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Por Eduardo Graça
Bastou o primeiro capítulo do livro para o diretor Daniel Rezende ter a certeza de que iria adaptar para as telas “O filho de mil homens”, em cartaz nos cinemas e, a partir do próximo dia 19, na Netflix. Sucesso de crítica e público no Brasil, o livro do português Valter Hugo Mãe, lançado em 2011 e atualmente publicado pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros, não foi, ainda assim, uma escolha óbvia. A história de Crisóstomo e Camilo, o pai sem filho à procura de um filho sem pai, se dá em uma aldeia onde o tempo esqueceu de passar. É narrada por diversos personagens, quase todos julgados sem amplo direito de defesa por uma sociedade preconceituosa e punitiva. A narrativa tem fortes pinceladas de realismo mágico. E o protagonista, o pescador vivido por Rodrigo Santoro, passa boa parte do filme sem falar.
— Devorei o roteiro. Não tinha lido o livro ainda, e foi uma das coisas mais bonitas que caíram em minhas mãos. Mas falei com o Dani: “Não tenho a menor ideia de como fazer esse personagem. Me parece impossível trazê-lo para a realidade de carne e osso, para a tela.” Ele respondeu: “Eu também não, mas a gente pode descobrir juntos” — conta Santoro.
Descobriram. O elogiado montador de “Cidade de Deus” e “Tropa de elite”, e diretor, entre outros, de “Bingo — O rei das manhãs”, cinebio de Arlindo Barreto, o mais célebre Bozo brasileiro, e das adaptações para o cinema da “Turma da Mônica”, jamais havia assinado sozinho um roteiro. Hugo Mãe, por sua vez, nunca tivera texto transformado em obra audiovisual. Quando começou a escrever, conta Rezende, lhe veio à cabeça a participação especial de Santoro na franquia juvenil na pele do Louco, personagem de Mauricio de Sousa que transita entre o real e o imaginário.
— Foi uma experiência rápida, intensa e maravilhosa. Enquanto avançava no roteiro, pensava: “Na hora em que estiver bom, vou mandar para o Rodrigo.” Como a frase do Valter no livro, eu “confiava por instinto que confiar era já a resposta” — conta o diretor.
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O resultado, saudado por Valter Hugo Mãe, é o mais delicado dos filmes de Rezende, com histórias que se entrelaçam na solidão de Crisóstomo, na luz da fotografia de Azul Serra, na música de Tim Bernardes, e nas expressões e diálogos de um elenco afiado.
Entre os que encarnam personagens teatrais, quase míticos, está Rebeca Jamir, cuja Isaura pena com a versão ultrapassada do feminino a ela imposta; Antonio Haddad e Johnny Massaro, aprisionados em insuficientes limites do masculino; e Grace Passô, na pele da imigrante matriarca já impossibilitada de se tornar quem de fato deveria, em uma vida que se aproxima do fim.
— Foi um trabalho longo, detalhista e de muita delicadeza. Uma das chaves foi entender como este homem se relaciona com o outro. Ele é quase um Mogli. Não cresceu com os lobos, mas com as conchas e o vento à beira-mar. Como fala? Como faz quando precisa se relacionar? Encontramos uma espécie de haicai para o Crisóstomo. Quando ele abre a boca, traz a sabedoria da conexão com a natureza e a abertura de alguém que de fato vê e escuta o outro, algo cada vez mais raro — diz Santoro.
‘Aparecia tímido’
O “outro” mais crucial para “O filho de mil homens” aparece logo no título da história. O menino Camilo dá a Crisóstomo a dimensão mais palpável a um dos temas da obra: a adoção, a troca ilimitada, consequente e responsável de afeto. Quem vê o filme tem todo o direito de desconfiar da informação de ser este o primeiro trabalho de Miguel Martines, hoje com 12 anos, que prende a atenção do espectador.
— Fizemos testes em diversos lugares do Brasil. Vi a fita que ele mandou e Miguel tinha uma maneira tão... ele não estava interpretando, aparecia naquele lugar um pouco tímido do personagem. Aí cravei: “É ele.” Mas ele nunca tinha atuado — conta Rezende.
‘Foi um mergulho na minha infância’, diz Santoro
Na preparação do elenco de “O filho de mil homens”, a cargo de Estrela Straus, e nas locações, em Búzios e na Chapada Diamantina, Rodrigo Santoro e Miguel Martines encontraram a conexão necessária para o filme, que também é uma reflexão sobre os múltiplos sentidos de “família”, de fato acontecer. “O elo”, nas palavras do ator de 50 anos.
— Com ele, saí do meu lugar de ter essa experiência toda e me joguei um pouco no não-saber. O Miguel às vezes me convidava, não intencionalmente, a participar do mundo dele, de seus questionamentos. Um dia peguei ele desenhando e falei: “Cara, você desenha muito!” Ele se sentiu lisonjeado e envergonhado, numa complexidade muito interessante. Daí, parti para estimular coisas que foram criando este elo de que se vê no filme. Ele nasceu de uma relação de fato genuína — conta Santoro.
Sem sandálias
Durante os dois meses de preparação, Santoro só fez um pedido central ao diretor, algo que não estava destacado no roteiro de Daniel Rezende e tampouco presente no livro. Ele gostaria de passar o tempo todo descalço.
— A figurinista Manuela Mello trouxe sandálias incríveis para mim, mas não quis. Foi importante pisar nas pedras, na areia, me deitar, me sujar, com os pés no chão. Mas não é aquela coisa de “ó, olha lá o processo do Rodrigo”, não, era só o necessário para eu me alimentar do Crisóstomo. Assim como foi sentir o vento, e como ventava, o que enlouquecia o operador de som, mas deixava ainda mais claro que a locação, em “O filho de mil homens”, também é um baita personagem — diz.
Entrar na história de Crisóstomo e Camilo também fez Santoro viajar no tempo. E promoveu um inesperado reencontro do ator com “o menino Rodrigo”.
— Foi um mergulho na minha infância. Acessei lugares que estão dentro de mim, mas que com os quais não tinha mais muito contato, pois também estou distraído, também tenho mil coisas para ver lá fora. Precisei tirar tudo da frente e meditar. E ficar aqui. Só — afirma o ator.
- GLOBO
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