February 1, 2025

“É MUITO LEGAL QUANDO VOCÊ MORRE”

 


A última turnê do Sepultura, a mais celebrada banda brasileira de heavy metal


GILBERTO PORCIDONIO

A morte é uma antiga companheira da banda Sepultura, que já no nome de batismo indicou o caminho que seguiria na música: o do death metal, a vertente do heavy metal mais apegada aos temas mortuários. Quem escuta com atenção os dezessete álbuns de estúdio do grupo, de Bestial devastation (1985) a Quadra (2020), observa que a própria palavra death aparece 101 vezes na totalidade das músicas (algumas vezes, aparece “morte” mesmo, em português). Além da obsessão pelo tema fúnebre, a banda teve sua história atravessada por lutos e separações traumáticas, como também por superações e ressurreições.

No início de dezembro de 2023, o Sepultura anunciou que iria se despedir em definitivo da cena musical, com a turnê mundial Celebrating life through death (Celebrando a vida através da morte). O último show estava marcado para o dia 24 de novembro passado, em Praga, na República Tcheca – pouco menos de um mês antes do aniversário de quarenta anos da banda. Mas a turnê fez tanto sucesso que o Sepultura, um dos mais celebrados grupos de heavy metal do mundo, resolveu programar uma longa despedida: o show final será em 2026.

Uma espécie de morte adiada.
A turnê que celebra a vida através da
morte começou em 1º de março do ano
passado, sexta-feira, na cidade que viu o
Sepultura nascer – Belo Horizonte. Horas
antes, o céu da capital mineira escureceu
e caiu um aguaceiro, inundando
ruas e calçadas, inclusive os arredores
da casa de espetáculos BeFly Hall (que
na época se chamava Arena Hall), na
área boêmia da Savassi. Com o temporal,
a apreensão do grupo foi às alturas.


Aquele seria não só o show de abertura
da turnê, mas o espetáculo de estreia do
americano Greyson Nekrutman como
novo baterista do Sepultura.


Nekrutman substituiu o paulista Eloy
Casagrande, que, faltando três dias para
o início da turnê, anunciou sua saída do
grupo “para seguir carreira em outro
projeto”. Somente em maio revelou sua
mudança para a banda americana Slipknot,
de nu metal – estilo de heavy metal
que flerta com o hip-hop. “Nossa história
é assim: quarenta anos de doideira,
com empresários que viraram família,
que viraram mulher, com trocas repentinas
de integrantes, e agora a saída do
Eloy”, diz à piauí o guitarrista Andreas
Kisser, líder do Sepultura, no camarim
do BeFly Hall. “Mas é aquela coisa: fecha
uma porta, tem quinhentas outras
abertas”, completa.


Foi Andreas Kisser quem encontrou
a solução para o impasse causado pela
saída de Eloy Casagrande. Não ele, precisamente,
mas um de seus filhos, o
compositor e multi-instrumentista Yohan
Kisser, de 27 anos. “Yohan me mostrou
Greyson Nekrutman tocando, e eu
comentei a respeito com o Derrick, que
mora hoje em Los Angeles e foi ver
uma apresentação dele”, recorda. “Quando
aconteceu tudo isso com o Eloy,
ele já estava no radar”, diz Yohan, que
acompanhava o trabalho de Nekrutman
havia algum tempo e o achava um baterista
excepcional.


Depois de assistir ao show, o americano
Derrick Green, vocalista do grupo,
retornou a Andreas, dizendo que Nekrutman
realmente era um craque e, além
disso, um fã do Sepultura. “Greyson é
um puta talento”, diz Andreas. “Obviamente,
a gente ainda está se adaptando.
Foi uma mudança em cima da hora, e o
repertório é muito complexo, sobretudo
para a bateria, mas ele está fazendo um
trabalho fantástico.”


O Sepultura se consagrou com três
adolescentes mineiros e um paulista já
em 1987. Hoje, o grupo é meio brasileiro,
meio americano. Ao lado do vocalista
Green e do baterista Nekrutman, estão
os dois únicos remanescentes da formação
clássica da banda: o paulista Andreas
Kisser e o baixista mineiro Paulo Xisto Jr.


Os homens na meia- idade são maioria:
Kisser, com suas longas madeixas, chegou
aos 56 anos; Xisto Jr., que adotou o
look grisalho, tem 55; e Green está com
53. Nekrutman é a exceção: tem apenas
22 anos.


Depois que a tempestade acabou em
Belo Horizonte, um clima descontraído
tomou conta do camarim do BeFly Hall.
Não parecia que os músicos do Sepultura
iriam iniciar dali a pouco tempo uma
de suas turnês mais importantes. Estavam
todos muito à vontade e tranquilos.


Ou aparentemente tranquilos, pois Kisser,
de bermuda e camiseta regata do
time de basquete americano Phoenix
Suns, exibia um detalhe nervoso: não
parava de balançar a perna, como se, em
vez de guitarra, estivesse tocando o bumbo
de uma bateria imaginária.


Kisser, Xisto Jr., Green e Nekrutman
entraram no palco, um depois do outro

ao som da batucada que abre Refuse/
resist – do álbum Chaos A.D., de 1993 –,
a música escolhida para abrir todos os
shows da turnê. Nos primeiros acordes,
o coro dos cerca de 5 mil espectadores
repetindo a letra praticamente engoliu
a voz arrasa-quarteirão de Green. O Sepultura
tocou 21 músicas, de todas as
fases do grupo, para uma plateia muito
variada: homens e mulheres, jovens e
maduros, muitos portando as bandeiras
de seus estados e até cocares indígenas.


Os fãs que compraram o ingresso vip
puderam assistir à passagem de som,
quatro horas antes do show. Estavam
eufóricos por conseguir ver os ídolos de
perto, como num ensaio aberto, durante
o qual Kisser teve que ditar – leia-se: gritar
– os acordes de algumas músicas que
Nekrutman não tinha pegado por completo,
como os de Troops of doom, com
suas súbitas e velozes viradas de tempo.
(Pouco a pouco, ao longo da turnê,
Nekrutman foi se “sepulturando” e incorporou
mais tons e pratos à bateria.)


O ingresso vip também dava direito a
participar do Meet & Greet, o encontro
exclusivo com os músicos, realizado em
uma sala no BeFly Hall na qual havia
sido montada uma espécie de museu,
com guitarras usadas por Kisser, camisetas
com estampas da banda de vários
anos, cartazes de shows, capas de revistas
e os discos de ouro e platina. Em destaque
numa parede, estava a lembrança de
um passado tanto glorioso quanto turbulento:
um pôster do grupo dos anos 1990,
quando ainda faziam parte do Sepultura
os dois irmãos que começaram toda a
história – Max e Iggor Cavalera.


O primeiro show do Sepultura aconteceu
em 4 de dezembro de 1984,
num salão de festas no bairro Barroca,
em Belo Horizonte: o extinto Barroliche.
O público não passava de oitenta
pessoas, que foram até lá para ouvir sobretudo
as bandas Tropa de Choque e
Overdose, para as quais o Sepultura faria
o show de abertura.


A ideia era subir ao palco com cinco
músicos, mas o Sepultura se apresentou
como um trio. Na última hora, o guitarrista
Roberto ufo não apareceu e o baixista
Paulo Xisto Jr. precisou viajar com
a família. O guitarrista Max Cavalera,
de 15 anos, o baterista Iggor Cavalera (então
apenas Igor: ele passou a assinar
com dois “g” em 2008), de 14 anos, e o
vocalista Wagner Lamounier, também
de 14 anos, se apresentaram adornados
com pulseiras de couro cheias de pregos
pontiagudos (spikes) e uma maquiagem
que tentava ser mórbida, no estilo black
metal, mas os deixou mais parecidos
com ursos panda. Iggor se destacou no
quesito fantasia: vestiu uma peruca e,
por cima, um capacete estampado com
a suástica nazista (a banda só abandonou
o símbolo nefasto depois de uma
aula de história do vocalista Carlos Lopes,
da banda carioca Dorsal Atlântica).
O som não era dos melhores. A guitarra
estava desafinada, e Iggor espancava a
bateria como se não houvesse amanhã.
Só restou aos músicos aguentar as gargalhadas
do público ao ouvir cantigas
como Adote um rato e Anti-Cristo. Ali,
no salão de baile, nada indicava o que
aconteceria alguns anos depois com
aqueles adolescentes desengonçados.
O futuro, porém, começou bem antes.
Em 1965, a mineira Vânia Valquíria
Ferreira, uma linda modelo de cabelos
cacheados e olhos amendoados, conheceu
em São Paulo um funcionário do
Ministério das Relações Exteriores italiano,
chamado Graziano Cavalera. A sintonia
foi grande, e os dois logo se casaram.


Apesar de o casal viver em São Paulo,
Vânia preferiu ter os filhos em Belo Horizonte,
onde podia contar com o apoio
da família. Em 1969, nasceu Massimiliano
(Max) Antônio. Um ano depois, Igor
Graziano. Em 1977, o casal adotou Kira.
A família morava em Higienópolis,
um bairro de classe média alta, e tinha
uma vida confortável em São Paulo. Graziano,
apreciador de óperas, gostava de
tocar violão e cantar canções italianas.


Os meninos não dispensavam os jogos de
futebol, se esbaldando nos estádios com
a torcida do Palmeiras. Em setembro de
1979, às vésperas de uma mudança planejada
para Roma, todos foram fazer um
passeio de barco na Represa de Guarapiranga,
em São Paulo. Lá, Graziano começou
a se queixar de dores no peito. As
dores pioraram e a família foi às pressas
para um hospital. Não houve tempo de
socorrer o pai: ele morreu de infarto.


A morte de Graziano virou a vida da
família de cabeça para baixo. Vânia e os
filhos precisaram se mudar para Belo Horizonte
e passaram a depender da ajuda
de parentes e amigos. “Era difícil até arrumar
emprego, as mulheres viravam a
cara para mim, tinham medo de uma
ex-modelo viúva na cidade. Eu vivia com
o dinheiro da pensão [do marido], porque

não tinha reservas”, disse Vânia à revista
Trip, em 2010. Para Max, a morte do pai
cravou uma mudança radical na vida dos
irmãos. Em sua autobiografia, My Bloody
Roots (Minhas raízes sangrentas, de
2013), ele diz: “Embora a morte do meu
pai tenha sido algo terrível, trazendo
uma mudança total no estilo da nossa
família, ela nos fez encontrar um propósito.
Sempre digo a mim mesmo que, se
ele não tivesse morrido, talvez nunca
tivéssemos nos tornado músicos [...]
Tudo nasceu da morte dele.”


Na discoteca do pai, Max e Iggor
encontraram discos de Led Zeppelin e
Black Sabbath. A descoberta intensificou
a paixão dos dois pelo heavy metal, que
vivia um momento de ascensão nos anos
1970/80. Os irmãos adolescentes encontraram
um modo de expressão e de
revolta nessa vertente pesada do rock e
encafifaram de criar um grupo musical.
Iggor, que tinha experiência com percussão
nos tambores que surrava durante
os jogos do Palmeiras, elegeu a bateria
como o seu instrumento. Max ficou com
a guitarra.


No jargão militar, heavy metal é um
termo utilizado para se referir a
armamentos grandes e pesados.
Na química, designa os metais de alta
densidade. A origem do termo musical é
incerta, mas, no fim dos anos 1960, foi
incorporado por críticos, como Mike
Jahn e Lester Bangs, para classificar bandas
que praticavam um blues-rock mais
agressivo, como os grupos Cream (britânico)
e Steppenwolf (americano).


Esse estilo musical é uma exaltação
extrema do rock: a guitarra e o baixo
adensam a melodia com acordes enérgicos
e pesados, a bateria ataca com rajadas
fortes e frenéticas, o vocal avança sobre
a melodia com sons guturais. O visual
dos músicos remete à experiência apocalíptica:
cabelos longos, correntes, braceletes,
crânios, crucifixos e, claro, roupas
na cor preta – que o historiador francês
Michel Pastoureau diz que foi associada
ao mal pela Igreja Católica. O preto é
também a cor da rebeldia juvenil, fixado
nas jaquetas de couro dos filmes O selvagem
(1953), com Marlon Brando, e
Sem destino (1969), com Dennis Hopper
e Peter Fonda, que, aliás, tem como
tema principal a canção Born to be wild,
do Steppenwolf.


Muitos cravam que o heavy metal começou
com Helter skelter (1968), dos Beatles,
canção na qual o baterista até reclama
por ter que tocar tão forte (“Estou com
bolhas nos meus dedos”, berra Ringo Starr
no fim da faixa). Para outros, o gênero remonta
à performance do músico americano
Screamin’ Jay Hawkins (1929-2000), no
hit I put a spell on you. Todos concordam,
porém, que o grupo fundador do heavy
metal se chama Black Sabbath.


O Black Sabbath – banda formada em
1968, em Birmingham, na Inglaterra,
pelo guitarrista Tony Iommi, o baixista
Terry “Geezer” Butler, o vocalista Ozzy
Osbourne e o baterista Bill Ward – resolveu
deixar o blues de lado para investir em
músicas que aterrorizassem as pessoas.
A ideia era espantar a pasmaceira no
Reino Unido e expressar a falta de perspectiva
da juventude proletária britânica.
A experiência do Black Sabbath acabou
por se irradiar pelo meio juvenil de todo
o Ocidente, prostrado com o declínio da
era hippie, do fracasso das revoltas de
1968 e dos múltiplos traumas do período,
como a Guerra do Vietnã e os assassinatos
de Martin Luther King e Malcolm X.
No Brasil enjaulado pela ditadura militar,
a primeira banda de heavy metal,

Stress, apareceu em Belém, em 1974. Inspirada
por grupos como Judas Priest, Kiss
e Deep Purple, praticava o que era então
chamado de “rock pauleira”. Nos anos
1980, o gênero se espalhou por capitais
como São Paulo e Rio de Janeiro, com
grupos formados por jovens de classe média
e baixa. Também na pacata e muito
católica Belo Horizonte o cenário roqueiro
pesado prosperou, com grupos como
Sexo Explícito, Banda do Lixo, Serpente,
Pássaros da Noite e Sagrado Inferno.
A primeira turma reunida pelos irmãos
Cavalera era formada por Roberto
“Gato” Raffan (baixo), Roberto ufo
(guitarra) e Wagner Lamounier (vocais).


Todos tinham entre 15 e 17 anos, e mal
sabiam tocar os instrumentos. A primeira
guitarra de Max foi uma Phelpa Coronado,
marca nacional famosa por ter em seu
corpo dois interruptores tipo os de parede
(Roberto Carlos usou uma do modelo
Apache no filme Roberto Carlos em ritmo
de aventura, de 1968). A “bateria” de Iggor
consistia em um tarol de fanfarra, um
surdo tosco e um prato precário enfiado
num cabo de vassoura cravado numa lata
de tinta com cimento. Como ele não tinha
bumbo, marcava o tempo batendo o
pé no chão, como contaram o jornalista
André Barcinski e o empresário Silvio
“Bibika” Gomes, no livro Sepultura: toda
a história. Gomes foi vizinho dos Cavalera,
com os quais estabeleceu uma forte
amizade. Foi também um dos primeiros
a perceber o potencial do grupo, do qual
se tornou empresário – desde aqueles
tempos pré-históricos até 2006.


O nome cogitado pelos jovens para o
grupo de heavy metal foi Tropa de Choque.
Mas já havia em Belo Horizonte
uma banda chamada Tropa de Choque.
Eles decidiram, então, extrair o nome da
música Dancing on your grave, do grupo
britânico Motörhead. Em português,
“Dançando na sua sepultura”.


No bairro Santa Tereza, os Cavalera
eram praticamente vizinhos da família
dos músicos Márcio e Lô Borges, do Clube
da Esquina – grupo que os garotos
metaleiros odiavam, por achar muito “tilelê”
(hippie). Um dia, aconteceu o imprevisto:
cansada da balbúrdia infernal da
guitarra da turminha, a cantora e compositora
Solange Borges, irmã de Márcio e
Lô, foi até a casa dos vizinhos e afinou o
instrumento para eles.


Nessa época de barulhos encorpados
e vacas magras, a vida dos Cavalera também
andava bastante desafinada. Vladimir
Korg, na época funcionário de uma
famosa loja de discos de Belo Horizonte,
a Cogumelo, conta que, certa vez, Iggor
saiu às pressas do estabelecimento porque
não queria perder o sorteio em sua
casa para escolher quem comeria o único
bife do dia. “Max e Iggor também
costumavam ir à casa dos amigos na
hora do almoço, ou então dormiam lá.
A Vânia segurava uma barra muito pesada
e todo mundo sabia disso. Mas eles
nunca pediam nada.” (Mais velho que os
irmãos, Korg foi vocalista da banda de
metal Chakal e integra hoje o The Mist.)
Sentindo que o sonho dos filhos era
seguir a carreira musical, Vânia resolveu
apoiar as duas crias cabeludas pra valer.
A escola deixou de ser uma obrigação
para eles (Max e Iggor não chegaram a
terminar o ensino fundamental) e a banda
virou uma prioridade na família.


Raffan e Lamounier deixaram o grupo
e foram substituídos por Jairo Guedez (na
guitarra) e Paulo Xisto Jr. (no baixo), também
conhecido como “Paulinho Kiss”,
por ser um grande fã da banda mascarada
americana. Os ensaios passaram a ser feitos
na casa de Xisto Jr., na Rua Pouso Alegre,
em Santa Tereza, bairro onde todos
moravam. A casa dos irmãos Cavalera, na
Rua Dores do Indaiá, virou o “escritório”
– o local onde Iggor pintava camisetas,
Max cuidava da correspondência e Gomes
tentava arranjar shows. Outra atividade
no escritório era copiar as fitas cassete
gravadas nos ensaios para enviar a fanzines,
a maioria de fora do país.


Em meados dos anos 1980, a loja Cogumelo,
num movimento ousado, resolveu
investir na gravação de discos de
bandas de metal. Na época, o grupo mais
azeitado em Belo Horizonte era o Overdose,
de heavy metal tradicional. Mas,
como o Overdose não dispunha de material
suficiente para fechar um lp, surgiu a
ideia de juntar ao disco uma banda novata.
Korg indicou a dos irmãos Cavalera
para os donos da loja e da gravadora, Pat
Pereira e João Eduardo. Em dezembro de
1985, mesmo ano do fim da ditadura militar,
a Cogumelo Records lançou a primeira
gravação profissional do Sepultura,
em conjunto com o Overdose, no lp conjunto
Século XX/Bestial devastation.


Ali, todos já estavam devidamente
apelidados, conforme a mitologia heavy
metal. O guitarrista e agora vocalista
Max Cavalera era “Max Possessed” (possuído).
O baterista Iggor Cavalera, “Igor
Skullcrusher” (esmagador de crânios).
Paulo Xisto Jr. se tornou “Paulo Destructor”,
e Jairo Guedez, “Tormentor”. Apesar
da gravação tosca feita com instrumentos
emprestados, o disco teve a primeira prensagem
de mil cópias vendida rapidamente
e chamou a atenção dos fãs de heavy
metal. Pela gravação, o grupo recebeu
duzentos discos para vender por conta
própria. Graças ao dinheiro arrecadado,
Iggor ganhou finalmente uma bateria.


O segundo álbum da banda – e o primeiro
solo – foi lançado em 1986,
também pela Cogumelo Records.
Desta vez, as gravações foram feitas em
São Paulo, e as vendas de Morbid visions
surpreenderam: cerca de 10 mil cópias,
um feito para a época. Em dezembro
daquele ano, o Sepultura foi convidado
a abrir, no Mineirinho, os shows do grupo
canadense Exciter e da banda inglesa
Venom. Embora fossem uma das principais
referências dos jovens mineiros, os
músicos da Venom não agiram com
muita simpatia: chegaram a impedir que
o Sepultura se aproximasse do equipamento
deles. O humor dos ingleses piorou
quando notaram que o show do

Sepultura foi tão intenso e aplaudido
quanto o deles. Mas a antipatia vinha de
pouco antes. Cronos, o vocalista do grupo,
às vésperas de embarcar para Belo
Horizonte, ganhou o disco do Sepultura
de um fã e o lançou imediatamente na
piscina do hotel em que dava uma entrevista
à imprensa, no Rio de Janeiro.
Em 1987, Guedez, o Tormentor, decidiu
deixar a banda. Entrou então em
cena Andreas Rudolf Kisser, um rapaz
de 18 anos, de São Bernardo do Campo,
na Grande São Paulo. Ex-guitarrista da
banda paulista Esfinge, ele havia conhecido
Iggor na loja de discos Fucker Records,
em Santo André. Iggor o convidou
para acompanhar um ensaio do Sepultura
em Belo Horizonte. Kisser foi – e a
conexão com os irmãos se ampliou.


Com o aval de Vânia, o paulista foi morar
na casa dos Cavalera. Viveu lá durante
dois anos. Havia trazido na bagagem novas
ideias, que acabaram sendo processadas
no álbum Schizophrenia, de 1987, o
terceiro do Sepultura, que colocou o satanismo
recreativo de lado para falar de
guerra e transtornos mentais. “Andreas,
como diria o escritor Orígenes Lessa, juntou
duas coisas: o feijão e o sonho”, comenta
Korg. “O Max era o sonho, porque
ele tem uma estrela, é um cara diferenciado
desde criança. E aí chega o feijão, que
é o Andreas, que colocou tudo em seu
devido lugar, trazendo disciplina, a questão
da composição, da estética sonora, do
respeito e da profissionalização. Dali para
a frente, a banda seria outra coisa, sem
perder os seus princípios.”


O novo disco também arrastou a banda
para outro leque da música pesada, o
thrash metal (algo como metal porrada),
outra variante do heavy metal, mais rápido
e violento, com letras que misturam
ocultismo e rebeldia social, como fez o
Sepultura na música To the wall, do álbum
Schizophrenia, escrita em inglês por
Korg. A música diz em um trecho: “Pra
parede, exige o soldado/Meus últimos
passos guiam para a morte/Últimos desejos!
Inferno! Isso é idiotice/Foda-se eu/
fodam-se todos vocês.”


A música foi feita depois de os músicos
sofrerem diversas abordagens da polícia
e serem obrigados a ficar encostados
em uma parede, como diz o título. “É que
a gente usava roupas militares como forma
de protesto. Não se vendiam essas
roupas em loja, era tudo de quem já havia
servido no Exército. A gente tinha
medo de estar vestido com esse tipo de
coisa e ser parado pela polícia, já que eles
tomavam a roupa e, claro, nos batiam”,
lembra Korg. “Tratamento para headbanger
[metaleiro] era mão na parede e tapa
na nuca, e isso com sorte. A gente apanhava
pra caralho de polícia. Os caras
eram mais filhos da puta do que são
hoje”, avalia Gomes. Não à toa, um dos
covers que ficariam mais famosos na voz
do Sepultura é o de Polícia, dos Titãs.


Em fevereiro de 1988, com 18 anos,
Max Cavalera, de rabo de cavalo e vestindo
um terno barato, embarcou para os
Estados Unidos com uma passagem descolada
de graça com um amigo que trabalhava
na PanAm. Passou dois dias em
Nova York, onde se encontrou com os
jornalistas Don Kaye e Borivoj Krgin –
os primeiros a receberem e propagarem
o som da banda fora do Brasil. Também
conheceu o empresário americano Monte
Conner, caçador de talentos da então
independente gravadora Roadrunner.
Três meses depois, o Sepultura assinou
um contrato com a gravadora americana.
No ano seguinte, o grupo mineiro lançou
seu quarto álbum, o primeiro pela
Roadrunner, Beneath the remains (Sob
os escombros), produzido pelo americano
Scott Burns e gravado no estúdio
Nas Nuvens, no Rio de Janeiro.


A família Cavalera decidiu se mudar
de Belo Horizonte para São Paulo. Foi
viver em um apartamento no Centro da
cidade, enquanto Kisser e Xisto Jr. se estabeleceram
em Santo André. Beneath the
remains foi bem-sucedido, e o Sepultura
iniciou sua primeira turnê internacional.
Em 1989, a travessia pelos Estados Unidos,
além de ampliar o prestígio da banda,
trouxe uma personagem nova para a
trupe: a produtora americana Gloria Bujnowski,
que teria papel importante como
empresária do Sepultura. E mais que isso:
em 1993, ela se casaria com Max.


É dessa época uma das mais esdrúxulas
histórias do vasto folclore sobre a banda.
Durante uma viagem pela Europa, o
Sepultura passou a dividir o ônibus da
turnê com o grupo alemão Sodom, com
o qual o clima não era dos melhores. Para
começar, porque os alemães obrigaram
os brasileiros a se instalarem nas camas do
fundo do ônibus. Além disso, porque,
para irritação do Sodom, o Sepultura era
o grupo mais aguardado nas cidades visitadas.


As coisas azedaram de vez, literalmente,
depois que os alemães intimaram
Max a tomar um banho (ele havia evitado
o chuveiro durante vários dias para submeter
o empresário do Sodom e os músicos
ao cheiro cadavérico que se espalhava
pelo tour bus durante as viagens – os outros
membros da banda brasileira se uniram
no protesto.)


A viagem ao exterior ajudou a popularizar
o grupo no Brasil, culminando em
um show no Maracanã em 23 de janeiro
de 1991, na segunda edição do Rock in
Rio, quando a banda foi ovacionada por
um público de quase 80 mil pessoas. Os
fãs não sabiam que as coisas andavam mal
para o Sepultura, que vinha trabalhando
quase de graça para a gravadora americana,
pois o contrato de oito discos previa
que a banda restituísse à Roadrunner todo
o investimento recebido.


Dois meses depois da apresentação no
Rio, o Sepultura lançou seu quinto álbum,
Arise. O lançamento seria acompanhado
de uma turnê de 25 meses em
mais de 30 países. Antes disso, a banda
decidiu fazer um show gratuito em São
Paulo, em agradecimento ao público.


Em 11 de maio de 1991, cerca de 30 mil
pessoas se reuniram na Praça Charles
Miller, no Pacaembu, para o espetáculo,
que se transformou em tragédia: várias
brigas pipocaram no local e um jovem de
19 anos, Alexandre Salcedo, levou um
tiro na cabeça. Morreu a caminho do
hospital. O assassino nunca foi pego, mas
testemunhas disseram que seria um
membro dos temidos “carecas”, versão
brasileira dos grupos nacionalistas que se
intitulavam skinheads e tinham rixa com
os metaleiros e os punks. Um fã levou
uma bala abaixo do pulmão e outros dois
foram esfaqueados. Dois dias depois, o
jornalista Sérgio Sá Leitão (que viria a ser
ministro da Cultura no governo Temer)
escreveu na Folha de S.Paulo que “em
São Paulo, o grupo deixou um rastro de
fanatismo e sangue”. Com os acontecimentos
do show, os “metaleiros” ganharam
fama de pessoas violentas. (Não foi
o único incidente enfrentado pela banda.


Três anos depois, Max foi preso depois de
uma apresentação no Hollywood Rock,
em São Paulo, acusado de vilipendiar a
bandeira do Brasil. Ele negou que tivesse
pisado e cuspido no símbolo nacional.)
Enquanto alguns tentavam fazer do
Sepultura o inimigo nº 1 da pátria, a banda
iniciava um processo de “descoberta”
do Brasil, colocando um pouco de lado
as referências anglófilas e internacionalistas
do heavy metal. “No período radical,
a gente só queria escutar as coisas de
fora. Tudo que era do Brasil era um lixo
para nós”, conta Kisser. “A partir do momento
em que começamos a viajar para
o exterior, vendo o Brasil de longe, a gente
começou a respeitar o país como um
astronauta vê o planeta Terra. A turnê fez
isso com a gente, e começamos a introduzir
uns elementos de percussão associados
com a música brasileira que
viraram uma característica da banda.”


A busca do Sepultura por uma brasilidade
que combinasse com o seu som ficou
mais nítida no sexto álbum, Chaos
A.D., de 1993, quando também foi abraçada
outra influência, o groove metal – estilo
no qual, em meio à porradaria sonora,
emergem algumas levadas que instigam
à dança e ao balanço (mais dos cabelos que
do corpo, no caso dos metaleiros). A junção
do metal com os ritmos brasileiros
gerou a surpreendente Kaiowas – a partir
do povo Guarani/Kaiowá, que sofre com
altos índices de suicídio, em decorrência
das pressões que enfrentam para deixar
suas terras. Em Refuse/resist, a gravação
das batidas do coração de Zyon, filho de
Max, enquanto a criança ainda estava na
barriga da mãe, é seguida de um paredão
percussivo abertamente inspirado nos
tamborins das escolas de samba (vinte
anos depois, a música estaria entre as que
foram usadas como fundo sonoro de vídeos
para as redes sociais feitos durante os
protestos de Junho de 2013).


Em meados dos anos 1990, quando a
internet ainda engatinhava e as rádios fm
estavam no auge, o heavy metal precisou
enfrentar o furacão do movimento grunge,
uma nova onda de bandas de rock
alternativo que vinha dominando o mercado.
Parecia que a era do metal estava
chegando ao fim. Os velhos grupos partiram
então para experimentações musicais,

como o Metallica, que tentou adaptar seu
estilo thrash metal a algo mais palatável,
adequado à fm. O grupo angariou novos
fãs, mas acabou sendo acusado pelos fãs
mais antigos de ter feito a mudança para
se tornar mais comercial.


O Sepultura fez diferente. No início
de 1995, resolveu dobrar a aposta da brasilidade
e iniciou a criação do álbum
Roots (Raízes), que, com sua guinada
“antropológica”, dividiria em duas a história
do heavy metal mundial. Primeiro,
a banda foi à Terra Indígena Pimentel
Barbosa, em Mato Grosso, para gravar
uma faixa com os indígenas xavantes –
Itsári (termo a partir da palavra xavante
isãna’rada, que significa “raízes”).
Depois, convidou o músico baiano Carlinhos
Brown, na época no grupo Timbalada,
para participar de uma faixa
samba-reggae-metal, Ratamahatta (neologismo
a partir das palavras “rata” e
“Manhattan”).


Como abertura do disco, o Sepultura
criou um riff de guitarra que parece emular
o som gingado do berimbau. A música
Roots bloody roots (Raízes, sangrentas
raízes) viraria uma espécie de hino da
banda: I say we’re growing every day/Getting
stronger in every way/I’ll take you to a
place/Where we shall find our/Roots, bloody
roots (Digo que estamos crescendo a cada
dia/Ficando mais fortes em todos os sentidos/
Eu te levarei para um lugar/Onde
encontraremos nossas/Raízes, sangrentas
raízes). Apesar de sua busca pelas raízes
brasileiras, o Sepultura manteve as letras
das músicas na órbita anglófona (Max
certa vez disse que “metal em português
é como samba em alemão”).


Lançado em 1996, Roots, o sétimo
álbum, traz na capa a imagem de um
indígena do povo Karajá, a partir de
uma imagem que estampava a nota
de 1 mil cruzeiros. “Quando ouviram o
disco, as pessoas da gravadora detestaram.
Disseram: ‘Que porra é essa, meu?
Vocês são loucos?’ Muitos fãs também
não gostaram, e não gostam até hoje.
Lógico que eles não estavam tendo a
visão”, diz Kisser. Não tiveram, de fato.
Roots foi o álbum mais vendido do Sepultura:
meio milhão de cópias só nos
Estados Unidos e mais de 2 milhões no
restante do mundo. Também inspirou
bandas do nu metal, como Limp Bizkit,
Deftones e o próprio Slipknot (aquela
da qual faz parte hoje Eloy Casagrande,
o ex-baterista do Sepultura).


A pesquisadora Melina Santos, que
estudou a apropriação do death metal
em regiões periféricas no livro We do
rock too: os percursos do gênero musical
metal ao longo do movimento do rock
angolano, atribui as reações negativas
ao disco a uma atitude “racista e purista
do que é música”, diz ela à piauí. Santos
chama a atenção para a importância do
álbum para os metaleiros dos países da
África. “Para a cena angolana, o Sepultura
é uma banda que conseguiu demonstrar
ser possível fazer metal com
certo nível de qualidade, imaginação
da sua cultura e rompendo com alguns
estereótipos”, afirma. “Isso coloca o
Brasil numa perspectiva de matriz cultural
de produção de rock e metal para
bandas africanas e europeias.”


O Sepultura havia alcançado o estrelato
mundial e nada parecia impedir
o heavy metal brasileiro de
conquistar o vil metal do show business.


Mas o clima nos bastidores do grupo
não era nada bom. De acordo com Barcinski
e Gomes – os autores da biografia
do Sepultura –, Gloria Bujnowski, agora
Gloria Cavalera, a mulher de Max,

Monika Bass, a então mulher de Iggor,
andavam se estranhando. Além disso,
aumentava entre os integrantes da banda
a sensação de que Gloria estava valorizando
mais seu marido que os demais
músicos. Os rebelados pediram que o
contrato dela como empresária, que
venceria em 1996, não fosse renovado.
Em agosto daquele ano, quando o Sepultura
chegava ao festival Monsters of
Rock, em Leicestershire, na Inglaterra,
para tocar com Ozzy Osbourne e Kiss, o
grupo recebeu a notícia de que Dana
Wells – filho que Gloria teve de outro 

relacionamento – havia morrido, aos 21 anos,
em um acidente de carro nos Estados Unidos.


Max Cavalera viajou com sua mulher
para o enterro, e o restante da banda honrou
seu compromisso no festival.
Depois do funeral nos Estados Unidos,
a banda inteira se reuniu e optou
por ficar longe dos palcos por duas semanas.
Gloria, porém, decidiu cancelar a
turnê inteira, que duraria ainda dois meses,
terminando apenas em outubro. Os
músicos, um pouco contrariados, cumpriram
o período de interrupção, mas
em dezembro Gloria foi demitida. Em
solidariedade à sua mulher, Max resolveu
se desligar do Sepultura, sem aviso
formal. “A Gloria estava representando o
Max bem, mas não estava falando a mesma
língua que a gente”, afirmou Iggor
na época em uma coletiva de imprensa.
Silvio Gomes, o primeiro empresário da
banda (além de coautor da biografia do
grupo), analisa esse cisma como uma
falta de maturidade geral para lidar com
a crise. “Faltou isso, inclusive, para a
Gloria. O certo era a banda ter tirado um
ano de folga. Qualquer banda que acaba
nunca cai para cima, com raríssimas exceções.
O timing foi ruim.”


Max Cavalera sustenta até hoje que
foi traído pelo irmão e pelos amigos – e
que foi expulso. Fora da banda, o guitarrista
criou o grupo Soulfly, para prosseguir
com as ideias que começou a
elaborar em Roots. Os dois irmãos ficaram
dez anos sem se falar. Só retomaram
o diálogo em 2006, atendendo a
um pedido da mãe, Vânia Cavalera.
(Ela morreu em 2023, aos 80 anos, e
suas cinzas foram espalhadas por Iggor
na Avenida Paulista, durante a Parada
do Orgulho lgbt de São Paulo, como
ela havia pedido.)


A saída do guitarrista gerou uma
onda de “viúvas do Max” – aqueles fãs
que só aceitam o Sepultura na formação
clássica. Sem Max, a banda precisou se
reposicionar no mercado da música,
como se começasse do zero. “Foi um
trauma fodido”, lembra Gomes. “Os caras
quase acabaram para valer. E é claro
que houve um boicote dos americanos
e dos europeus, inclusive da própria gravadora,
que tirou produtor, divulgação,
grana de investimento. Nessa época, tinha
show nos Estados Unidos com público
de apenas trinta pessoas.”


O empresário e músico Baffo Neto
avalia que, na cabeça dos fãs, a identidade
artística da banda acabou se fixando
na figura de Max: “Muita gente vê uma
banda como uma unidade quase indivisível,
mas a verdade é que, àquela altura,
o Max era um ídolo mundo afora. E um
ídolo tem muito menos problemas em
continuar uma carreira. Por isso, os outros
tiveram algumas dificuldades ao
longo do tempo. Tem discos excelentes,
mas o problema do Sepultura não é o

presente: sempre foi o passado.”
A nova fase da banda, sem Max Cavalera,
começou em 1997, quando
uma fita cassete enviada por
um americano chamou a atenção dos
músicos. Derrick Leon Green soubera
que o Sepultura estava procurando um
novo vocalista e resolveu enviar uma
amostra de seu vozeirão para o Brasil.
Filho de uma professora de música
com um eletricista, ele já havia cantado
na Outface, banda de hardcore
(uma variante da música punk, mais
rápida). Mas deixou a carreira musical
e foi trabalhar como segurança de boate
em Nova York. Em 1998, Green desembarcou
no Brasil para gravar o novo
álbum do Sepultura, Against.


“O Sepultura era muito conhecido
nos Estados Unidos, mas eu não sabia
nada sobre o Brasil. Como nessa época
não existia internet, fui a uma biblioteca
atrás de um livro sobre o país”, conta
Green, um homem negro e vegano de
1,95 metro de altura. “Ao chegar aqui,
pensei: ‘Putz, preciso fazer tudo o que
for possível, esse é um momento muito
importante para mim.’ Os ensaios foram
difíceis, porque eles já tocavam
juntos havia muitos anos. Mas, então, lá
estava eu: diante de milhares de pessoas
que gritavam quando me viam, uma
coisa inédita para mim.”


O début do vocalista americano foi
em agosto de 1998, em São Paulo. Dois
anos depois, ele se mudou para o Brasil.
“No início foi difícil porque eu não falava
português, e poucas pessoas aqui falam
inglês. Eu me sentia uma criança.
Agora, quando estou fora do Brasil, tudo
o que eu quero é voltar. Hoje, o Brasil é
a minha segunda casa, e se alguém fala
mal do país eu digo: ‘Cala a boca, caralho.
Você não sabe nada do Brasil!’”


A “era Derrick Green” do Sepultura
começa marcada por um som mais cru
e próximo do minimalismo do hardcore,
do qual o vocalista era mais íntimo,
como nos álbuns Against, de 1998, e
Nation, de 2001, o último pela Roadrunner.


Depois de treze anos, a banda
resolveu romper seu contrato com a
gravadora americana, alegando falta de
interesse da parte dela, desde a saída
de Max. Mas Gomes aponta outro motivo:
“Nunca se falou abertamente, mas
sempre houve um preconceito com a
banda colocar um cara preto. As pessoas
da gravadora boicotaram mesmo.”
Em 2007, a Roadrunner foi comprada
pela Warner Music Group. A inclusão
de Green, como se verá mais adiante,
foi altamente inspiradora para os metaleiros
antirracistas.

O décimo álbum, Roorback, de 2003,
trouxe um Sepultura mais coeso e mais
robusto. As conexões com importantes
festivais de música foram refeitas, e o
grupo passou a produzir trabalhos mais
elaborados e conceituais, como os álbuns
Dante XXI (2006), inspirado na Divina
comédia, de Dante Alighieri; A-Lex
(2009), calcado no livro Laranja mecânica,
de Anthony Burgess; Kairos (2011),
que reflete sobre o tempo; The mediator
between head and hands must be the
heart (2013), parcialmente inspirado no
filme Metrópolis, de Fritz Lang; Machine
messiah (2017), sobre a robotização
da humanidade; e Quadra (2020), o
mais elogiado da nova fase, inspirado
nas ideias do pensador cartaginês Marciano
Capela (360-428 d.C.) de sistematizar
todo o conhecimento humano.


No meio da retomada, aconteceu outro
baque. Em 2006, Iggor Cavalera deixou o
grupo, alegando que “muitos anos de trabalho
em conjunto fizeram com que o
relacionamento fosse se desgastando cada
vez mais”. A saída de Iggor foi um segundo
choque, mas bem menos traumático
que o provocado pela saída de Max. Iggor
foi substituído na bateria, primeiro, pelo
mineiro Jean Dolabella, que ficou até
2011. No lugar, entrou o paulista Eloy Casagrande,
substituído pelo nova-iorquino
Greyson Nekrutman. (Atualmente, Iggor
toca no Cavalera Conspiracy, que ele e
Max criaram em 2007. Os dois têm regravado
os primeiros discos que fizeram,
apostando nas sonoridades tradicionais de
black e death metal que exploraram no
início da carreira, bem mais sujas e pesadas,
o que agrada os fãs nostálgicos do
Sepultura antigo.)


Enquanto isso, o mundo girava: mudanças
radicais ocorriam no mercado
fonográfico, com a venda de discos físicos
despencando depois do mp3 e do
streaming. Os roqueiros cabeludos e
tatuados também já não eram mais vistos
como o bicho-papão da vizinhança,
e o Rock in Rio até oficializou o seu Dia
do Metal. Andreas Kisser, por seu lado,
fez diversas parcerias na música brasileira,
com aparições ao lado de nomes
da tradicional mpb e do pop, de Caetano
Veloso a Ivete Sangalo.


Nesse novo mundo, surgiu há dez
anos, também em uma cidade mineira,
Uberaba, uma manifestação rara no
meio do heavy metal: uma banda com
discurso e presença antirracista. Dois
irmãos negros, Charles Gama e Chaene
da Gama, de 38 e 40 anos, que tocavam
covers do Sepultura, se uniram ao
baterista Rodrigo “Pancho” Augusto e
formaram o Black Pantera, um power
trio (formato de banda de rock com guitarra,
baixo e bateria). “Na época, a entrada
de Derrick Green no Sepultura
foi um espelho gigantesco para a gente.
Antes, você mal contava os integrantes
pretos das bandas de heavy metal”, conta
Chaene. “Daí, o cara chegou, e ele
era só o vocalista da maior banda de
metal do Brasil.” Em 29 de novembro
passado, o Black Pantera abriu um dos
shows da turnê de despedida do Sepultura
em Ribeirão Preto.


Quase dois meses depois do início
da última turnê, em Belo Horizonte,
o Sepultura aportou em
Buenos Aires para uma única apresentação
no Teatro Flores. Foi o 13º show
da turnê pela América Latina, que incluiu
também Peru, Equador, Chile,
Uruguai e Costa Rica. O setlist foi praticamente
igual ao da capital mineira,
com a mesma abertura: Refuse/resist.


A resposta do público portenho parecia
com a de uma torcida organizada: um
prolongado “ô ô ô” em várias músicas.
A plateia chegou a adaptar um cântico
de estádio para saudar a banda: “Sou
Sepultura /o sentimento não pode parar/
Olê olê olê, olê olê olê olá/olê olê
olê/a cada dia te quero mais”


A devoção não é gratuita. É muito
mais fácil encontrar camisas da banda
em Buenos Aires – como na feira do
bairro San Telmo – do que no Rio de
Janeiro e até em Belo Horizonte. Mas
não havia apenas argentinos no Teatro
Flores. Vindos do estado de São Paulo,
os comerciantes Natália Godinho e
Gustavo Garcia, ambos de 41 anos, já
tinham visto mais de cem shows do grupo
e só tinham um desejo: “Que essa
turnê dure uns dez anos.” (Três dias
depois, Buenos Aires teria um dos
maiores protestos contra o governo de
Javier Milei, o ultraliberal da extrema
direita que costumava se vestir com jaqueta
preta de roqueiro e fez covers dos
Rolling Stones na juventude.)


“Estou cansado”, disse Andreas Kisser
à piauí, horas antes do show. No hall
do Hotel Metropolitano Supara, na capital
argentina, alguns fãs já se aglomeravam
do lado de fora atrás de um
autógrafo. O guitarrista estava bem
mais sereno e introspectivo do que às
vésperas do show em Belo Horizonte.
Vestia um casaco preto e usava óculos
escuros. Parecia um recurso de estilo,
mas na verdade era uma estratégia para
esconder as olheiras. “A gente saiu cinco
da manhã de Santiago, e essa turnê
é feita toda de avião. Logística difícil,
mas os shows estão sensacionais, é muito
legal quando você morre”, ele brincou.


“Quando você morre, você vira
santo, né? Os seus defeitos ficam em
segundo plano, e o mesmo está acontecendo
com o Sepultura. É um sentimento
muito bom perceber que a gente
realizou algo que valeu a pena e fez a
diferença para tantas pessoas.”
A injeção de carinho do público tem
feito diferença para Kisser, que foi assombrado
três vezes pela morte nos
últimos três anos. Em 2021, ele perdeu
o pai, Siegfried Kisser, aos 85 anos. Em
2022, sua mulher, a empresária e produtora
musical Patrícia Perissinotto
Kisser, morreu de câncer, aos 52 anos.


“Eu só tenho a agradecer aos 32 anos com
a minha esposa”, ele diz. “Criei três filhos
e fiquei com ela até o último dia
como sempre prometi. E a gente era
bem diferente um do outro. Ela gostava
de Chitãozinho e Xororó, eu era do
metal. Enfim, foram as nossas diferenças
que fizeram a gente ficar, se amar
e construir. Ela acabou a parte dela por
aqui e eu fiquei.”


Em 6 de março do ano passado, o
guitarrista recebeu a notícia da morte
de sua mãe, Anna Maria Tarkusch, de
79 anos. “Descanse em paz, Dona
Anna, muito obrigado por tudo, mãe.
Você q sempre me apoiou nas minhas
escolhas da vida, te amo eternamente.
Obrigado, obrigado!!!!!”, escreveu o
músico em sua página no Instagram.
Foi Tarkusch quem deu a Kisser, em
setembro de 1983, a primeira guitarra.


As perdas levaram Kisser a refletir
mais profundamente sobre a morte e o
luto. Ele se tornou um ativista do movimento
pela democratização dos cuidados
paliativos – que visam dar conforto a
quem sofre de uma doença que oferece
risco de vida. Também se engajou no
Movimento Mãetricia, que ele criou, em
homenagem à sua mulher, para defender
o direito individual à dignidade na
morte. “A morte é minha grande professora.
Se você não tem fim, você não tem
sentido”, diz Kisser. “A gente não precisa
temer a morte, a gente precisa aprender
com ela. Foram anos difíceis depois da
partida da minha esposa, do meu pai e
da minha mãe. Mas eu cresci demais,
porque escolhi não sentir pena de mim
mesmo, ficar quebrando camarim, bebendo
em casa, me matando aos poucos,
revoltado com o mundo e com Deus,
seja quem for, sabe?” Kisser está há mais
de quatro anos sem beber.


O último show da turnê de despedida
está previsto para meados de 2026,
mas ainda não tem nem data exata
nem local. Kisser prometeu que esse
extenso gurufim deve culminar com o
lançamento de um álbum derradeiro,
com quarenta faixas ao vivo, registradas
em quarenta cidades onde o grupo terá
tocado. Haverá também algumas faixas
inéditas e, quem sabe, a participação de
ex-integrantes. “Eu levo os sentimentos
bons de estar no palco, de agradecer ao
fã e respeitar esse tempo”, diz Kisser.
Correm rumores de que Max e Iggor
Cavalera poderão fazer uma participação
especial no último show da turnê.


O próprio Kisser fez o convite aos irmãos
e também aos antigos integrantes
do grupo, em uma entrevista que deu
para o site alemão Moshpit Passion, em
novembro passado. A piauí procurou o
vocalista, mas a empresária Gloria Cavalera,
sua mulher, disse por e-mail que
Max não tem interesse em falar sobre o
assunto. “Mas eu tenho muita esperança
de que isso vai rolar. O que eu puder
fazer do meu lado, vou fazer”, diz Silvio
Gomes, a única linha direta entre a
banda e os irmãos Cavalera.


Quando Patrícia Kisser morreu, foi
Gomes quem contou a Iggor em primeira
mão. O baterista não deixou de ligar
para Andreas Kisser e transmitir seus
pêsames. Quando morreu Vânia Cavalera,
mãe dos irmãos, Gomes entrou em
cena outra vez: avisou logo Kisser, que
fez uma ligação para Iggor, a fim de dar
suas condolências. “Já o Max é inacessível,
porque a Gloria não deixa ninguém
falar com ele”, diz Gomes. “Mas tenho
esperança de que Max e Iggor vão perceber
que essa é uma oportunidade de
ouro, até porque eles são 50% dessa história,
é uma obrigação estar presente em
algum momento. Imagina um show
com todos eles no Mineirão? Viria gente
do mundo inteiro. Só tem que desenhar
isso com os caras.” 

PIAUI