SIDARTA RIBEIRO
Desde as eleições, passei a espe-
rar o golpe a cada dia, certo de
que os derrotados no jogo de-
mocrático não escapariam a seu destino
manifesto. A emocionante posse do pre-
sidente Lula baixou um pouco a minha
guarda, mas a pulga continuava atrás da
orelha... “Você já está tranquilo?”, per-
guntei a um amigo querido na noite do
sábado, 7 de janeiro. Ele apenas sorriu.
No dia seguinte, foi aquilo que se viu...
O violento e vexatório desenrolar dos
fatos revelou uma conspiração entre po-
líticos, militares, policiais, milicianos e
pensionistas para emparedar o novo go-
verno com uma operação de Garantia da
Lei e da Ordem. Felizmente, o presidente
é mandingueiro e não mordeu a isca. Es-
capou da arapuca, voou para Araraquara
e agiu com eficácia cirúrgica quando os
terroristas mostraram as garras.
Ocorre, entretanto, que a arraia-
-miúda responsabilizada pela barbárie
não inclui nem os bem treinados coman-
dos que tocaram o terror em Brasília na-
quele domingo sem lei, nem os coman-
dantes fardados que impediram sua pri-
são naquela noite sórdida.
A recente demissão do comandante do
Exército foi um passo importante para
expurgar os golpistas, mas resta saber se
o que ocorreu foi mesmo um golpe que
deu errado, ou apenas um aviso para que
Lula não mexa nos privilégios daqueles
que amam supersalários, mas odeiam a
democracia.
Não era para estarmos discutindo na-
da disso, pois urge acabar com a fome e
revolucionar a educação, a cultura, a ci-
ência e o meio ambiente. Infelizmente, os
mortos-vivos da ditadura insistem, po-
rém, em puxar a nossa perna.
Para o passado deixar de nos assom-
brar, precisamos aproveitar esta segunda
oportunidade histórica de nos livrarmos
dos discípulos de Silvio Frota e Brilhante
Ustra. Temos que desfascistizar o Estado
para remover dele todo racismo, machis-
mo, homofobia, carniceria e gangsterismo.
Há chance de vitória contra tanta for-
ça bruta? A verdade é que não temos es-
colha. Se quisermos sobreviver, preci-
samos enfrentar o perigo com a pronti-
dão de Maria Felipa e outras marisquei-
ras da Ilha de Itaparica quando, exata-
mente 200 anos antes da intentona bol-
sonarista, entre os dias 7 e 9 de janeiro
de 1823, repeliram os inimigos da nação
a golpes de cansanção.
O que temos pela frente é um jogo de
Capoeira Angola quase sem espaços, gin-
ga miúda de muita atenção e golpes cer-
teiros de poder civil. Ou, se preferirem,
um jiu-jítsu jurídico, dedo por dedo, até
separar o joio golpista do trigo patriótico.
Argentina 1985, Brasil 2023: tudo a ver.
As Forças Armadas precisam apren-
der que não são o fiel da balança nem o
poder moderador. Os militares precisam
entender que não são competentes ou ho-
nestos por natureza, nem inimputáveis
por definição. Os 1,6 mil chefes militares
que ganham acima de 100 mil reais por
mês precisam explicar qual é o serviço
tão essencial que prestam ao povo brasi-
leiro para justificar o estouro vergonhoso
do teto salarial do funcionalismo público.
Nossas prioridades precisam ser as
professoras, creches, escolas, postos de
saúde, hospitais, institutos federais, uni-
versidades, institutos de pesquisa, uni-
dades de conservação, terras indígenas,
aldeias e quilombos. Nossos exemplos
precisam ser pessoas como o mateiro e
sementeiro Saberé, da reserva biológica
de Saltinho, em Pernambuco, a mestra
ceramista Irineia, da comunidade qui-
lombola do Muquém, e a ialorixá Mãe
Neide, da Serra da Barriga, em Alagoas,
ou os mestres de Capoeira Angola da ilha
de Itaparica Jaime de Mar Grande e Ro-
xinho, da Associação Paraguassu e do
Instituto Bantu, respectivamente.
Depois de quase colapsar, nossa bre-
cha para sonhar o futuro volta a se abrir.
Ciência, cultura e saúde estão no centro
da grande transformação pela qual o
Brasil precisa passar. A ministra da Ci-
ência, Tecnologia e Inovação, Luciana
Santos, mostrou que entende disso muito
bem ao nomear Luís Fernandes como seu
secretário-executivo, Ricardo Galvão co-
mo presidente do CNPq e Celso Pansera
como presidente da Finep.
A ministra da Cultura, Margareth Me-
nezes, também montou uma equipe po-
tente, com Márcio Tavares na secretaria-
-executiva, e pessoas como Roberta Mar-
tins, Zulu Araújo e Fabiano Piúba. Em pa-
ralelo, a ministra da Saúde, Nísia Trinda-
de, colocou seu time de alta competência,
que, além de Swedenberger Barbosa na se-
cretaria-executiva, inclui Carlos Gadelha,
Ana Estela Haddad e Weibe Tapeba – para
reverter o holocausto Yanomâmi.
Quem tramou o golpe de 8 de janei-
ro tem parte com o genocida Domingos
Jorge Velho, mas nas veias de Margareth
Menezes, Luciana Santos e Nísia Trinda-
de corre o sangue espiritual das grandes
mulheres de Palmares: Aqualtune, Aco-
tirene e Dandara. Dias melhores virão. •
CARTA CAPITAL
No comments:
Post a Comment