March 29, 2021

Dorrit Harazim: Altos e baixos

 

Dorrit Harazin - assinatura

 

Dorrit Harazim

Esta foi mais uma semana montanha-russa. As esperanças que dispararam com o anúncio de duas possíveis vacinas nacionais tiveram de conviver com dados abissais. Neste ano 1 de pandemia, a terra brasileira se viu escavada para abrigar seus primeiros 305 mil mortos de Covid-19. Haverá muitos mais. Os que até agora escaparam convivem com o peito sobressaltado pela necessidade de se atualizar com alarmes novos. Nos primórdios da pandemia, havia a falta de máscaras para a população e da proteção inadequada para os agentes de saúde. Houve escassez de leitos hospitalares, de respiradores, houve a multiplicação de covas-relâmpago. Depois veio a constatação da vacinação tardia, a conta-gotas, de leitos transbordantes também em enfermarias, do criminoso esgotamento do oxigênio hospitalar em Manaus, da iminente falta de kits de entubação em todo o território nacional. Por fim, chegamos à real ameaça de colapso dos próprios profissionais de saúde — sem que nenhuma das carências anteriores esteja dominada.

Tome-se o caso da Santa Casa de Misericórdia de São Carlos, cidade de 250 mil habitantes do interior de São Paulo. Na quinta feira, reportou Ana Letícia Leão no GLOBO, à instituição só restavam kits de entubação para as 48 horas seguintes. O atendimento na UTI teve de ser suspenso, um apelo de transferência de 60 pacientes foi encaminhado à central estadual, e 27 técnicos de enfermagem e enfermeiros pediam demissão. O caso leva a pensar em condenados à morte na acepção convencional do termo.

Nos Estados Unidos, a pena de morte foi restabelecida em 1976 após um hiato de quatro anos, à condição de que fosse executada de forma menos bárbara do que a forca ou a cadeira elétrica. O Estado do Texas, eterno campeão na modalidade, introduziu então um método de mascarar a violência da execução, tornando-a mais “higiênica”: a injeção sequencial de três drogas que levam a óbito. Em princípio, seria indolor. Afivelado numa maca em recinto de aspecto hospitalar, o condenado recebe duas sondas em cada braço. A outra extremidade dos fios dessas sondas fica numa saleta contígua, longe da vista das testemunhas obrigatórias por lei. Ali, dois enfermeiros voluntários acionam as seringas na sequência indicada (o Conselho Americano de Anestesiologia proíbe a participação de seus filiados): primeiro um sedativo, depois um bloqueador neuromuscular, por fim a dose de cloreto de potássio para cessar o funcionamento cardíaco do “paciente”.

Em tese, o procedimento não é “nem cruel nem incomum”, como manda a Oitava Emenda da Constituição americana. Só que nem sempre tem sido assim. À medida que a pena capital foi sendo varrida das nações civilizadas, que passaram da abolição à condenação da prática, a União Europeia passou a proibir os laboratórios dos países-membros de vender esses insumos à Justiça criminal americana. Resultado: o coquetel letal original teve de ser substituído por alternativas locais e mambembes, resultando em procedimentos muitas vezes sombrios. O pior deles ocorreu em 2014, quando o condenado Joseph Wood teve de receber 15 injeções, sofreu 640 microconvulsões e viveu duas horas de suplício antes de poder morrer.

Em comum entre a aplicação do coquetel da morte nos EUA e o recurso para salvar vidas de brasileiros necessitados de entubação, apenas os dois ingredientes cruciais que aliviam a agonia: sedativos e o bloqueador neuromuscular. Na ausência de uns ou outro, o suplício físico de quem vai morrer ou de quem espera viver é semelhante. A diferença maior está no estender dos braços para a injeção. A maioria dos condenados à morte teve tempo para amadurecer seu medo, pois passou em média mais de 10 anos em cela solitária. O infectado em estado grave pela Covid-19 não teve nenhum preparo para se conciliar com o medo de não mais acordar.

Algumas notícias animadoras vez por outra amenizam a montanha-russa diária do brasileiro. Na sexta-feira, a cidade paulista de Araraquara pôde anunciar zero morte de Covid-19 nas 24 horas anteriores, graças ao radical lockdown de 20 dias decretado pelo prefeito petista Edinho Silva. Também foi merecedor de alívio o comunicado da criação de uma nova vacina contra a Covid, a Butanvac, com grife do Instituto Butantan e promessas de entrega ainda para este ano. Algumas horas mais tarde, o anúncio da estreia de uma segunda vacina iminente, a Versalume, impulsionada pelo governo federal, ajudou a temperar a escalada de 3.650 mortos nas 24 horas anteriores. Os testes clínicos em humanos de ambas ainda não foram iniciados, e nesta corrida prevalece a disputa política entre Brasília e a São Paulo de João Doria. Não importa. É uma arrancada.

A única constante a temer é a mente de Jair Bolsonaro, que continua congelada criogenicamente.

 

 

March 26, 2021

A CUPIDEZ DOS ANJOS

 UM PROJETO ELEITORAL E FINANCEIRO
UNIU A FORÇA-TAREFA DE CURITIBA E A
ONG TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL


p or A NA FL ÁV I A GUS S E N"

"O maior escândalo judicial
da história”, segundo o
ministro Gilmar Men-
des, do Supremo Tribu-
nal Federal, está longe de
ser completamente des-
vendado. O que se sabe
até agora, a partir do va-
zamento das mensagens dos procurado-
res da força-tarefa do Ministério Público
e do ex-juiz Sergio Moro, é suficiente pa-
ra chocar os cidadãos de bom senso, mas
constitui parte ínfima do esquema polí-
tico-partidário e econômico montado na
“República de Curitiba”. Há muito mais.

As ambições pessoais e os interesses pe-
cuniários, revelam novas diálogos, uni-
ram procuradores da República e direto-
res da Transparência Internacional, or-
ganização que, em tese, nasceu para de-
nunciar a corrupção mundo afora. Jun-
tas, a força-tarefa e a ONG pretendiam
gerenciar 5 bilhões de reais recuperados
dos desvios na Petrobras em prol de um
projeto eleitoral: consolidar o “Partido
da Lava Jato” e pavimentar as ambições
de poder de Moro e companhia.

A PARCERIA VISAVA
ADMINISTRAR
5 BILHÕES DE
REAIS EM PROL
DO “PARTIDO DA
LAVA JATO”

Nessa parceria nada transparente, a
Transparência Internacional e o Minis-
tério Publico celebraram contratos que
transferiam à ONG poderes de decisão
e interferência sobre cerca de 5 bilhões
de reais oriundos de acordos de leniência
assinados por empresas acusadas de cor-
rupção. O acerto, como outros do gênero
firmados pela força-tarefa, passa ao lar-
go dos órgãos de controle brasileiros. Os
negócios obscuros terão consequências.
A direção mundial da organização, sedia-
da em Berlim, decidiu abrir uma inves-
tigação a respeito da conduta de seus re-
presentantes no Brasil e de uma possí-
vel interferência na política do País, com-
portamento vedado pelas regras inter-
nas. Um grupo de advogados brasileiros
prepara-se para viajar à Alemanha e en-
tregar ao board da Transparência os do-
cumentos, memorandos e acordos que
comprovam a denúncia.
 

Em paralelo, o deputado federal Rui
Falcão, do PT, solicitou ao Superior Tri-
bunal de Justiça que investigue os possí-
veis crimes de improbidade administra-
tiva, infrações penais, faltas disciplina-
res e funcionais e graves prejuízos aos co-
fres públicos cometidos nesses acordos.
Falcão também acionou o Tribunal de
Contas da União a respeito de possíveis

danos ao Erário. Quem cuida do caso no
STJ é o ministro Luís Felipe Salomão. In-
tegrantes do Supremo Tribunal Federal
apoiam a investigação. “Aguardamos a
primeira manifestação do STJ. Todos
os encaminhamentos estão prontos e os
primeiros contatos com as autoridades
alemãs foram feitos”, declarou o advoga-
do Marco Aurélio Carvalho, fundador do
grupo Prerrogativas e um dos responsá-
veis pela denúncia protocolada no tribu-
nal, em parceria com Fernando Hideo .
Diálogos entre Bruno Brandão, dire-
tor-executivo da Transparência Inter-
nacional no Brasil, e Deltan Dallagnol,
então chefe da força-tarefa, revelam que
a ONG era convocada a defender a La-
va Jato, em artigos e entrevistas, sem-
pre que a operação era posta em dúvida.
 


Ao mesmo tempo, as declarações dos re-
presentantes da Transparência conver-
tiam-se em libelos dos procuradores para
pressionar as autoridades. As conversas
Brandão (abaixo) tramava com os procuradores
um plano que incluía apoiar candidatos
comprometidos com a agenda ultraliberal
também indicam a intenção de influen-
ciar, inclusive via financiamento elei-
toral, os rumos da política. Em maio de
2018, Dallagnol procura Brandão e soli-
cita uma defesa pública do procurador
Fernando Santos Lima, alvo de investi-
gação por quebra de decoro no Conselho
Nacional do Ministério Público. “(…) Se a
TI fizesse uma nota falando sobre a im-
portância da liberdade de expressão dos
membros do MP, atendidos os limites le-
gais”, escreve Dallagnol. Alguns dias de-
pois, Brandão responde: “Conseguimos.
Vou tentar escrever algo amanhã”. Em 22
de maio, a ONG publicou um texto em sua
rede social: “Ante a iminência da decisão
do CNMP sobre pena disciplinar ao pro-
curador da República Carlos Fernando
dos Santos Lima, a Transparência Inter-
nacional Brasil expressa sua preocupa-
ção com a ameaça ao direito de liberdade
de expressão de procuradores e promo-
tores de Justiça”. A reação do procurador

não tarda: “Não precisa ter repercussão.
(…) Faremos chegar a quem importa”.
Em fevereiro último, a Transparência
criticou o Superior Tribunal de Justiça
pela abertura de inquérito para apurar
se a Lava Jato investigou ministros ile-
galmente. “A abertura de inquérito por
ato de ofício do presidente do STJ con-
tribui para a franca deterioração das
instituições democráticas brasileiras.
Contraria a Constituição Federal e tra-
tados internacionais dos quais o País é
signatário”, diz uma curta mensagem no
Twitter postada no dia 19.


 

Em 15 de fevereiro de 2017,
Dallagnol fala de uma parceria
com a ONG para criar um “se-
lo” para candidatos às eleições
de 2018 que “se comprometam
com as 10 medidas de combate à
corrupção” e “não tenham sido acusados
criminalmente”. “O objetivo é buscar al-
gum grau de renovação política e levar ao
Congresso pessoas comprometidas com
as mudanças”, escreveu o procurador.
Brandão, Dallagnol e outros procura-
dores mantinham um grupo no aplicati-
vo Telegram, no qual se discutiam estra-
tégias de agenciamento político e eleito-
ral. Nas conversas, eles chegam a traçar
o perfil de lideranças e movimentos so-
ciais que poderiam fazer parte do proje-
to. Houve trocas de mensagem com Ro-
gério Chequer, ativista do Vem Pra Rua,
um dos movimentos que fomentaram as
manifestações contra Dilma Rousseff.

Buscavam-se nomes capazes de pro-
mover a renovação política alinhada à
agenda ultraliberal. Em 22 de fevereiro,
Brandão avisa no grupo que conversou
com Guilherme Leal, candidato a vice de
Marina Silva em 2010 e copresidente da
Natura Brasil, “sobre o nosso plano”. “Ele
saiu decepcionado da experiência eleito-
ral e está apostando na renovação políti-
ca e, por isso, está financiando a RAPS –
que é uma iniciativa que seleciona can-
didatos de melhor perfil pra apoiar com
ações de capacitação e apoio direto às
campanhas, além de selecionar jovens
líderes e apoiar que entrem na política.”
 

Em resposta Dallagnol descreve uma
conversa com Chequer: “Eles têm 2 ini-
ciativas: 1) uma “lista negra” (nome po-
liticamente correto: “tchau, queridos”)
de políticos em quem não votar. Vão usar
instrumentos de mídias sociais para fa-
zer divulgação geolocalizada (raio de
100km das cidades que são seus redutos
eleitorais). 2) uma frente por renovação,
sem protagonista, que aglutinará enti-
dades da sociedade civil que concordem
com uma agenda liberal, de promoção do
mercado e anticorrupção”.
 


Em outra conversa, em 8 de feverei-
ro de 2018, Brandão sugere que iniciem
um diá logo com influenciadores da es-
querda. “Se ganharmos a CNBB (esquer-
da religiosa), Pedro Abramovay (finan-
cia quase todas as ONGs do campo pro-
gressista), João Moreira Salles (publi-
sher mais influente da intelectualidade
de esquerda), Sakamoto (articulista pop
da esquerda) e mais alguns professores
da USP, criamos um campo de influên-
cia pra baixar a resistência da esquerda.”
Dallagnol alerta: “Observo ainda que o
tempo até as eleições é curto. (…)”. E fi-
naliza: “Nada do tipo ‘vem pra piscina de
Curitiba q a água tá quentinha’ kkkk”.
A relação entre a ONG e a força-tarefa
estreitou-se durante o mandato de Ro-
drigo Janot na Procuradoria-Geral da
República, em 2014. À época, a PGR e

a Transparência Internacional assina-
ram um memorando que garantia a par-
ticipação e a colaboração em acordos do
Ministério Público. Em 2017, uma troca
de mensagens retifica o primeiro acer-
to e inclui cláusulas curiosas solicitadas
pela Transparência Internacional. Assi-
nada por Brandão, a carta anuncia que
a organização “está em processo de res-
tabelecimento de uma presença perma-
nente no País e terá como um de seus ei-
xos prioritários de ação o apoio aos ati-
vistas e às organizações sociais brasilei-
ras que se dedicam à luta contra a cor-
rupção”. Também propõe a participação
da entidade na designação dos recursos
oriundos de acordos de leniência. Por
conta dessa proposta, a Transparên-
cia, apesar de atuar há 20anos no Bra-
sil, decidiu registrar um CNPJ e se tor-
nar oficialmente uma empresa privada
estrangeira a operar no País. Em junho
de 2017, a procuradoria do Distrito Fe-
deral assinou um acordo de leniência
com a J&F no valor de 10,4 bilhões de
reais. Desse montante, 2,3 bilhões se-
riam destinados a projetos de combate
à corrupção administrados pela ONG.
Como mostraram diálogos posteriores,
a força-tarefa buscava meios de firmar
as parcerias sem ter de prestar contas ao

TCU. Três anos depois, em 2020, a
relação espúria teve seu fim decretado
pelo atual procurador-geral da Repúbli-
ca, Augusto Aras: “A TI é uma ONG se-
diada em Berlim. Cuida-se de institui-
ção de natureza privada cuja fiscaliza-
ção escapa da atuação do Ministério Pú-
blico Federal”, sacramentou Aras.
 


A parceria não se limitou ao
acordo de leniência da J&F.
A ONG participou, segundo a
representação dos advogados,
da elaboração do “Fundão da
Lava Jato”, que administraria
2,5 bilhões de reais do dinheiro recupe-
rado da Petrobras. Em dezembro de 2018,
Dallagnol enviou a Brandão a minuta do
fundo e pediu uma revisão. “Caros, te-
nho a versão preliminar do acordo com
a Petrobras. Vocês podem olhar e dar su-
gestões, de acordo com sua experiência?”,
escreveu no chat 10M + A Vingança. O di-
retor da Transparência alerta: o melhor
seria excluir integrantes do Ministério
Público do conselho gestor para evitar
críticas ao projeto. Nesse caso, coube ao
ministro Alexandre de Moraes, do STF,
desfazer o sonho da turma. Moraes vetou

a criação do fundo e determinou que os
recursos fossem usados no combate à
pandemia do Coronavírus.
 

Em nota, a direção da ONG nega as
acusações e se diz vítima de persegui-
ção. “As alegações já foram desmenti-
das pela Transparência Internacional –
em seu Secretariado na Alemanha e Ca-
pítulo Brasileiro – e pelo próprio Minis-
tério Público Federal, reiterando que a
TI jamais recebeu recursos e jamais plei-
teou receber ou gerir recursos de acor-
dos de colaboração.” Segundo o texto, as
denúncias baseiam-se em informações
equivocadas. “O próprio pedido de in-
vestigação do Dep. Rui Falcão, citado
pela CartaCapital, reproduz o ofício do
Procurador-Geral da República com in-
formações distorcidas, mas omite o de-
talhado relatório produzido pela Comis-
são Permanente de Assessoramento para
Acordos de Leniência e Colaboração Pre-
miada do MPF, que corrigiu todas as in-
formações inverídicas. Além disso, a pe-
tição ignora o produto final dos estudos e
recomendações publicadas no relatório
Governança de Recursos Compensató-
rios em Casos de Corrupção.”
 

O que mais preocupa nessa história,
ressalta Carvalho, é a subversão dos in-
teresses da Transparência Internacio-
nal, que deveria agir sem seletividade. “É
muito grave um organismo internacional
entrar na disputa política de um país.” O
ministro Gilmar Mendes foi mais inci-
sivo: “Nos últimos anos, a TI atuou co-
mo verdadeira cúmplice da força-tarefa
da Lava Jato nos abusos perpetrados no
sistema judicial brasileiro”. •

CARTA CAPITAL