AQUECIMENTO GLOBAL O despreparo dos agricultores e economistas amplia o alcance da crise climática
Somente 6% dos
cientistas acreditam
que o limite de 1,5ºC
pactuado no Acordo
de Paris será cumprido
P O R C A R LO S D R U M M O N D
Aprojeção do Ministério da
Fazenda de que o Plano de
Transformação Ecológica,
associado a reformas es-
truturais, pode dobrar o
PIB em duas décadas, sugere uma possi-
bilidade promissora, mas não há como
antever em que medida o projeto dará
conta de um dos maiores empecilhos na
adaptação da economia à mudança cli-
mática: a transformação da mentalida-
de predominante. “A gente vive uma si-
tuação na agricultura bastante compli-
cada, estamos no meio mais conserva-
dor do Brasil. Um trabalho recente da
UFMG mostra um resultado escandalo-
so: 40% dos agricultores brasileiros não
acreditam na mudança climática. Eles
respondem por 25% do PIB e acham que
não está acontecendo nada”, destacou
Eduardo Assad, pesquisador de altera-
ções do clima durante 35 anos na
Embrapa e atual pesquisador do Obser-
vatório de Bioeconomia da FGV, duran-
te a Primeira Conferência Nacional de
Mudanças Climáticas, realizada no fim
do mês passado. “Algumas coisas estão
mudando, mas muito pouco em relação
ao tamanho do problema.”
A insuficiência do avanço para de-
ter o cataclismo alimenta um ceticismo
até entre os cientistas, aponta pesquisa
recente do jornal inglês The Guardian.
Quase 80% dos principais especialistas
climáticos do mundo preveem pelo me-
nos 2,5 graus centígrados de aquecimen-
to global, enquanto quase metade prevê
ao menos 3 graus e apenas 6% conside-
raram que o limite de 1,5 grau pactuado
no Acordo de Paris será cumprido, o que
terá consequências catastróficas para a
humanidade e para o planeta. Muitos
dos cientistas, relata o Guardian, preve-
em um futuro “semidistópico”, com fo-
me, conflitos e migrações em massa, im-
pulsionados por ondas de calor, incên-
dios florestais, inundações e tempesta-
des com uma intensidade e frequência
muito superiores às que já ocorreram.
Além da incompreensão de agricul-
tores e do ceticismo de cientistas, há o
desafio de transformar o modo conven-
cional de os economistas encararem as
suas próprias tarefas, conforme apon-
tou na Conferência a presidente do
Ipea, Luciana Serva. Em sua maioria,
eles costumam olhar para insumos e
produtos, em um modelo de produção
no qual o que interessa é o resultado,
medido por meio de indicadores ma-
croeconômicos como o Produto Inter-
no Bruto, entre outros. “O grande de-
safio, quando se sai de uma visão ma-
croeconômica tradicional, é não olhar
isso só como insumo, mas também co-
mo oportunidade, com um modelo de
adaptação que, de modo muito sério e
honesto, não encare esses potenciais de
água, floresta e biodiversidade só como
insumo a ser explorado”, sublinha. Es-
se enfoque, acrescenta Serva, permitirá
aproveitar as oportunidades “de modo
muito mais inteligente do que nos nos-
sos últimos planos de desenvolvimen-
to, quaisquer que sejam eles”.
A mudança no modo de encarar a eco-
nomia implica, em grande medida, ques-
tionar a situação de anexação da nature-
za pelo capital e sua transformação em re-
curso apropriado de forma gratuita ou ba-
rata, sem reparação ou reposição, na su-
posição tácita de que a natureza é capaz de
autorrestauração infinita, observa a cien-
tista política Nancy Fraser, professora da
New School for Social Research, de Nova
York, em seu livro Capitalismo Canibal
(Autonomia Literária).
Várias incompreensões e inúmeros
equívocos atrapalham o conhecimento
necessário ao enfrentamento da emer-
gência climática. Muitos acreditam que
a insuficiência crescente de água para
a agricultura, devido à alteração no re-
gime de chuvas, em si um resultado das
mudanças climáticas, poderá ser resol-
vida com irrigação, o que é um enorme
engano. Apenas 7 milhões de hectares,
dentre os 80 milhões de hectares de ter-
ras agricultáveis no País, são irrigáveis,
ao custo de 2 mil dólares por hectare.
O cultivo da soja, carro-chefe da eco-
nomia brasileira, utiliza 50% da terra
agricultável e depende visceralmente
do clima, alerta Assad. Haverá um pro-
blema sério de perda de produtividade
na agricultura, acrescenta.
Alega-se que a perda de produtividade
prevista não deve ser problema, porque a
soja transita pouco para chegar nos por-
tos de embarque, mas a questão é mais
complicada. Assad, Erick Fernandes, do
Banco Mundial, e Hilton Silveira Pinto,
da Universidade de Campinas, calcula-
ram que as terras cultiváveis, que deve-
riam aumentar para 17 milhões de hec-
tares em 2030, comparadas àquelas ob-
servadas em 2009, podem ser reduzidas
a apenas 10,6 milhões de hectares, co-
mo resultado das mudanças climáticas.
A Região Sul será, segundo os pesquisa-
dores, a mais afetada, e corre o risco de
perder quase 5 milhões de hectares em
2030. Uma tragédia adicional, cabe ano-
tar, àquela provocada neste ano pelas en-
chentes no Rio Grande do Sul.
“Em partes da Amazônia plantaram
bois, isto é, capim para alimentar gado,
e o legado foi o solo extremamente de-
gradado. Toda a capacidade da planta
de produzir fotossíntese ficou guarda-
da no solo”, ressalta Lucieta Guerreiro
Martorano, engenheira agrônoma e me-
teorologista da Embrapa. O resultado foi
o acúmulo de água no solo, em quantida-
des excessivas para o cultivo da soja que
substituiu os pastos. Nessas condições
surgiu o problema da “soja louca”, doença
que causa afilamento e enrugamento das
folhas e engrossamento de nervuras da
planta e reduz a produtividade. Dados da
Embrapa revelam que, em regiões mais
quentes e chuvosas, em especial nos es-
tados de Mato Grosso, Pará, Amapá e To-
cantins, a doença pode comprometer até
100% da produtividade das plantações.
Ensaios feitos no Instituto de Pesqui-
sas Ambientais de São Paulo, em câmaras
que simulam o clima das próximas déca
as, com mais gás carbônico na atmosfera
e menos água no solo, em comparação com
os teores atuais, apontam a tendência de
o café produzido no Brasil ser mais amar-
go, ácido e adstringente dentro de dez a 20
anos, divulgou a revista Pesquisa Fapesp.
Simulações de pesquisadores da Universi-
dade Federal de Itajubá, em Minas Gerais,
indicam a possibilidade de entre 35% e
75% das terras hoje ocupadas por cafezais
se tornarem impróprias, em consequên-
cia das alterações no clima, até o fim do
século. Estudos da Unicamp mostram
que as áreas dos cafezais no País podem
ficar restritas às mais altas do Sudeste.
Ameaçadora para o conjunto da eco-
nomia mundial, a crise climática será
ainda pior para a América Latina, alerta
um estudo da Comissão Econômica pa-
ra a América Latina e o Caribe, órgão da
ONU. Responsável por menos de 10% das
emissões mundiais, o continente é “ex-
tremamente vulnerável” ao impacto das
mudanças no clima, aponta a Cepal. Há
uma “dupla iniquidade”, sublinham os
autores do trabalho, pois as camadas eco-
nômicas de renda mais alta no continen-
te são responsáveis pela maior parte das
emissões, enquanto as camadas baixas
contribuem em menor medida para ge-
rar emissões de gás carbônico, mas são as
mais vulneráveis aos seus efeitos, por ha-
bitarem regiões mais expostas aos even-
tos extremos e disporem de menos recur-
sos para se adaptar às transformações.
A mesma parcela de menor renda,
prossegue o trabalho, quando recebe me-
lhor remuneração, gasta uma parte maior
do seu orçamento em combustíveis e ou-
tros bens e serviços que paulatinamente
vêm sendo privatizados, como a educaçã
e a saúde. Essa transição dos serviços pú-
blicos para os serviços privados de trans-
porte, saúde, educação, segurança e espa-
ços de convivência acentua um modelo de
desenvolvimento que tende a uma maior
segmentação social e dificulta o cumpri-
mento das metas climáticas.
Para boa parte das pessoas, frisa a pre-
sidente do Ipea, os problemas ambien-
tais de degradação da paisagem, deser-
tificação, perda de biodiversidade, con-
flitos por terra e água, má distribuição
de água para abastecimento humano, in-
tenso quadro de poluição de praias, au-
mento do risco de desastres naturais de-
vido à ocorrência de fortes chuvas e se-
cas localizadas não são novidade. Mas,
para os economistas, de forma geral, isso
não é considerado essencial, pois não tem
a centralidade que deveria ter na pauta
econômica mundial. Esse é o grande de-
safio também para as políticas públicas,
sublinha Serva, e para as gestões de re-
cursos, de diversidade, do solo, políticas
para adaptação e mitigação, assim como
para as políticas gerais, urbanas, federa-
tivas, macroeconômicas, sociais e aque-
las relativas aos setores econômicos, no-
tadamente macroeconômicos.
“Se boa parte do nosso problema de
emissões está relacionada ao uso do so-
lo e à agricultura, temos de atuar nesses
dois grandes segmentos, que dentro do
Congresso são, hoje, muito fortes. Qual-
quer iniciativa de regulação, seja em ní-
vel do Congresso, seja no âmbito das As-
sembleias Legislativas, ou das políticas
locais, que também definem o uso do so-
lo, e como é que se vai fazer sua explora-
ção econômica, passa a ser uma área em
que temos de atuar formando uma evi-
dência qualificada, inclusive em termos
políticos, para informar a discussão”, re-
sume a presidente do Ipea.
A cada dia são divulgadas novas evi-
dências da emergência climática. Na ter-
ça-feira 2, um estudo elaborado pela USP
apontou que a seca do Cerrado brasileiro
é a maior em mais de 700 anos.
CARTA CAPITAL
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