Nelson Gobbi e Ruan de Sousa Gabriel
Longe do debate entre governo e mercado editorial esquentado esta semana com a volta da desoneração do livro à pauta, a estudante Raíssa Luana de Oliveira, de 13 anos, segue conseguindo doações para a biblioteca comunitária O Mundo da Lua, que montou, em 2019, na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, onde mora. No total, a iniciativa já recebeu mais de 60 mil livros, que também foram doados para outras ações populares — ela calcula que o acervo atual esteja entre 8 e 9 mil publicações. A frequência das visitas e retirada de livros é, para Lua, como a estudante da 8ª série é conhecida, uma prova do interesse da população de baixa renda pela leitura, ainda que esta demanda não apareça na compra de livros novos.
— Na pandemia muita gente, de várias idades, vem retirando livros. Às vezes levam até dez de uma vez. A realidade não permite que as pessoas comprem um livro de R$ 60, R$ 70. Mas, mesmo assim, elas continuam lendo muito — constata Lua, que está colaborando com bibliotecas populares de outros estados, como Minas e Piauí. — Me ligam direto, querendo saber como montar uma biblioteca, ou como conseguir doações. Está acontecendo no país todo.
É a mesma impressão de Flávio Ribeiro, professor de capoeira residente no Morro da Providência, no Centro, que organiza uma biblioteca comunitária desde o ano passado no local, que conta com mais de 5 mil doações. Bolsista do sexto período de Direito da Universidade Santa Úrsula, Ribeiro descobriu o poder da leitura ao voltar a estudar depois de 19 anos, em 2013, quando ganhou um concurso de redação promovido pela Academia Brasileira de Letras (ABL). Hoje, ele se dedica a compartilhar o hábito entre os vizinhos.
— Foi um fator de mudança na minha vida, quem lê compreende o que ou outros dizem e passa a se expressar melhor — comenta Ribeiro, de 43 anos. — Todo mundo tem vontade de comprar um livro novo, só que muitas vezes é o valor de um botijão de gás, de uma comida para a casa. Mas ninguém para de ler por isso. Ou pega emprestado ou compra usado. Vários livros meus, inclusive os de Direito, eu comprei nos sebos do Centro. De alguma forma, aquele livro novo que alguém comprou antes acaba sendo lido depois.
Taxação de livros
Um documento publicado pela Receita Federal na quarta-feira, com perguntas e respostas sobre o projeto de fusão do PIS/Cofins em um único tributo, voltou a preocupar o mercado editorial com o aumento da taxação das publicações. Baseado em dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2019 do IBGE, o texto propõe o fim da isenção fiscal para as publicações, com a justificativa de que livros não didáticos são consumidos por famílias com renda superior a 10 salários mínimos. Assim, a imunidade tributária não atenderia às classes mais necessitadas, sendo dispensável.
Além do temor de que o fim da desoneração possa incidir em até 12% de alíquota sobre as publicações (o que reduziria ainda mais as possibilidades de compra), o setor reagiu com indignação ao longo da semana à tese de que “só rico lê no Brasil”, que ressurge a cada nova discussão sobre reforma tributária.
A experiência do livreiro e estudante de Letras Paulo Henrique Vieira Santos, de 20 anos, também contrasta com a afirmação da Receita Federal de que famílias pobres “não consomem livros não didáticos”. Ainda pequeno, ele frequentava o Book Box, o único sebo de Guaianases, bairro da periferia leste de São Paulo, à caça de gibis e livros baratos, que custassem entre R$ 5 e R$ 10. Quando chegou a hora de prestar vestibular, ele e uma amiga firmam um acordo para a compra dos livros cobrados na prova não pesar tanto nos bolsos deles.
— Um comprava o Machado de Assis, e outro o Eça de Queiroz. Aí a gente lia e trocava — diz Paulo, que trabalha na Livraria Simples, em Bela Vista, região central de São Paulo. — O preço impede pessoas de baixa renda de consumirem mais, mas taxar livro é um absurdo. Se querem taxar produto de elite, taxem helicóptero, jatinho.
'Livros são caros'
A pesquisa Retratos da Leitura 2019, publicada no ano passado, aponta que 52% dos brasileiros são leitores, 70% deles pertencem às classes C, D e E e 20% leem em bibliotecas. Perguntados sobre o que os impede de ler mais, 5% dos leitores disseram que livros são caros, 4% que não têm dinheiro para comprar livros, e 3% que não há pontos de venda perto de onde eles vivem.
Idealizador da Festa Literária das Periferias (Flup), iniciada em 2012, o escritor Julio Ludemir aponta uma mudança no perfil do leitor brasileiro, com a ampliação da classe média e a entrada de estudantes de menor renda no ensino superior, por meio de programas de financiamento ou de políticas de cotas.
— É um perfil de leitores e leitoras que chegou à academia e que sabe exatamente o que quer ler. São responsáveis por fenômenos como a redescoberta da Carolina Maria de Jesus ou da Djamila Ribeiro — frisa Ludemir. — Estamos diante de uma mudança de quatro eixos: leitor, autor, universidade e mercado editorial. Se fala muito que o livro abre portas para outras realidades, mas havia uma demanda enorme deste público que, antes de mais nada, queria se reconhecer nas leituras.
Presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Vitor Tavares argumenta que basta olhar para eventos como as bienais ou a própria Flup para ver que não é só a elite que consome livros:
— Se houver taxação, o preço final vai aumentar uns 20%. O que o governo ganhará com esse novo tributo é insignificante para um Estado como o nosso, que arrecada tanto e gasta tão mal.
Para Marcos Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), o debate necessário seria o oposto, de uma política real de estímulo à leitura. Desde o ano passado, Pereira tem feito reuniões remotas frequentes com representantes da Frente Parlamentar da Defesa do Livro em Brasília, para tentar impedir o fim da taxação:
— A
discussão agora deveria ser outra, de as ações para fomento à leitura
contarem com rubricas no Orçamento, também serem prioritárias. Além de
não salvar o caixa do governo, o fim da isenção pode acabar produzindo
exatamente essa situação, em que os livros fiquem restritos a quem tem
maior poder aquisitivo.
O GLOBO
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