SELICO BC insiste na política de juros siderais e o Senado esboça uma reação
P O R C A R LO S D R U M M O N D
A nítida divisão entre os eco- nomistas de bancos, que apostam em uma redução da Selic pelo Banco Cen- tral em agosto, e os econo- mistas ligados a atividades produtivas ou ao governo, preocupados com o risco de uma recessão em consequência da demo- ra em baixar os juros estratosféricos, apesar de os fundamentos macroeconô- micos indicarem a possibilidade de uma suavização, sugere a existência de um im- passe nas interpretações dos atos e das atas da autoridade monetária. Em outras palavras, os comunicados e as práticas do BC não sinalizam, de modo minimamen- te claro e aceitável, uma saída do impas- se atual e o problema da relação entre a taxa de juros e o crescimento econômico talvez necessite de uma solução política.
A divergência nas avaliações acentuou- -se após a divulgação da ata da última reu- nião do Comitê de Política Monetária, que, apesar de abrir uma porta para se esperar a redução dos juros, estimada entre 0,25% e 0,50%, em agosto, não deixa dúvida de que o BC manterá uma espada sobre movi- mentos da economia que não se encaixem no seu esquema de interpretação da reali- dade. Isso inclui, se necessário, segundo os critérios do Banco Central, a continuida- de dos juros de 13,75% além de dezembro.
A convocação, na terça-feira 27, do pre- sidente do BC, Roberto Campos Neto, pa- ra prestar mais uma vez esclarecimentos à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado sobre a política monetária e a de- finição da taxa Selic, indica que, ao me- nos para parte dos parlamentares, a situ- ação atingiu um limite. A convocação foi assinada pelos senadores Randolfe Rodri- gues, sem partido, Ciro Nogueira, do PP, Rogério Marinho, do PL, e Plínio Valério, do PSDB, um espectro partidário que vai além da base de apoio ao governo. Outro detalhe significativo é que o chamamento foi feito à véspera do recesso de julho, um sinal da urgência dada ao assunto.
Na véspera da convocação, a senado- ra Ana Paula Lobato, do PSB, encaminhou ao Conselho Monetário Nacional um pe- dido de afastamento de Campos Neto da presidência do Banco Central, devido ao “comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos da instituição”. Manter a Selic em 13,75%, argumenta a senadora, evidencia “clara atuação política do presidente do BC no sentido de prejudicar o atual governo, ao impossibilitar maior crescimento econô- mico e, com isso, inviabilizar maior en- trega de políticas públicas”. A senadora solicitou, nas redes sociais, o apoio dos colegas à sua proposta, que considera de fundamental importância para ajustar a política monetária. “Campos Neto sabo- ta o Brasil”, disparou Lobato. Rodrigues, por sua vez, deu uma declaração contun- dente à imprensa e também considera
ampos Neto um “sabotador do País”.
Segundo a legislação, cabe ao Senado o questionamento formal do presiden- te do BC, a partir de uma indicação do CMN para sua demissão. A decisão deve ser aprovada no Senado por maioria sim- ples. Um aspecto curioso é que o próprio Campos Neto integra o CMN, órgão ao qual cabe indicar a sua demissão.
A possível resoluçãoda crise pe- la via política não seria uma anomalia, ainda que muitos possam pensar desse modo após décadas de exercício da polí- tica fiscal por economistas e tecnocra- tas, no Brasil e no resto do mundo. A es- se respeito, é importante levar em conta as considerações de Alan S. Blinder, pro- fessor da Universidade de Princeton, que foi consultor de vários candidatos presi- denciais nos EUA, integrou o Conselho de Consultores Econômicos do presidente Bill Clinton, foi vice-presidente do Fed e é considerado um dos economistas mais influentes do mundo. “Olhando para trás, em mais de 60 anos de história fiscal, as grandes decisões sempre foram toma- das por políticos. Isso não mudou e, pro- vavelmente, nunca mudará. Chamamos isso de democracia”, ressalta Blinder em seu livro sobre a história monetária e fis- cal dos EUA, publicado no ano passado.
Há indícios nada desprezíveis de mo- bilização do Banco Central no sentido de formar e reforçar expectativas negativas por parte do mercado. Um dia antes do comunicado do Copom, na curva de op- ção para a queda de juros, havia quase 90% de aposta na baixa em agosto. Após o comunicado do Copom, isso diminuiu para 50%. Isto é, o próprio Banco Cen-
tral está influenciando as expectativas negativamente. A atuação do BC refor- ça, portanto, a hipótese do seu papel de sabotador da economia.
Os comunicados do BC e as atas do Copom continuam dizendo que a infla- ção de serviços segue forte. Se ele preten- de esperar o mercado de trabalho ceder, ou seja, o desemprego aumentar, a situação fi- cará complicada, alertam economistas. A disputa entre a política monetária do go- verno Bolsonaro, mantida pela diretoria do Banco Central, e as políticas públicas do governo Lula, com força no investimen- to e na restauração de programas anterio- res geradores de emprego e renda, atingiu tensão máxima neste mês, com novos efei- tos da confirmação da Selic de 13,75%.
O aumento do valor do Bolsa Família, a ampliação da faixa de isenção do Im- posto de Renda, o reajuste dos vencimen- tos dos funcionários públicos, o descon- to bancado pelo governo na venda de au- tomóveis e caminhões, os investimentos
na recuperação de estradas, o reinício do Minha Casa Minha Vida e o programa de renegociação de dívidas das pessoas, en- tre outros programas, contrastam com o estrangulamento financeiro de vários setores da economia. A Volkswagen sus- pendeu a produção de carros no País, de- vido à estagnação do mercado, redes va- rejistas como a Tok&Stok e a C&C deve- rão fechar ao menos parte das suas lo- jas, a inadimplência no cartão de crédi- to atingiu o recorde de 31,5% e o trava- mento de vendas e investimentos em ge- ral por falta de crédito acessível é consi- derado inédito por diversos empresários
e associações setoriais. A cada notícia po- sitiva, como o anúncio oficial pela chine- sa BYD, maior fabricante mundial de veí- culos elétricos, da construção de uma no- va fábrica na Bahia, onde a política eco- nômica do governo Bolsonaro provocou o colapso da montadora Ford, surgem no- vas informações sobre prejuízos causa- dos pelos juros siderais.
A maior ameaça à agenda econômica, alertam economistas e empresários, é o Banco Central demorar demais para bai- xar os juros, com prejuízo crescente à ar- recadação e à atividade econômica. Caso o BC continue a considerar que se trata de uma inflação de demanda, que só pode ser combatida gerando mais desempre- go, como dizem suas atas e comunicados, contribuirá de modo decisivo para mer- gulhar o País em uma situação compli- cada. A continuar nesse caminho, o BC vai esperar, e ajudar, a economia entrar em recessão, algo fácil de começar, mas difícil de terminar.
Os interessadosem manter a política monetária atual alardeiam notícias de que Bancos Centrais mundo afora elevam ta- xas de juro para conter a inflação, portan- to o BC brasileiro estaria certo em sua po- lítica. Um estudo recente do FMI confir- ma, porém, que boa parte do processo in- flacionário europeu tem como causa fun- damental o aumento oportunista dos pre- ços dos produtos dos monopólios indus- triais, que exageraram propositalmente nos repasses aos consumidores dos custos aumentados da energia. Cartéis dos EUA foram flagrados na mesma prática.
O fundamentalismo do BC começa a preocupar a sua base de apoio e consta que Campos Neto já não é unanimidade na Faria Lima. Por uma razão simples: de tão obtusa, a política monetária vigente já abala a confiança na independência do Banco Central, engrenagem mestra de funcionamento do sistema econômico atual, centrado nos interesses do siste- ma financeiro.•
Enquanto a polícia brinca de gato e rato com os frequentadores da cracolândia, os crimes disparam na região e atiçam os milicianos
Por Mariana Serafini e Rodrigo Martins .
N o rescaldo das violentas in- tervenções das forças de segurança para dispersar os frequentadores da Cra- colândia, os dependentes químicos passaram, nas últimas semanas, a reta- liar com arrastões em co- mércios e depredação de veículos, até mes- mo de viaturas policiais. A prefeitura e o governo do estado, sócios na cruzada re- pressiva, atribuem os ataques ao alegado êxito no combate ao narcotráfico, um in- cômodo para os líderes do crime organi- zado. Já os usuários de drogas, protago- nistas dos saques, dizem estar cansados de apanhar à toa, sem reação. Não impor- ta quem tem razão. Esse conflito perma- nente só aumenta a sensação de insegu- rança da população, acuada por uma on- da de violência jamais vista naquela área.
Enquanto a polícia brinca de gato e ra- to com os dependentes químicos, os cri- mes aumentaram de forma assustadora nos dois distritos policiais que cobrem a região. Desde a deflagração da Operação Caronte, em junho de 2021, os roubos tri- plicaram e os furtos cresceram 244% no perímetro do 3º DP, de Campos Elísios. Na área aos cuidados do 77º DP, de San- ta Cecília, os roubos tiveram alta de 89% e os furtos, 41,5%, segundo dados da Se- cretaria de Segurança Pública do estado, que divulga as ocorrências mensais de ca- da delegacia(gráficos às págs. 12 e 13).
Quem acompanha o problema de perto garante: a onda de assaltos não é obra dos frequentadores da Cracolândia, mas de quadrilhas especializadas em tomar ce- lulares e raspar as contas bancárias das vítimas pelos aplicativos do aparelho. Há tempos os moradores se queixam da atu- ação da temida gangue da bicicleta. A po- lícia paulista parece, porém, ocupada de- mais com a urgente tarefa de conduzir a procissão de dependentes envoltos em co- bertores de uma rua para outra. Não bas- tasse, milicianos passaram a assediar os comerciantes da região com a cobrança de uma “taxa de proteção”.
A prova cabal do fracasso da política de dispersão dos usuários, inaugurada por Gilberto Kassab em 2012 e replicada por sucessivos governos, foi a confissão feita pelo governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, na terça-feira 18. Ele ad- mitiu o que a prefeitura cogita há tempos, permitir a reconcentração dos usuários sob a ponte Governador Orestes Quércia, conhecida como Estaiadinha, no Bom Re- tiro. “Lá, eu consigo deixá-los um pouco mais afastados da área residencial e da área comercial. Vamos ver se a estratégia vai dar certo.” Após a repercussão negati- va, o prefeito Ricardo Nunes, do MDB, dis- se que houve um “mal-entendido”. O aten- dimento aos usuários será direcionado ao Bom Retiro, mas o fluxo “tem dinâmica própria”, não há como transferi-lo.
Trata-se de mais uma iniciativa fada- da ao fracasso, avalia Raquel Rolnik, pro- fessora da Faculdade de Arquitetura e Ur- banismo da USP. Desde os anos 1980, re- memora a urbanista, existem iniciativas do governo do estado e da prefeitura para abrir uma nova frente de expansão imo- biliária na região da Luz, o que não ocor- reu por uma série de fatores, a começar pela estrutura fundiária do local, bastan- te fragmentada. A presença de dependen- tes químicos, de pessoas em situação de rua e de trabalhadores empobrecidos, que viviam em pensões e cortiços, sem- pre foi vista como empecilho para o pro- jeto. Emerge, então, o conveniente discur- so da “guerra às drogas”, espécie de car-
ta braca para a polícia agir à margem da
lei na expulsão dos indesejáveis. “Mesmo com todo o aparato repressivo, a política de dispersão fracassou, só fragmentou os grupos de usuários, que depois voltam a se reagrupar”, observa Rolnik. “Agora, o go- vernador fala em levar essas pessoas pa- ra outro lugar, mas não com o objetivo de tratá-las. A ideia é varrer o problema para debaixo da ponte, literalmente.”
Quem circula pela região espanta-se com a quantidade de comércios fechados. Até mesmo as lojas da Rua Santa Ifigênia, tradicional ponto de comércio de eletrôni- cos, estão sucumbindo. “Quando os usuá- rios estavam concentrados, todo mundo sabia onde estavam, eventualmente sur- gia algum problema, mas nada compara- do com o que vivemos hoje. Essa horda de gente sendo levada para lá e para cá assusta as pessoas”, desabafa José RobertoCheda, dono de lojas de equipamentos de som des- de 1975. Segundo ele, o policiamento au- mentou, mas não intimida mais os bandi- dos. “Fui o primeiro lojista a contratar se- gurança particular, há mais de 30 anos.”
Aproveitando-se do clima de insegurança, milicianos pas- saram a competir com os serviços privados de segu- rança. Após uma denúncia da Controladoria-Geral do Município, o Ministério Público paulis- ta abriu uma investigação para apurar a conduta do guarda civil metropolitano Elisson Assis, apontado como chefe de uma milícia que vendia proteção a comer- ciantes. Outros seis agentes da corporação foram afastados de suas funções por sus- peita de envolvimento. Com a condição de ter a identidade preservada, um segu- rança particular confirmou a atuação dos concorrentes fardados. “Outro dia, quan- do aquele GCM caiu em flagrante, arman- do esquema de extorsão, a turma dele veio para cima de mim”, conta. “Tentaram me levar preso para dar um apavoro.”
Em um ponto do fluxo mais afastado, com poucos usuários, um deles aproxi- ma-se da repórter deCartaCapitalpor- que havia sido alertado sobre a presen- ça de “gente estranha”. “Aqui é perigoso, você está na elite docrack, onde estão as maiores pedras, os traficantes mais res- peitados, é melhor dar o fora”, ameaçou. Depois do primeiro contato conturbado, topou uma conversa, longe da vista dos de- mais. Durante a caminhada pela Rua dos Gusmões, o rapaz cumprimentou vários funcionários de lojas. “Aquele ali é segu- rança, aquele lá é da polícia, ganha por fo- ra”, entrega um a um. “Esta guerra é inte- ressante para as polícias, cada qual quer dominar uma área e faturar”. Segundo ele, a “limpeza” custa caro aos proprie- tários, mas para o tráfico nada mudou. “Agora, os traficantes só têm mais mulas.”
Foi numa dessas aventuras que Letícia de Souza da Silva “caiu”. “Fui presa pas- sando dez pedras, mas a polícia queria mesmo era a traficante, que se safou”, ex- plica. Levada para o Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha, dois dias depois foi liberada via pagamento de fiança, e voltou para a Cracolândia, on- de vive há quase oito anos. Diferentemen- te de outros usuários, ela é avessa à con- vivência com o grupo. Prefere manter-se afastada, em ruas próximas das maiores concentrações. “Se estou sozinha, é sua- ve. Mas se tem mais dois ou três comigo, a polícia já vem dar enquadro. Como se eles não soubessem quem são os traficantes.”
Enquanto Freitas silencia diante do fracasso da gestão da segurança pública no Centro de São Paulo, o prefeito Nunes parece redobrar a aposta na repressão.
Após ser rebaixado de posto na admi- nistração municipal, Alexis Vargas, en-
ão secretário de Projetos Estratégicos da prefeitura e responsável pela coorde- nação dos trabalhos na Cracolândia, pe- diu demissão. Em seu lugar, Nunes esca- lou o linha-dura Edsom Ortega, que che- gou a proibir a distribuição de marmitas a pessoas em situação de rua quando co- mandou a pasta de Segurança Urbana na gestão de Kassab.
Um ano atrás, Vargas defendia com afinco a dispersão dos usuários da Cra- colândia para favorecer o “tratamento humanitário prestado pela prefeitura”. O crime organizado, argumentou em ar- tigo publicado na Folha de S.Paulo, não co- mandava apenas a distribuição de drogas na região, também estava por trás de estu- pros e homicídios cometidos no fluxo. Se- gundo o secretário, a abordagem em gru- pos menores seria mais segura para pro- fissionais da saúde e da assistência social.
Por outro lado, para dispersar os usu- ários, policiais e agentes da GCM sempre primaram pelo uso excessivo da força, ob- serva o psiquiatra Leon Garcia, que atua no Centro de Atenção Psicossocial da Sé, com um público semelhante ao da Cra- colândia. “No ano passado, um homem foi baleado e morto em meio às ações de dis- persão. Há muitos relatos e registros em vídeo de ações violentas da polícia, inclu- sive contra ativistas que atuam com pro- gramas de redução de danos”, lembra. “Essa atuação repressiva esgarça todos os vínculos que aqueles indivíduos pode- riam ter com políticas públicas do Estado. Eles ficam desconfiados, arredios. É um contrassenso. Essas operações ocorrem há mais de dez anos e nunca deram certo.”
De fato, a Operação Caronte – nome emprestado do bar- queiro de Hades, que segun- do a mitologia grega carrega- va a alma dos mortos – é niti- damente inspirada na fracas- sada Operação Sufoco, levada a cabo por Kassab em 2012. Para forçar os frequen- tadores da Cracolândia a aceitarem a in- ternação, era necessário impor “dor e so- frimento”, dizia o então prefeito, sedu- zido com a ideia de “revitalizar” o bair- ro da Luz. À época, a Cracolândia esta- va circunscrita ao quarteirão compreen- dido entre a Rua Helvétia e as alamedas Dino Bueno e Cleveland. Somente a pri- meira parte da promessa foi cumprida: a Defensoria Pública colecionou denún- cias de abusos cometidos pelos policiais. Mas as violentas operações só espalha- ram o “fluxo” pela região central da cida- de, e depois os usuários se reagruparam.
Ao assumir a prefeitura dois anos de- pois, o petista Fernando Haddad lançou o programa De Braços Abertos, com uma perspectiva radicalmente distinta. Inspi- rada em exitosas experiências internacio- nais dohousing first, política pública que prevê a oferta de moradia digna em primei- ro lugar, a iniciativa alocou os dependen- tes químicos em quartos de hotéis e pen- sões no Centro, além de ofertar vagas de trabalho em serviços de zeladoria, como varrição de ruas. Durou pouco. Haddad não conseguiu se reeleger e, em 2017, o tu- cano João Doria retomou a política de dis- persão dos usuários, com a demolição d ca, o prefeito chegou a celebrar o “fim da Cracolândia”, que ao cabo se reagrupou na Praça Princesa Isabel e voltou a aglomerar milhares de dependentes químicos.
“Os críticos dizem: ‘Ah, mas o De Bra- ços Abertos também não resolveu nada’. Na verdade, ele não teve tempo de resol- ver. Para implantar um programa desses, você demora sete, oito anos”, pondera o psiquiatra Dartiu Xavier, professor e pes- quisador da Unifesp, que trabalha há mais de 40 anos com dependentes químicos. “À época, vi pessoas interromperem o uso de crackou reduzirem muito o consumo só por ter uma vaga em pensão e uma ativi- dade laboral. Imagine a força disso: um dependente abandonar o vício sem pas- sar por uma consulta médica.”
Mas nem tudo eram flores no programa de Haddad. Parte das vagas em ho- téis e pensões, descobriu- -se mais tarde, foi subloca- da pelos dependentes quí- micos. Além disso, constatou-se a pre- sença do tráfico de drogas e da prostitui- ção em algumas unidades, lembra Clarice Madruga, pesquisadora da Unifesp e co- ordenadora do Levantamento das Cenas de Uso das Capitais, o Lecuca. “Ohousing first, como qualquer outro programa de moradia para dependentes, tem como contrapartida a adesão ao tratamento. Em vários países são realizados testes toxico- lógicos para identificar eventuais recaí- das e pensar em estratégias para evitá-las.
Esse monitoramento é importante para orientar o trabalho terapêutico e moti- vacional. Já o De Braços Abertos não exi- gia qualquer compromisso dos usuários.” Garcia, que à época chefiava a Secre- taria de Políticas sobre Drogas do Minis- tério da Justiça, observa que houve uma evolução dos hotéis sociais ao longo da gestão de Haddad. “No último ano, todos eles tinham uma equipe técnica. Um de- les, o de maior número de vagas, conta- va até com um GCM à paisana na porta- ria para impedir a entrada do tráfico e da prostituição”, diz. “A única condição colo- cada aos moradores era a visita periódica de um agente de saúde e um agente social.”
Diante do cenário de guerra no Cen- tro da cidade, Nunes passou a vender as “internações compulsórias” como solu- ção. Pura bravata, não compete a políti- cos definir quem deve ou não ser interna- do. Tanto a internação involuntária, a pe- dido de um familiar, quanto a internação compulsória, por determinação judicial, dependem do aval de um médico, a quem cabe avaliar a real necessidade da medi- da. Além disso, a própria prefeitura infor- mou, em resposta aos questionamentos de CartaCapital, que foram feitos 910 enca- minhamentos para internação voluntária nos últimos 12 meses. Ou seja, a política de impor “dor e sofrimento” aos frequenta- dores da Cracolândia parece ter dado al- gum resultado, com dependentes procu- rando tratamento por decisão própria.
A administração municipal não soube, porém, informar quantos desses pacien- tes receberam alta, quantos voltaram a viver nas ruas e, mais importante, quan- tos retornaram ao vício. A razão é simples: ninguém monitora isso. Segundo espe- cialistas, nem sequer é possível rastrear os prontuários, pois muitos pacientes es- tão indocumentados e usam nomes falsos.
O cerne da questão é que as internações são pouco efetivas, observa Xavier. “Exis- tem vários estudos sobre esse tema, em lu- gares diferentes, com populações diferen- tes, é até difícil compará-los. Mas todos indicam um porcentual de recaída altís- simo, superior a 90%, em até três meses após a alta. Em algumas pesquisas, essa taxa chegou a 95%. No caso docrack, não há sequer uma diferença significativa do êxito de internações voluntárias ou força- das”, observa. “Por que isso ocorre? O indi- víduo é retirado do ambiente dele, coloca- do numa clínica ou hospital psiquiátrico. Enquanto estiver lá, não fará uso da dro- ga, até por estar em cárcere médico. Mas, ao receber alta, se retornar para a situa-
ção de miséria e exclusão social em que vi- via, dificilmente ele vai se manter sóbrio.”
Madruga acrescenta que o acolhimen- to em comunidades terapêuticas não pode ser confundido com internação, até por- que elas não são reconhecidas como equi- pamentos de saúde, e sim de acolhimento social, que oferece um local de moradia de longa permanência, com foco na reinser- ção social após a fase inicial de tratamen- to, que seria a desintoxicação. “A política atual de regulação exige que esses equi- pamentos recebam pacientes sem condi- ções clínicas de saúde que exijam monito- ramento médico, e sugere a manutenção do acompanhamento pela unidade básica de saúde ou Caps do seu território.”
Essas instituições continuam, porém, malvistas por parte dos profissionais da saúde após fiscalizações do Conselho Fe- deral de Psicologia apontarem toda a sorte de abusos, incluindo trabalhos forçados, privação de liberdade, contenção química dos internos e agressões físicas. “Uma re- solução da Anvisa, a RDC 29, de 2011, esta- beleceu parâmetros para a atuação dess
quipamentos. No estado de São Paulo, a maior parte deles segue rigorosamente a lei, a ponto de reivindicar a definição de ‘Comunidades Terapêuticas Legalmente Constituídas’, para se distinguir daquelas que promovem esses horrores. Parece-me uma alternativa interessante, desde que o Poder Público as fiscalize com rigor.” Oenrosco é que boa parte de- sas comunidades terapêuti- cas está em bairros afasta- dos ou em cidades do interior. “Felizmente, agora, a prefeitu- ra passou a investir em hotéis sociais na região central. Não faz mesmo sentido empurrar essas pessoas para a pe- riferia. Elas relutam em sair para longe, já estão vinculados ao território”, diz Garcia.
Enquanto Nunes celebra o fim das grandes aglomerações da Cracolândia, indicador que flutua ao sabor das opera- ções policiais na região, Madruga diz ser mais conveniente analisar a taxa de in- fluxo, isto é, de novos frequentadores da cena de uso. “Em 2017, após aquela mega- operação do Doria, o número de usuários despencou de cerca de 2 mil para 200. À época, especulou-se que aquele seria o nú- cleo duro, que jamais iria abandonar a re- gião, mas fomos a campo e constatamos que a maioria deles era de novos frequen- tadores.” De acordo com o Lecuca, a ta- xa de influxo, que chegou a 46% em 2016, caiu para 20% no ano passado. “Ainda as- sim, é um porcentual altíssimo. Se o fluxo, hoje, tem cerca de mil usuários, pode ga- nhar 200 novos frequentadores até o fim do ano. Precisamos reforçar o trabalho de prevenção em todos os níveis, tanto para evitar o consumo de adolescentes, que au- menta as chances que a pessoa desenvol- va transtornos aditivos mais graves, quan- to prevenção secundária, que seria a in- tervenção precoce em casos em que já se identifica o abuso ou a dependência den- tro das UBSs e evita que agrave a ponto de levar uma pessoa a mudar para uma cena de uso. Não faz sentido esperar o agrava- mento do quadro clínico para intervir.”•