Personagem traduziu espírito libertário dos anos 1980 e quebrou paradigmas; esposa do cartunista diz que ele 'está bem, dentro do possível'
Por Ruan de Sousa Gabriel
O legado da personagem que simbolizou o espírito punk dos anos 1980 será celebrado neste sábado (30), das 16h às 21h, no evento “40 anos de Rê Bordosa: a festa da porralouca”, realizado pela Fresh People no MIS Experience, em São Paulo. Os ingressos custam R$ 60 e a renda será revertida para Angeli, que se aposentou das tirinhas em 2022, após o diagnóstico de demência frontotemporal (mesma doença neurodegenerativa que acomete o ator americano Bruce Willis e o ex-repórter da TV Globo Maurício Kubrusly). A festa contará com apresentações das bandas Saco de Ratos e Fábrica de Animais, do ator Mario Bortolotto e das atrizes Grace Gianoukas e Paula Cohen (que já encarnaram Rê em diferentes produções).
‘Outra maneira de viver’
O cartunista Orlando Pedroso, um dos idealizadores do evento, contou que um grupo de amigos de Angeli cogitou diversos projetos para reforçar o caixa do criador de Bob Cuspe e dos Skrotinhos, de rifas a leilões, até se decidirem por uma festança (o que Rê Bordosa decerto aprovaria).
Ao GLOBO, Carolina afirmou que o marido “está bem, dentro do possível”.
— Hoje ele tem outra maneira de viver e de se expressar, o cérebro dele funciona em um outro registro. Nós, que o amamos, vamos encontrando caminhos para que essa nova maneira dele de ser se achegue à nossa. E para que a vida dele seja a melhor possível, mesmo sem ter a estrutura do Bruce Willis — diz ela, que descreve Rê Bordosa como “uma libertária”. — Ela quebrou paradigmas, trouxe à baila temas como a igualdade comportamental e sexual entre homens e mulheres.
No curta “Dossiê Rê Bordosa”, de 2008, Angeli recorda a inspiração da personagem: certa madrugada, ao se dirigir ao banheiro do Riviera Bar, ele topou com uma mulher fazendo xixi de pé no mictório. “Depois das cinco da manhã, eu faço coisas de que até Deus duvida”, ela teria dito. Mais tarde, Rê Bordosa foi flagrada na mesma situação numa tirinha.
Frequentadora assídua de bares, onde interagia com personagens como o garçom Juvenal e o militante melancólico Meiaoito, Rê acordava “às 5 da tarde no maior bode”. Para curar a ressaca, receitava “sopa com uma aspirina” — mas a sopa tinha que ser de vodca.
Fonte de inspiração
Grace Gianoukas chegou a São Paulo no mesmo ano em que Rê Bordosa nasceu e foi apresentada à personagem pelo escritor e conterrâneo gaúcho Caio Fernando Abreu, que era leitor assíduo da revista Chiclete com Banana, onde eram publicadas as desventuras das crias de Angeli e histórias de outros cartunistas que despontavam à época, como Laerte e Glauco. A atriz conta que, ao lado de Rita Lee, Rê Bordosa foi sua grande inspiração.
— A obra genial do Angeli institucionalizou a sabedoria underground e chancelou minha escolha, enquanto jovem adulta, pelo humor, pelo desaforo, pelo deboche, pela autocrítica e por rir de mim mesma e da sociedade — afirma a atriz, que deu voz à personagem em animações. — Com a Rê Bordosa, Angeli descortinou a escrotidão da noite e essa vontade que todos temos de transgredir. As tirinhas dele sempre foram minhas bússolas.
Orlando Pedroso defende que Angeli foi capaz de captar as mudanças comportamentais que surgiam, especialmente em São Paulo, naqueles anos em que o Brasil encerrava duas décadas de ditadura militar e entrava na democracia afundado em crises econômicas.
Até então, quem dava o tom do humor e das artes gráficas brasileiras eram nomes como Millôr Fernandes, Ziraldo e Henfil, que brilhavam no Pasquim, semanário da imprensa alternativa que vicejou sob o regime militar. Era um humor explicitamente político e influenciado pelo desbunde da esquerda carioca nos anos 1970. Quase como resposta, Angeli criou um humor com sotaque paulistano, que retratava as novas tribos da metrópole, como “yuppies” e “newwavers”, recorda Pedroso.
— Nos anos 1980, ele saca que em São Paulo já tinha uma fauna muito influenciada por uma cultura londrina, punk — diz. — Aqui, as pessoas espetavam o cabelo, pintavam de rosa, usavam óculos escuros à noite, paletó de ombro largo e iam à (boate) Madame Satã dançar rock alternativo. Na abertura política, houve um momento de porraloquice que é representado por personagens como a Rê Bordosa, um ícone tão grande que tem gente chorando a morte dela até hoje.
Uma ‘anti-Mônica’
Morte? Sim, e no auge. Rê Bordosa fez tanto sucesso que, para evitar a acomodação artística, Angeli resolveu matá-la em 1987— contaminada pelo vírus Tedius matrimonius, a porraloca explodiu. “A melhor coisa que eu fiz foi matar aquela filha da puta”, declarou o cartunista assassino no curta “Dossiê Rê Bordosa”, que investiga as circunstâncias do crime. A personagem, porém, voltou a dar as caras em espetáculos teatrais, animações e num diário seu publicado em 1995, “Memórias de uma porraloca”.
Em 2012, a Companhia das Letras pôs na rua “Toda Rê Bordosa”. Editor do livro, André Conti descreve a personagem como uma “anti-Mônica”, por sua perversidade, seu comportamento liberal e gosto pela perambulação noturna. Ainda hoje, opina, a “porraloca” mantém seu frescor e sua graça.
— Ela é abre-alas da obra do Angeli, é a tatuagem, o pôster, a representação de uma época e de um jeito de ser. Não sei como seria a Rê Bordosa hoje, mas ela cresceu nessa mesma cultura que atualmente discute a representatividade feminina — diz Conti, hoje diretor de operações da Todavia. — Ela fala de uma São Paulo específica, mas também universal, como o Rio de Millôr Fernandes ou a Curitiba de Dalton Trevisan. Rê Bordosa é sexo e bar, e isso tem em todo lugar.
GLOBO