Em setembro de 2018, na semana em que o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro foi vítima de um atentado em Juiz de Fora (MG), a sindicalista e militante de esquerda Lívia Gomes Terra, 41, teve sua vida e rotina alteradas ao ser associada à tentativa de assassinato.
À época, começaram a circular teorias conspiratórias nas redes sociais apontando uma mulher de óculos escuro, que aparecia em uma das filmagens do episódio, como participante do crime —o que foi descartado nas investigações.
No tribunal da internet, contudo, mais de uma mulher acabou tendo sua identidade falsamente ligada à pessoa que aparecia no vídeo.
Uma delas foi Lívia. Segundo uma postagem na internet que viralizou, em que apareciam prints de seu perfil no Facebook, seria ela quem teria entregado a faca para Adélio Bispo, o autor da facada.
No print, Lívia aparecia também de óculos e tinha cabelos escuros, assim como a moça do vídeo. Seu nome na rede social era "Lívia Lula Terra". Para completar o cenário conspiratório, ela era (e ainda é) uma dirigente sindical em Juiz de Fora e filiada ao PT.
Mais de três anos após o ocorrido, em maio deste ano, o autor do post que foi identificado como a origem da informação falsa sobre Lívia,o engenheiro Renato Henrique Scheidemantel, 53, foi condenado pelo crime de calúnia. A pena dada a ele foi de 10 meses de prisão, que acabou convertida pelo juiz a prestação de serviços comunitários.
A seguir, o depoimento de Lívia à Folha:
O COMEÇO DE TUDO
No fatídico 6 de setembro [de 2018, uma quinta-feira], eu vinha durante aquela semana doente, fisicamente doente, impossibilitada de trabalhar, com atestado médico. Eu sequer sabia que o Bolsonaro viria a Juiz de Fora.
À tarde, minha mãe me telefonou para saber como é que eu tinha passado o dia. A gente conversando, ela pergunta: ‘Minha filha, é verdade que tentaram matar o Bolsonaro?’. Desligamos o telefone e liguei a televisão na mesma hora e vi na GloboNews que estava passando, de fato tinha acontecido o atentado.
Apesar de ser dirigente sindical, eu escolhi manter o meu perfil [no Facebook] um pouco mais restrito. Mas [no sábado à tarde], nas poucas publicações que eu tinha que permitiam que as pessoas se manifestassem, eu comecei a ser xingada e não entendi nada.
Quando recebi um pedido de amizade no Facebook, olhei quem era e não reconheci a pessoa. Olhei os amigos em comum e aceitei a solicitação. Ele me mandou pelo Messenger: ‘Moça, olha o que estão fazendo contigo’.
Não era essa a primeira publicação. Já era o compartilhamento dela. E aí foi assustador. Fui no perfil que dava origem a isso e fui observando que as postagens continuavam aumentando.
É estranho, porque na internet, mesmo quando você não tem condição de as pessoas te ameaçarem fisicamente, a agressividade é muito grande.
Como a gente não suporta ser xingado. Como ser xingado na internet, ser hostilizado na internet deixa a gente extremamente vulnerável. Parece às vezes que é tão forte quanto receber um tapa na cara.
Os meus amigos, neste primeiro momento, foram até o perfil da pessoa e começaram a explicar pra ele: ‘Olha, isso é uma inverdade, nós a conhecemos’.
De repente, tinha trocentas outras publicações, já com outras fotos, com outras referências. Aí as pessoas vão pesquisar na internet quem a gente é. Então já saía sobre a minha militância. Saiu textos dizendo que o Sindicato dos Bancários de Juiz de Fora era quem estava pagando os advogados do Adélio. Começaram a circular textos sobre mim com mais detalhes da minha vida.
Imagina o medo de colocar a minha família em risco também, porque chegaram ameaças dizendo: ‘Já sei onde a sua família mora’, esse tipo de coisa. Foi um momento de muito pavor.
Eu conversei com o advogado trabalhista do sindicato para ter uma primeira orientação. Ele me orienta a irmos na Polícia Federal [no dia seguinte, 9 de setembro].
O doutor Rodrigo Morais, que foi o delegado responsável pelo inquérito [facada], me atendeu no domingo mesmo. Ele esclareceu para a gente que não havia aquela linha de investigação.
Por que o que aconteceu é que eles diziam [as postagens] que eu era uma outra mulher [que aparecia no vídeo do atentado].
Parece que essa moça, ela está olhando sorridente para o celular dela e, segundo eu tomei conhecimento, ela está sorridente porque ela tinha acabado de tirar uma foto com o Bolsonaro. Essa moça tinha o cabelo da cor do meu e a pele no tom da minha e ela usava um óculos Ray-Ban.
A indicação era que eu era essa mulher. Sendo que, na época, eu estava com o cabelo curto. Só que tinha fotos no meu perfil do Facebook com cabelo comprido e o danado do óculos Ray-Ban.
Não aconteceu só comigo. O dr. Rodrigo Morais recolheu a minha declaração, que consta no inquérito oficial do atentado da facada, excluindo [das linhas de investigação] não só o meu [caso] quanto da moça eleitora do Bolsonaro e de outras moças que também tiveram o mesmo problema que eu.
Historiadores no futuro vão pegar esse inquérito. Meu nome está lá e é dolorido ser associado a um crime deste tamanho.
ADOECIMENTO
Eu sempre tive essa atuação política dentro do movimento sindical bancário, desde 2013 quando me tornei diretora. Não tem segredo nenhum.
E me orgulho muito da minha atuação. Eu sempre estive envolvida com campanhas políticas. Isso é a minha rotina, da minha vida, da minha atribuição.
Só que, entre ter uma militância política e de repente se ver envolvida naquele turbilhão, isso acabou limitando, inclusive, essa minha atuação.
Naquele primeiro momento, falei assim: ‘Eu vou passar um aperto uns dois meses, que é o máximo que dura notícia de internet’. Eu me cerquei para andar sempre acompanhada de alguém, então eu não saía sozinha e ia o mínimo possível para a rua. Fiquei com os movimentos bem restritos.
Depois de algumas semanas, e eu precisava ter alguma vida, alguns amigos meus falaram: ‘Você precisa ir no calçadão, nas nossas banquinhas que a gente faz de campanha. Precisa ir vencendo isso’. Mas, pensa, o calçadão é o local onde concentra toda a militância de direita e de esquerda.
Então passava meio de lado, meio com a cabeça baixa, com medo. E assim, sempre acompanhada de alguém. Sempre era passar tremendo na rua, morrendo de medo, porque [o pensamento] era tipo ‘eu vou ser linchada aqui’. Por que as ameaças, os comentários chegavam. Eu recebi ameaças e impropérios vindos do país inteiro.
Eu não tinha noção do estrago que aquilo faria na minha vida. Depois desse período, as coisas foram tomando uma proporção que, sair de casa para trabalhar, virou um desespero. Vinha um mundo de coisas na minha mente. ‘Você vai sair, vai acontecer alguma coisa contigo.’
Eram crises violentas de pânico todos os dias para trabalhar. Ter ânsia de vômito, taquicardia, crise de ansiedade, depressão. Havia um medo de tudo. Um medo de agressão. Uns medos irracionais.
Eu só consegui começar a militar novamente a partir do ano passado. Comecei a ir voltando. Mas eu ainda não tenho a mesma disposição e condições que eu tinha antes.
O PROCESSO
Eu tive essa possibilidade de ingressar com essa ação, com essa queixa-crime. E esse acompanhamento é custoso. Mas foi algo que eu me dispus e que muitos companheiros também se dispuseram a apoiar. Eu fui extremamente acolhida.
O mais difícil acho que foi a gente realmente conseguir encontrar um endereço [do autor da postagem], para que a Justiça conseguisse notificá-lo.
A única vez que me dirigi para o lado dele foi no dia que o juiz foi me ouvir. A promotora me perguntou se eu o conhecia. Eu disse que não. Mas que o reconhecia das fotos do perfil.
O que leva um estranho, alguém que você nunca viu na vida, a destruir sua vida assim? Acho que é a certeza mesmo da impunidade, de achar que a internet é terra sem lei.
Ele nega o crime o tempo todo. [No depoimento] ele chega a cogitar que eu pudesse ter feito essa montagem, ter colocado e exposto essa montagem e que a vítima seria ele. É quase que revoltante. Acreditar que eu pudesse fazer uma montagem dessa, fazer isso comigo, me colocar em risco.
Essa [postagem] que ele fez no mesmo dia parece que ele apagou. Por que a pressão foi tanta dos meus amigos que parece que ele apagou a postagem. Mas as publicações que tiveram depois foram consequência daquela.
Agora alguns amigos falam assim: ‘Você está expondo a sua imagem com essa sentença, você não se sente apavorada’?
Só que agora é uma necessidade mesmo. Por que você tem a exposição da sua imagem de uma forma negativa, de uma forma que nunca ninguém quer ter sua imagem associada.
E, desta vez, não. É a necessidade de dizer: ‘Eu sou o exemplo das consequências que pode ter na vida de uma pessoa, um outro sentar e falar qualquer besteira na internet.
Abrir a boca e dizer o tanto que eu sofri, eu acho que é um ato de coragem mesmo, que é para poder abrir os olhos de outras pessoas.
Eu consegui uma sentença, que ela sirva de lição para muitas pessoas para que não saiam fazendo isso. Essa sentença não é a sentença de condenação de alguém. Para mim, eu tenho a sensação que essa sentença é a minha sentença de inocência. Eu fui vítima de calúnia.
CONDENADO POR FAKE NEWS FALA EM ARMAÇÃO CONTRA ELE
Renato Henrique Scheidemantel foi procurado pela Folha para enviar uma manifestação sobre o episódio. "É uma armação enorme, ativismo midiático, criaram um factoide a meu respeito. Vou recorrer e processar todo mundo que tem a ver com isso", afirma.
Procurada, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que foi responsável pela defesa de Scheidemantel, respondeu que não iria se manifestar sobre o tema.
Entre outros pontos, Scheidemantel critica a ausência de link da postagem no processo e sustenta que uma suposta postagem em seu perfil não poderia atingir a quantidade de compartilhamentos que aparece em print que consta nos autos.
"É uma impossibilidade material, no FB [Facebook], um perfil com 1 ou 2 mil seguidores gerar 500 compartilhamentos em duas horas."
F0LHA