UM PROJETO ELEITORAL E FINANCEIRO
UNIU A FORÇA-TAREFA DE CURITIBA E A
ONG TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL
p or A NA FL ÁV I A GUS S E N"
"O maior escândalo judicial
da história”, segundo o
ministro Gilmar Men-
des, do Supremo Tribu-
nal Federal, está longe de
ser completamente des-
vendado. O que se sabe
até agora, a partir do va-
zamento das mensagens dos procurado-
res da força-tarefa do Ministério Público
e do ex-juiz Sergio Moro, é suficiente pa-
ra chocar os cidadãos de bom senso, mas
constitui parte ínfima do esquema polí-
tico-partidário e econômico montado na
“República de Curitiba”. Há muito mais.
As ambições pessoais e os interesses pe-
cuniários, revelam novas diálogos, uni-
ram procuradores da República e direto-
res da Transparência Internacional, or-
ganização que, em tese, nasceu para de-
nunciar a corrupção mundo afora. Jun-
tas, a força-tarefa e a ONG pretendiam
gerenciar 5 bilhões de reais recuperados
dos desvios na Petrobras em prol de um
projeto eleitoral: consolidar o “Partido
da Lava Jato” e pavimentar as ambições
de poder de Moro e companhia.
A PARCERIA VISAVA
ADMINISTRAR
5 BILHÕES DE
REAIS EM PROL
DO “PARTIDO DA
LAVA JATO”
Nessa parceria nada transparente, a
Transparência Internacional e o Minis-
tério Publico celebraram contratos que
transferiam à ONG poderes de decisão
e interferência sobre cerca de 5 bilhões
de reais oriundos de acordos de leniência
assinados por empresas acusadas de cor-
rupção. O acerto, como outros do gênero
firmados pela força-tarefa, passa ao lar-
go dos órgãos de controle brasileiros. Os
negócios obscuros terão consequências.
A direção mundial da organização, sedia-
da em Berlim, decidiu abrir uma inves-
tigação a respeito da conduta de seus re-
presentantes no Brasil e de uma possí-
vel interferência na política do País, com-
portamento vedado pelas regras inter-
nas. Um grupo de advogados brasileiros
prepara-se para viajar à Alemanha e en-
tregar ao board da Transparência os do-
cumentos, memorandos e acordos que
comprovam a denúncia.
Em paralelo, o deputado federal Rui
Falcão, do PT, solicitou ao Superior Tri-
bunal de Justiça que investigue os possí-
veis crimes de improbidade administra-
tiva, infrações penais, faltas disciplina-
res e funcionais e graves prejuízos aos co-
fres públicos cometidos nesses acordos.
Falcão também acionou o Tribunal de
Contas da União a respeito de possíveis
danos ao Erário. Quem cuida do caso no
STJ é o ministro Luís Felipe Salomão. In-
tegrantes do Supremo Tribunal Federal
apoiam a investigação. “Aguardamos a
primeira manifestação do STJ. Todos
os encaminhamentos estão prontos e os
primeiros contatos com as autoridades
alemãs foram feitos”, declarou o advoga-
do Marco Aurélio Carvalho, fundador do
grupo Prerrogativas e um dos responsá-
veis pela denúncia protocolada no tribu-
nal, em parceria com Fernando Hideo .
Diálogos entre Bruno Brandão, dire-
tor-executivo da Transparência Inter-
nacional no Brasil, e Deltan Dallagnol,
então chefe da força-tarefa, revelam que
a ONG era convocada a defender a La-
va Jato, em artigos e entrevistas, sem-
pre que a operação era posta em dúvida.
Ao mesmo tempo, as declarações dos re-
presentantes da Transparência conver-
tiam-se em libelos dos procuradores para
pressionar as autoridades. As conversas
Brandão (abaixo) tramava com os procuradores
um plano que incluía apoiar candidatos
comprometidos com a agenda ultraliberal
também indicam a intenção de influen-
ciar, inclusive via financiamento elei-
toral, os rumos da política. Em maio de
2018, Dallagnol procura Brandão e soli-
cita uma defesa pública do procurador
Fernando Santos Lima, alvo de investi-
gação por quebra de decoro no Conselho
Nacional do Ministério Público. “(…) Se a
TI fizesse uma nota falando sobre a im-
portância da liberdade de expressão dos
membros do MP, atendidos os limites le-
gais”, escreve Dallagnol. Alguns dias de-
pois, Brandão responde: “Conseguimos.
Vou tentar escrever algo amanhã”. Em 22
de maio, a ONG publicou um texto em sua
rede social: “Ante a iminência da decisão
do CNMP sobre pena disciplinar ao pro-
curador da República Carlos Fernando
dos Santos Lima, a Transparência Inter-
nacional Brasil expressa sua preocupa-
ção com a ameaça ao direito de liberdade
de expressão de procuradores e promo-
tores de Justiça”. A reação do procurador
não tarda: “Não precisa ter repercussão.
(…) Faremos chegar a quem importa”.
Em fevereiro último, a Transparência
criticou o Superior Tribunal de Justiça
pela abertura de inquérito para apurar
se a Lava Jato investigou ministros ile-
galmente. “A abertura de inquérito por
ato de ofício do presidente do STJ con-
tribui para a franca deterioração das
instituições democráticas brasileiras.
Contraria a Constituição Federal e tra-
tados internacionais dos quais o País é
signatário”, diz uma curta mensagem no
Twitter postada no dia 19.
Em 15 de fevereiro de 2017,
Dallagnol fala de uma parceria
com a ONG para criar um “se-
lo” para candidatos às eleições
de 2018 que “se comprometam
com as 10 medidas de combate à
corrupção” e “não tenham sido acusados
criminalmente”. “O objetivo é buscar al-
gum grau de renovação política e levar ao
Congresso pessoas comprometidas com
as mudanças”, escreveu o procurador.
Brandão, Dallagnol e outros procura-
dores mantinham um grupo no aplicati-
vo Telegram, no qual se discutiam estra-
tégias de agenciamento político e eleito-
ral. Nas conversas, eles chegam a traçar
o perfil de lideranças e movimentos so-
ciais que poderiam fazer parte do proje-
to. Houve trocas de mensagem com Ro-
gério Chequer, ativista do Vem Pra Rua,
um dos movimentos que fomentaram as
manifestações contra Dilma Rousseff.
Buscavam-se nomes capazes de pro-
mover a renovação política alinhada à
agenda ultraliberal. Em 22 de fevereiro,
Brandão avisa no grupo que conversou
com Guilherme Leal, candidato a vice de
Marina Silva em 2010 e copresidente da
Natura Brasil, “sobre o nosso plano”. “Ele
saiu decepcionado da experiência eleito-
ral e está apostando na renovação políti-
ca e, por isso, está financiando a RAPS –
que é uma iniciativa que seleciona can-
didatos de melhor perfil pra apoiar com
ações de capacitação e apoio direto às
campanhas, além de selecionar jovens
líderes e apoiar que entrem na política.”
Em resposta Dallagnol descreve uma
conversa com Chequer: “Eles têm 2 ini-
ciativas: 1) uma “lista negra” (nome po-
liticamente correto: “tchau, queridos”)
de políticos em quem não votar. Vão usar
instrumentos de mídias sociais para fa-
zer divulgação geolocalizada (raio de
100km das cidades que são seus redutos
eleitorais). 2) uma frente por renovação,
sem protagonista, que aglutinará enti-
dades da sociedade civil que concordem
com uma agenda liberal, de promoção do
mercado e anticorrupção”.
Em outra conversa, em 8 de feverei-
ro de 2018, Brandão sugere que iniciem
um diá logo com influenciadores da es-
querda. “Se ganharmos a CNBB (esquer-
da religiosa), Pedro Abramovay (finan-
cia quase todas as ONGs do campo pro-
gressista), João Moreira Salles (publi-
sher mais influente da intelectualidade
de esquerda), Sakamoto (articulista pop
da esquerda) e mais alguns professores
da USP, criamos um campo de influên-
cia pra baixar a resistência da esquerda.”
Dallagnol alerta: “Observo ainda que o
tempo até as eleições é curto. (…)”. E fi-
naliza: “Nada do tipo ‘vem pra piscina de
Curitiba q a água tá quentinha’ kkkk”.
A relação entre a ONG e a força-tarefa
estreitou-se durante o mandato de Ro-
drigo Janot na Procuradoria-Geral da
República, em 2014. À época, a PGR e
a Transparência Internacional assina-
ram um memorando que garantia a par-
ticipação e a colaboração em acordos do
Ministério Público. Em 2017, uma troca
de mensagens retifica o primeiro acer-
to e inclui cláusulas curiosas solicitadas
pela Transparência Internacional. Assi-
nada por Brandão, a carta anuncia que
a organização “está em processo de res-
tabelecimento de uma presença perma-
nente no País e terá como um de seus ei-
xos prioritários de ação o apoio aos ati-
vistas e às organizações sociais brasilei-
ras que se dedicam à luta contra a cor-
rupção”. Também propõe a participação
da entidade na designação dos recursos
oriundos de acordos de leniência. Por
conta dessa proposta, a Transparên-
cia, apesar de atuar há 20anos no Bra-
sil, decidiu registrar um CNPJ e se tor-
nar oficialmente uma empresa privada
estrangeira a operar no País. Em junho
de 2017, a procuradoria do Distrito Fe-
deral assinou um acordo de leniência
com a J&F no valor de 10,4 bilhões de
reais. Desse montante, 2,3 bilhões se-
riam destinados a projetos de combate
à corrupção administrados pela ONG.
Como mostraram diálogos posteriores,
a força-tarefa buscava meios de firmar
as parcerias sem ter de prestar contas ao
TCU. Três anos depois, em 2020, a
relação espúria teve seu fim decretado
pelo atual procurador-geral da Repúbli-
ca, Augusto Aras: “A TI é uma ONG se-
diada em Berlim. Cuida-se de institui-
ção de natureza privada cuja fiscaliza-
ção escapa da atuação do Ministério Pú-
blico Federal”, sacramentou Aras.
A parceria não se limitou ao
acordo de leniência da J&F.
A ONG participou, segundo a
representação dos advogados,
da elaboração do “Fundão da
Lava Jato”, que administraria
2,5 bilhões de reais do dinheiro recupe-
rado da Petrobras. Em dezembro de 2018,
Dallagnol enviou a Brandão a minuta do
fundo e pediu uma revisão. “Caros, te-
nho a versão preliminar do acordo com
a Petrobras. Vocês podem olhar e dar su-
gestões, de acordo com sua experiência?”,
escreveu no chat 10M + A Vingança. O di-
retor da Transparência alerta: o melhor
seria excluir integrantes do Ministério
Público do conselho gestor para evitar
críticas ao projeto. Nesse caso, coube ao
ministro Alexandre de Moraes, do STF,
desfazer o sonho da turma. Moraes vetou
a criação do fundo e determinou que os
recursos fossem usados no combate à
pandemia do Coronavírus.
Em nota, a direção da ONG nega as
acusações e se diz vítima de persegui-
ção. “As alegações já foram desmenti-
das pela Transparência Internacional –
em seu Secretariado na Alemanha e Ca-
pítulo Brasileiro – e pelo próprio Minis-
tério Público Federal, reiterando que a
TI jamais recebeu recursos e jamais plei-
teou receber ou gerir recursos de acor-
dos de colaboração.” Segundo o texto, as
denúncias baseiam-se em informações
equivocadas. “O próprio pedido de in-
vestigação do Dep. Rui Falcão, citado
pela CartaCapital, reproduz o ofício do
Procurador-Geral da República com in-
formações distorcidas, mas omite o de-
talhado relatório produzido pela Comis-
são Permanente de Assessoramento para
Acordos de Leniência e Colaboração Pre-
miada do MPF, que corrigiu todas as in-
formações inverídicas. Além disso, a pe-
tição ignora o produto final dos estudos e
recomendações publicadas no relatório
Governança de Recursos Compensató-
rios em Casos de Corrupção.”
O que mais preocupa nessa história,
ressalta Carvalho, é a subversão dos in-
teresses da Transparência Internacio-
nal, que deveria agir sem seletividade. “É
muito grave um organismo internacional
entrar na disputa política de um país.” O
ministro Gilmar Mendes foi mais inci-
sivo: “Nos últimos anos, a TI atuou co-
mo verdadeira cúmplice da força-tarefa
da Lava Jato nos abusos perpetrados no
sistema judicial brasileiro”. •
CARTA CAPITAL