Não faça como a barata Fliti, que confundiu o nome —e a espécie— do seu amigo de esgoto com a de um primo distante e rico chamado Mickey. "Meu nome é Níquel Náusea! E sou um rato, não um camundongo. Minha mãe teve 814 filhotes. E justo eu ganhei esse nome!"
Assim se apresentava uma das personagens mais longevas da Ilustrada, na Folha, numa tirinha com a qual Fernando Gonsales ganhou, em 1985, o primeiro concurso para ilustradores do jornal. Desde dezembro daquele ano, o artista integra o time de cartunistas fixos do caderno com uma obra que se sagrou como uma "revolução dos bichos".
Quem usa o termo é Benett, outro cartunista da casa, na introdução de "Níquel Náusea: A Origem do Espécime", primeiro volume da Z Edições a recapitular os primeiros passos do rato e sua turma, ainda antes de Gonsales alugar seu pincel para toda sorte de animais. O livro tem lançamento durante a CCXP, evento de cultura pop que acontece até domingo (7), em São Paulo.
"Meu
interesse pelos animais sempre foi meio científico. Lia muito sobre o
assunto, inclusive livros técnicos de zoologia, entomologia e tudo
mais", diz Gonsales, que fez as faculdades de veterinária e biologia,
chegou a trabalhar por um ano na hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, antes
de enveredar pelo desenho profissional.
"Mas também tinha a
coisa de criança. Tive uma pulga que eu alimentava com meu próprio
sangue apesar de nunca ter dado um nome a ela. Então a escolha de um
animal para protagonista da tira foi natural —entre tantas opções, achei
que o rato era a melhor, porque é um animal que desafia a hegemonia
humana."

Autorretrato de Fernando Gonsales, autor da tira 'Niquel Náusea' - Divulgação
Esse
elemento de revolta talvez não seja tão evidente na, digamos,
maturidade de "Níquel Náusea", hoje centrada em trocadilhos visuais, com
piadas mais leves, que satirizam os hábitos do mundo animal e humano.
"No início as tiras tinham alguma coisa do movimento punk, mesmo que eu
não soubesse disso na época. O próprio traço era mais pesado e sujo, com
bastante uso de preto e hachurado."
Daí serem recorrentes tiras
em que Fliti, a baratinha, curte o barato de um inseticida ou de uma
naftalina como se fosse maconha ou LSD; ou em que Gatinha, a ratinha
parceira de Níquel, se diverte fazendo filhotes.
As pequenas
safadezas dividem os quadros ainda com sacadinhas mais pueris —quando
Níquel rói um fio achando que era macarrão— ou até críticas ambientais
—sobretudo ao aprisionamento de animais em zoológicos, gaiolas, além da
caça a ratos e insetos com chineladas e vassouradas.

Tirinha que está em 'Níquel Náusea: A Origem do Espécime', de Fernando Gonsales - Divulgação
"Gosto
bastante de fazer tiras idiotas, sem compromisso com nada, mas nem
sempre estou nesse estado de espírito abençoado", diz Gonsales. "Então
intercalo com assuntos mais engajados. Desde sempre quis abordar o tema
ambiental, mas de forma mais indireta para não ficar panfletário."
A
chegada das cores no jornal, nos anos 1990, também amenizou as tintas
mais obscuras do seu estilo, conforme ele conta. "Antes as minhas piadas
eram mais com a personalidade dos protagonistas, o que deixava a coisa
mais previsível. Agora as piadas são mais livres e isso permite que eu
escreva sobre mais temas e de formas diferentes em cada tira."
Aos
poucos, foi aperfeiçoando seu traço —mais anguloso e estilizado.
"Sempre busquei a simplificação do traço e do texto, até porque o espaço
das tiras é bem limitado. Essa busca continua até hoje."
O
espírito inquieto também se vê, não raro, nas sacanagens com o próprio
camundongo da Disney —figura que, na capa de "A Origem do Espécime"
aparece no início da cadeira evolutiva que desemboca no Níquel.

Capa de 'Níquel Náusea: A Origem do Espécime', de Fernando Gonsales
"Ele
não era exatamente uma antítese ao Mickey, a piada era mais com o nome.
De vez em quando brincava com a relação entre os dois roedores, mas não
era o assunto principal", diz Gonsales, que nos agradecimentos do livro
cita Renato Canini, ilustrador gaúcho que deu tamanha brasilidade às
tiras do Zé Carioca no país que chegou a ser vetado pela matriz
americana. "Mas na época que curtia o trabalho do Canini não tinha a
ideia da ruptura que ele estava fazendo, apenas adorava seu traço
genial."
Hoje, Níquel é apenas um pontinho na fauna da tira
batizada em sua homenagem, mas se firmou como um sinônimo da própria
obra de Gonsales, hoje também adaptada para o Instagram, onde o autor
publica histórias ainda mais sintéticas, de apenas dois quadros.

Tirinha 'Níquel Náusea' de 28 de novembro de 2025 - Fernando Gonsales/Folhapress
"As
tiras estão mudando de personagens fixos para universos abertos e isso
já faz muito tempo. Essa é uma tendência bem brasileira, a maioria das
tiras estrangeiras não funciona desse jeito. É tipo um suicídio em
termos de marketing. Mas é realmente uma coisa bem libertadora poder
trabalhar sem as limitações de personagens fixos, apesar deles darem
mais consistência à tira."
FOLHA
