Por Nelson Gobbi
Após se mudar com a família da cidade do Porto, em Portugal, para o Rio de Janeiro, em 1955, Artur Barrio se dedicou ao desenho, ainda que não gostasse do resultado (“Fazia umas garatujas horríveis. Meu irmão mais velho é que desenhava imensamente bem, mas não quis seguir carreira artística.”) Dez anos depois, começou a produzir seus primeiros trabalhos e, em 1967, entrou para a Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ, tornando-se, nos anos seguintes, um dos nomes de referência da arte brasileira.
Aos 80 anos, completados neste sábado (1º), Barrio volta ao desenho como meio de expressão. É a obras em preto e branco em nanquim sobre papel que ele dedica seu tempo, seja em seu ateliê na Lapa, seja no barco ancorado na Marina da Glória onde mora desde 2022 com a mulher, a fotógrafa Cristina Motta.
‘É hora de desenhar’
Entre o início da carreira e o momento atual, Barrio desenvolveu uma das produções mais radicais e inclassificáveis da arte brasileira, com obras de natureza efêmera criadas a partir de materiais orgânicos, a exemplo de sua célebre série de “Trouxas ensanguentadas” — objetos de tecido embalando carnes, ossos, dejetos, cabelos, plástico — ou com trabalhos performáticos, em arte postal e instalações.
Atualmente, obras suas podem ser vistas pelo público carioca na Casa Roberto Marinho, na exposição “Geometria inquieta”, do conterrâneo Ascanio MMM (o desenho em nanquim “Projeto 4 pedras”, de 1977), e na coletiva “Formas das águas”, recém-inaugurada no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio, na qual apresenta a instalação o “Artur Barrio e a física enquanto arte” (2018-2024).
— Já há algum tempo me dedico aos desenhos, que são menos formais, trazendo alguns pensamentos escritos. Em termos de instalações, acho que cheguei a um limite, e tentar ultrapassá-lo é muito complexo para mim — conta Barrio. — Então sinto que é hora de desenhar, de algo mais íntimo. O desenho é o princípio de tudo, ao menos para mim, e a espontaneidade dele me permite essa reflexão. E tem um lado poético, que posso extravasar através da escrita.
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No mesmo MAM que agora expõe sua instalação, e onde frequentava junto a outros artistas nos anos 1960, Barrio participou do “Salão da Bússola” em 1969, marco da arte conceitual no Brasil, ao lado de nomes como Cildo Meireles, Antonio Manuel, Anna Bella Geiger, Guilherme Vaz, Luiz Alphonsus e Thereza Simões.
— Não consigo me ver como um artista conceitual, nem acho que no Brasil exista uma arte conceitual nos moldes da americana ou da inglesa. Há um conceito ligado ao contexto do trabalho, que depois se expande e vira outra coisa — avalia Barrio. — Sempre fiquei à parte, meu trabalho é muito contraditório, anárquico, até brutal. É um pouco da forma que compreendi o mundo por meio dos contrastes do Rio, entre a sua beleza e sua natureza humana.
No “Salão da Bússola”, Barrio expôs pela primeira vez suas “Trouxas ensanguentadas”, que se relacionavam diretamente com a situação de sequestros, mortes e torturas dos presos políticos durante a ditadura militar. Em outras coletivas importantes para a arte conceitual brasileira, em 1970, ele deu sequência à série: em “Do corpo à Terra”, em Belo Horizonte (MG), 14 obras foram deixadas no leito do Rio Arrudas, que corta a capital mineira, onde foram confundidas com “desovas” reais de corpos; já na “Information”, realizada no MoMA de Nova York meses depois, foram apresentados registros da ação.
— Tinha, obviamente, uma abordagem política ali, tive amigos da Belas Artes que desapareceram. Mas eram obras que também falavam de um contexto da História da Arte, como o corpo insepulto em “Antígona”, de Sófocles, os fuzilamentos do “Três de maio de 1808”, do Goya, os “Os cantos de Maldoror”, do Conde de Lautréamont — detalha o artista.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/X/e/TmbIAOTJOO2kiAJAzwpw/35464871-sc-rio-de-janeiro-rj-10-05-2011-obra-de-artur-barrio.-foto-divulgacao.jpg)
Outra série icônica de Barrio a utilizar material orgânico foi seu “Livro de carne” — pedaços de carne cortados em sequência, no formato de páginas, que tinham de ser substituídos a cada três dias, quando começavam a apodrecer. Apresentado em 1978, em Paris, onde o artista residia na época, e exibido na 24ª Bienal de São Paulo, em 1998, o trabalho antecede em décadas a experiência conceitual de Maurizio Cattelan de levar para o ambiente expositivo um alimento real, com sua putrefação sendo parte da obra. No caso do italiano, uma banana foi escolhida como base de “Comedian”, que teve um de seus múltiplos arrematado por US$ 6,2 milhões (R$ 36,4 milhões) num leilão da Sotheby’s em novembro do ano passado.
— Isso aí é o mundo hoje, não ligo para isso. Vivi o meu momento lá atrás, quando estava em Paris e tive que explicar com detalhes ao açougueiro como cortar a carne como páginas — recorda Barrio. — Se pensasse em dinheiro, teria seguido o trajeto da família, que era de industriais em Portugal. Poderia ter sido um empresário de médio ou pequeno porte, não sei, e ganharia a vida de forma mais fácil. Mas faltaria esse lado anárquico, poético, dos que arriscaram tudo.
Dedicação na montagem
Diretor artístico do MAM e curador de “Formas das águas”, ao lado de Raquel Barreto, curadora do museu, Pablo Lafuente conheceu o projeto de “Artur Barrio e a física enquanto arte” em 2023, quando expôs alguns dos cadernos do artista por conta dos 75 anos da instituição. Ao pensar em uma exposição relacionada à Baía de Guanabara, o curador lembrou da instalação, que cria um sistema onde a água do mar é purificada, passando por uma sequência de recipientes, com inspiração vinda da experiência de Barrio em viver numa casa sobre as águas.
— A obra do Barrio, como ele próprio, se opõe às estruturas de poder, questiona os processos, inclusive dos ambientes institucionais que ele ocupa. É um trabalho com visceralidade, urgência, mas, ao mesmo tempo, não se apresenta da maneira que as pessoas esperam de uma obra de arte. Não é uma obra que se abre de cara, é preciso se engajar com ela — analisa Lafuente. — E o mais lindo era vê-lo vários dias durante a montagem, mexendo na instalação, ajustando detalhes, com uma atenção muito grande à materialidade da peça. Isso é raro num artista canônico como ele.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/I/4/uulUxwRtAWBXBG4AguEw/109867861-sc-livro-de-carne-obra-de-artur-barrio-1978-1979.jpg)
Enquanto trabalha em seus desenhos, Barrio aguarda a confirmação de possíveis individuais no exterior, em Espanha, Portugal e Bélgica, para 2026. Sem olhar para trás, garante, o artista se diz feliz por seguir produzindo.
— Cá estamos aos 80 anos, nunca pensei em chegar a essa idade. Muitos amigos já se foram, muita gente da família, mas há sempre mais algo a fazer antes de ir embora. Quero velejar, mergulhar, quero criar, jogar xadrez todos os dias para a cabeça ainda se manter. Não tenho receio do amanhã. Minha obra aí está, e o tempo dirá como fica. O maior problema mesmo é apagar 80 velas — diverte-se.
GLOBO
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