que vai acontecer com os milhares de
embriões congelados nas clínicas de reprodução? Serão consideradas
personalidades jurídicas com direito a reclamar proteção ao Estado?
Além de representar um retrocesso imenso nas conquistas até aqui
alcançadas, no tocante às circunstâncias em que o aborto é permitido, o
projeto não será capaz de atingir seu principal propósito: evitar as
interrupções voluntárias de gravidez.
No artigo
"Evidence supporting broader access to safe legal abortion", o
ginecologista Anibal Faúndes, da Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas), diz que leis proibitivas só contribuem para aumentar as
complicações e eventuais mortes de mulheres. E que o número de abortos
só será reduzido por meio de educação e acesso a métodos efetivos de
contracepção.
Há ótimas referências bibliográficas sobre esse assunto, e os nossos
representantes no Senado deveriam recorrer a elas em vez de se guiarem
por crenças religiosas e convicções morais. Ainda dá tempo.
O portal E-Cidadania abriu espaço para que a população se posicione em relação à PEC 29. Acesse aqui a publicação.