May 30, 2022

'Fiquei vulnerável, tinha medo de tudo', diz alvo de fake news sobre facada em Bolsonaro

 

Mulher branca de cabelos pretos compridos, usa óculos de grau, colar comprido e bom vermelho. É possível ver apenas seu rosto e ombros. Olha para uma de suas laterais e sorri levemente.

SÃO PAULO

Em setembro de 2018, na semana em que o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro foi vítima de um atentado em Juiz de Fora (MG), a sindicalista e militante de esquerda Lívia Gomes Terra, 41, teve sua vida e rotina alteradas ao ser associada à tentativa de assassinato.

À época, começaram a circular teorias conspiratórias nas redes sociais apontando uma mulher de óculos escuro, que aparecia em uma das filmagens do episódio, como participante do crime —o que foi descartado nas investigações.

No tribunal da internet, contudo, mais de uma mulher acabou tendo sua identidade falsamente ligada à pessoa que aparecia no vídeo.

Uma delas foi Lívia. Segundo uma postagem na internet que viralizou, em que apareciam prints de seu perfil no Facebook, seria ela quem teria entregado a faca para Adélio Bispo, o autor da facada.

No print, Lívia aparecia também de óculos e tinha cabelos escuros, assim como a moça do vídeo. Seu nome na rede social era "Lívia Lula Terra". Para completar o cenário conspiratório, ela era (e ainda é) uma dirigente sindical em Juiz de Fora e filiada ao PT.

Mais de três anos após o ocorrido, em maio deste ano, o autor do post que foi identificado como a origem da informação falsa sobre Lívia,o  engenheiro Renato Henrique Scheidemantel, 53, foi condenado pelo crime de calúnia. A pena dada a ele foi de 10 meses de prisão, que acabou convertida pelo juiz a prestação de serviços comunitários.

A seguir, o depoimento de Lívia à Folha:

O COMEÇO DE TUDO

No fatídico 6 de setembro [de 2018, uma quinta-feira], eu vinha durante aquela semana doente, fisicamente doente, impossibilitada de trabalhar, com atestado médico. Eu sequer sabia que o Bolsonaro viria a Juiz de Fora.

À tarde, minha mãe me telefonou para saber como é que eu tinha passado o dia. A gente conversando, ela pergunta: ‘Minha filha, é verdade que tentaram matar o Bolsonaro?’. Desligamos o telefone e liguei a televisão na mesma hora e vi na GloboNews que estava passando, de fato tinha acontecido o atentado.

Apesar de ser dirigente sindical, eu escolhi manter o meu perfil [no Facebook] um pouco mais restrito. Mas [no sábado à tarde], nas poucas publicações que eu tinha que permitiam que as pessoas se manifestassem, eu comecei a ser xingada e não entendi nada.

Quando recebi um pedido de amizade no Facebook, olhei quem era e não reconheci a pessoa. Olhei os amigos em comum e aceitei a solicitação. Ele me mandou pelo Messenger: ‘Moça, olha o que estão fazendo contigo’.

Não era essa a primeira publicação. Já era o compartilhamento dela. E aí foi assustador. Fui no perfil que dava origem a isso e fui observando que as postagens continuavam aumentando.

É estranho, porque na internet, mesmo quando você não tem condição de as pessoas te ameaçarem fisicamente, a agressividade é muito grande.

Como a gente não suporta ser xingado. Como ser xingado na internet, ser hostilizado na internet deixa a gente extremamente vulnerável. Parece às vezes que é tão forte quanto receber um tapa na cara.

Os meus amigos, neste primeiro momento, foram até o perfil da pessoa e começaram a explicar pra ele: ‘Olha, isso é uma inverdade, nós a conhecemos’.

De repente, tinha trocentas outras publicações, já com outras fotos, com outras referências. Aí as pessoas vão pesquisar na internet quem a gente é. Então já saía sobre a minha militância. Saiu textos dizendo que o Sindicato dos Bancários de Juiz de Fora era quem estava pagando os advogados do Adélio. Começaram a circular textos sobre mim com mais detalhes da minha vida.

Imagina o medo de colocar a minha família em risco também, porque chegaram ameaças dizendo: ‘Já sei onde a sua família mora’, esse tipo de coisa. Foi um momento de muito pavor.

Eu conversei com o advogado trabalhista do sindicato para ter uma primeira orientação. Ele me orienta a irmos na Polícia Federal [no dia seguinte, 9 de setembro].

O doutor Rodrigo Morais, que foi o delegado responsável pelo inquérito [facada], me atendeu no domingo mesmo. Ele esclareceu para a gente que não havia aquela linha de investigação.

Por que o que aconteceu é que eles diziam [as postagens] que eu era uma outra mulher [que aparecia no vídeo do atentado].

Parece que essa moça, ela está olhando sorridente para o celular dela e, segundo eu tomei conhecimento, ela está sorridente porque ela tinha acabado de tirar uma foto com o Bolsonaro. Essa moça tinha o cabelo da cor do meu e a pele no tom da minha e ela usava um óculos Ray-Ban.

A indicação era que eu era essa mulher. Sendo que, na época, eu estava com o cabelo curto. Só que tinha fotos no meu perfil do Facebook com cabelo comprido e o danado do óculos Ray-Ban.

Não aconteceu só comigo. O dr. Rodrigo Morais recolheu a minha declaração, que consta no inquérito oficial do atentado da facada, excluindo [das linhas de investigação] não só o meu [caso] quanto da moça eleitora do Bolsonaro e de outras moças que também tiveram o mesmo problema que eu.

Historiadores no futuro vão pegar esse inquérito. Meu nome está lá e é dolorido ser associado a um crime deste tamanho.

​ADOECIMENTO

Eu sempre tive essa atuação política dentro do movimento sindical bancário, desde 2013 quando me tornei diretora. Não tem segredo nenhum.

E me orgulho muito da minha atuação. Eu sempre estive envolvida com campanhas políticas. Isso é a minha rotina, da minha vida, da minha atribuição.

Só que, entre ter uma militância política e de repente se ver envolvida naquele turbilhão, isso acabou limitando, inclusive, essa minha atuação.

Naquele primeiro momento, falei assim: ‘Eu vou passar um aperto uns dois meses, que é o máximo que dura notícia de internet’. Eu me cerquei para andar sempre acompanhada de alguém, então eu não saía sozinha e ia o mínimo possível para a rua. Fiquei com os movimentos bem restritos.

Rosto visto da lateral de mulher branca de cabelos pretos. À sua frente está uma janela com grade e com toldo vermelho na parte de foto. No interior a luz está apagada, o que dá um tom avermelhado à pouca iluminação que entra no ambiente
Lívia Gomes Terra, 41, no sindicato dos bancários em Juiz de Fora - João Victor Medeiros/Folhapress

Depois de algumas semanas, e eu precisava ter alguma vida, alguns amigos meus falaram: ‘Você precisa ir no calçadão, nas nossas banquinhas que a gente faz de campanha. Precisa ir vencendo isso’. Mas, pensa, o calçadão é o local onde concentra toda a militância de direita e de esquerda.

Então passava meio de lado, meio com a cabeça baixa, com medo. E assim, sempre acompanhada de alguém. Sempre era passar tremendo na rua, morrendo de medo, porque [o pensamento] era tipo ‘eu vou ser linchada aqui’. Por que as ameaças, os comentários chegavam. Eu recebi ameaças e impropérios vindos do país inteiro.

Eu não tinha noção do estrago que aquilo faria na minha vida. Depois desse período, as coisas foram tomando uma proporção que, sair de casa para trabalhar, virou um desespero. Vinha um mundo de coisas na minha mente. ‘Você vai sair, vai acontecer alguma coisa contigo.’

Eram crises violentas de pânico todos os dias para trabalhar. Ter ânsia de vômito, taquicardia, crise de ansiedade, depressão. Havia um medo de tudo. Um medo de agressão. Uns medos irracionais.

Eu só consegui começar a militar novamente a partir do ano passado. Comecei a ir voltando. Mas eu ainda não tenho a mesma disposição e condições que eu tinha antes.

O PROCESSO

Eu tive essa possibilidade de ingressar com essa ação, com essa queixa-crime. E esse acompanhamento é custoso. Mas foi algo que eu me dispus e que muitos companheiros também se dispuseram a apoiar. Eu fui extremamente acolhida.

O mais difícil acho que foi a gente realmente conseguir encontrar um endereço [do autor da postagem], para que a Justiça conseguisse notificá-lo.

A única vez que me dirigi para o lado dele foi no dia que o juiz foi me ouvir. A promotora me perguntou se eu o conhecia. Eu disse que não. Mas que o reconhecia das fotos do perfil.

O que leva um estranho, alguém que você nunca viu na vida, a destruir sua vida assim? Acho que é a certeza mesmo da impunidade, de achar que a internet é terra sem lei.

Ele nega o crime o tempo todo. [No depoimento] ele chega a cogitar que eu pudesse ter feito essa montagem, ter colocado e exposto essa montagem e que a vítima seria ele. É quase que revoltante. Acreditar que eu pudesse fazer uma montagem dessa, fazer isso comigo, me colocar em risco.

Essa [postagem] que ele fez no mesmo dia parece que ele apagou. Por que a pressão foi tanta dos meus amigos que parece que ele apagou a postagem. Mas as publicações que tiveram depois foram consequência daquela.

Agora alguns amigos falam assim: ‘Você está expondo a sua imagem com essa sentença, você não se sente apavorada’?

Só que agora é uma necessidade mesmo. Por que você tem a exposição da sua imagem de uma forma negativa, de uma forma que nunca ninguém quer ter sua imagem associada.

​E, desta vez, não. É a necessidade de dizer: ‘Eu sou o exemplo das consequências que pode ter na vida de uma pessoa, um outro sentar e falar qualquer besteira na internet.

Abrir a boca e dizer o tanto que eu sofri, eu acho que é um ato de coragem mesmo, que é para poder abrir os olhos de outras pessoas.

Eu consegui uma sentença, que ela sirva de lição para muitas pessoas para que não saiam fazendo isso. Essa sentença não é a sentença de condenação de alguém. Para mim, eu tenho a sensação que essa sentença é a minha sentença de inocência. Eu fui vítima de calúnia.

CONDENADO POR FAKE NEWS FALA EM ARMAÇÃO CONTRA ELE

Renato Henrique Scheidemantel foi procurado pela Folha para enviar uma manifestação sobre o episódio. "É uma armação enorme, ativismo midiático, criaram um factoide a meu respeito. Vou recorrer e processar todo mundo que tem a ver com isso", afirma.

Procurada, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que foi responsável pela defesa de Scheidemantel, respondeu que não iria se manifestar sobre o tema.

Entre outros pontos, Scheidemantel critica a ausência de link da postagem no processo e sustenta que uma suposta postagem em seu perfil não poderia atingir a quantidade de compartilhamentos que aparece em print que consta nos autos.

"É uma impossibilidade material, no FB [Facebook], um perfil com 1 ou 2 mil seguidores gerar 500 compartilhamentos em duas horas."


F0LHA

'Smoke Gets In Your Eyes' - Eartha Kitt



Now, laughing friends deride
Tears, I cannot hide
Oh-oh-oh-oh
So, I smile and say
"When a lovely flame dies
Smoke gets in your eyes"

May 29, 2022

O BOM SAMARITANO

Há 37 anos, o sacerdote mantém a mesma rotina. “Hoje eu encontrei Jesus“, costuma escrever, ao publicar a foto de um irmão na rua - Imagem: Renato Luiz Ferreira

Há 37 anos, o sacerdote mantém a mesma rotina. “Hoje eu encontrei Jesus“, costuma escrever, ao publicar a foto de um irmão na rua - Imagem: Renato Luiz Ferreira 

 

 EM MEIO A UMA CRISE HUMANITÁRIA
SEM PRECEDENTES, O PADRE
JÚLIO LANCELLOTTI SIMBOLIZA
A ESPERANÇA EM DIAS MELHORES


p or RODR I GO MA RT I N S


“Onde houver ódio, que eu leve o amor,
Onde houver trevas, que eu leve a luz”
(Oração de São Francisco)


"É para partilhar co-
mo irmão, não
igual patrão. Não
quero ver nin-
guém pegar mais
do que precisa e
deixar o outro sem
agasalho no frio”, orienta o padre Júlio
Lancellotti, momentos antes de distri-
buir as roupas doadas à Paróquia de São
Miguel Arcanjo, na Mooca, Zona Leste
de São Paulo, às duas dezenas de sem-te-
to que haviam acabado de participar de
uma roda de conversa com ele e um céle-
bre visitante, o rapper Emicida.


Na manhã da segunda-feira 23, as
temperaturas na capital não estavam
tão baixas quanto na semana anterior,
quando o sacerdote de 73 anos salvou
dois homens da hipotermia, mas presen-
ciou a morte de um terceiro na fila do ca-
fé da manhã no Núcleo de Convivência
São Martinho. Na madrugada da quar-
ta-feira 18, durante uma ronda na re-
gião da Luz, o religioso não precisou ca-
minhar mais que 3 quilômetros para en-
contrar um homem com o corpo enrije-
cido e os lábios arroxeados na calçada da
Rua Prates. Chamou uma ambulância e
prestou os primeiros socorros. A inter-
venção não alterou a rotina na manhã se-
guinte. Como faz todos os dias, acordou
antes de o sol se firmar, celebrou a mis-
sa das 7 e empurrou seu carrinho de su-
permercado, repleto de pães e donativos,
pelas ruas do bairro até o centro comu-
nitário, a poucos quarteirões da igreja.
Surpreendido com a notícia da morte de
Isaías de Faria, de 66 anos, que sofreu uma
convulsão na fila de espera pela primeira
refeição do dia, o padre mal teve tempo de
digerir o luto. Precisou socorrer outro ir-
mão das ruas com hipotermia. “Cansa de
falar, cansa. Porque, se aqui está assim

enfrentamos uma grande crise, agravada
pela pandemia de Covid-19. Aumentou
muito o desemprego, a inadimplência das
famílias, os despejos. O sistema neolibe-
ral tem um modelo claro, de redução do
papel do Estado. É um modelo excluden-
te, de manutenção da miséria.”


Não bastasse, o prefeito Ricardo Nunes,
você imagina por aí, como tudo está”, de-
sabafou, com voz trêmula e olhos mareja-
dos, pouco depois de aquecê-lo com uma
manta térmica. Todos os anos, a tragédia é
reencenada, só mudam os nomes dos ato-
res, mas a cidade vive uma crise humani-
tária sem precedentes, avalia o padre. Em
apenas dois anos, a população em situação
de rua cresceu 31% em São Paulo, segun-
do o último censo da prefeitura. Quase 32
mil cidadãos dormem em abrigos manti-
dos pelo Poder Público ou debaixo das
marquises e viadutos.


O número de famílias sem-teto prati-
camente dobrou. Houve, ainda, alta de
230% do número de barracas de camping
e outras modalidades de moradia impro-
visada instaladas nas vias públicas. Os
indicadores são escandalosos, mas a rea-
lidade é ainda pior, garante Lancellotti.


“Os dados estão subnotificados. Os pes-
quisadores realizaram as sondagens em
horários inadequados, quando a popula-
ção de rua está dispersa. E não levaram
em consideração as pessoas entocadas,
em lugares inacessíveis”, diz. “Há anos,
do MDB, e o governador Rodrigo Garcia,
do PSDB, retomaram a fracassada estra-
tégia de usar as polícias para dispersar os
dependentes químicos da Cracolândia,
impondo uma macabra procissão pelas
ruas do Centro, com hordas de usuários
envoltos em cobertores à procura de droga
e a correr dos fardados. Sob o pretexto de
combater o tráfico, a Operação Caronte –
nome emprestado do barqueiro de Hades,
que, segundo a mitologia grega, carrega-
va a alma dos mortos –, resultou em cen-
tenas de feridos desde o início do ano. Em
meio aos confrontos, Raimundo Nonato
Fonseca Júnior, de 32 anos, acabou

abatido, na quinta-feira 12, com um tiro
no peito disparado pela Polícia Civil.
Exatamente uma semana após o homi-
cídio, na quinta-feira 19, a Polícia Civil e
a Guarda Civil Metropolitana voltaram
a realizar uma operação de “combate ao
narcotráfico”, novamente marcada por
confrontos com os usuários. A prefeitu-
ra fez questão de registrar o resultado da
ação em seu site oficial. Naquele dia, hou-
ve a prisão em flagrante de oito trafican-
tes e a apreensão de dois adolescentes por
associação ao tráfico. Da mesma forma, fo-
ram apreendidos “5.499,50 reais em espé-
cie”, além de “porções de cocaína, crack,
lança-perfume e maconha”. Certamente,
um duro golpe para o PCC, que, segundo o
Ministério Público, possui 112 mil filiados
e movimenta bilhões de reais anualmente.
Com a proximidade do inverno, a pre-
feitura criou 2 mil vagas emergenciais em
abrigos, além de espalhar dez tendas pe-
la cidade. Mesmo com as camas extras,
a conta não fecha. Hoje, há cerca de 17
mil vagas nos centros de acolhida, pou-
co mais da metade da população de rua.


Ainda que o município garantisse aco-
modação para 100% dos sem-teto, é pos-
sível que a maior parte deles rejeitasse a
oferta. “Os albergues são uma resposta
caduca”, avalia o padre. “Desde os anos
1940, quando se construíram os primei-
ros abrigos de São Paulo, até hoje, a única
diferença é que os atuais centros de aco-
lhida têm tomadas para carregar os ce-
lulares. Mas a lógica de tutela e a preca-
riedade das instalações são idênticas.”


“A CRACOLÂNDIA
TAMBÉM É FRUTO
DA ESPECULAÇÃO
IMOBILIÁRIA”, DIZ

 Um relatório elabora-
do ao longo de 2021 pe-
la Comissão de Direitos
Humanos e Cidadania da
Câmara Municipal con-
firma o que o religioso tem denunciado há
tempos. Na fiscalização, muitos albergues
foram flagrados em condições insalubres,
com colchões infestados por percevejos,
refeições servidas em meio a fezes de pom-
bo, pias e vasos sanitários entupidos. Além
das péssimas condições, muitos relutam
em aceitar as rígidas regras de convivência

e os inflexíveis horários de entrada e saí-
da, que fazem com que diversas unidades
mais se assemelhem a presídios de regime
semiaberto. Outro impasse é a reduzida
oferta de vagas para famílias e mulheres,
concentradas nas áreas centrais da cidade.


“Se você aborda uma família da
Brasilândia, na Zona Norte, e indica um
abrigo coletivo no Centro, a mais de 15
quilômetros de distância, ela não vai.
Não conhece o território, não tem vín-
culos sociais, não sabe como se proteger
da violência”, comenta o assistente social
Marivaldo da Silva Santos, coordenador de
uma das equipes do Consultório na Rua,
com a experiência de quem dormiu sob as
marquises paulistanas por seis anos. Em
meados dos anos 1990, Santos migrou pa-
ra São Paulo e pretendia, com seu traba-
lho, amparar familiares deixados em Feira
de Santana, na Bahia. Não enfrentou difi-
culdade para encontrar emprego, primei-
ro na construção civil, depois em serviços
de vigilância. Ao trabalhar como seguran-
ça em uma casa noturna, teve o seu pri-
meiro contato com a cocaína. O uso abusi-
vo da droga acabou por desestruturar sua
vida e empurrá-lo para as ruas. “Perdi o
emprego e tinha vergonha de voltar para
a casa da minha família.”

Em agosto de 2004, o assistente social
escapou por pouco de uma chacina na
Praça da Sé. No dia do ataque, separou-se
do grupo de amigos para pegar comida
no Vale do Anhangabaú e decidiu dormir
por lá. “Quando cheguei na Sé pela manhã,
soube das mortes. Naquele momento, vi
que era hora de mudar de vida.” Castigado
pelas ruas, submeteu-se às regras de um
abrigo, mas enfrentou enorme dificuldade
de recolocação profissional. A oportuni-
dade surgiu quando o Centro Social Nossa
Senhora do Bom Parto abriu um proces-
so seletivo para contratar agentes de saú-
de no programa “A Gente na Rua”, desen-
volvido em parceria com a prefeitura. Uma
das estratégias adotadas pelo projeto foi
a reserva de vagas para quem morava nas
ruas. Dessa forma, além de promover a in-
clusão no mercado de trabalho, seria pos-
sível contar com profissionais que têm a
mesma vivência do público-alvo, modelo
depois replicado nos Consultórios na Rua.
Eram cerca de 300 candidatos para 11 va-
gas. Santos conseguiu uma delas.


O assistente social conheceu o padre
Júlio Lancellotti no lançamento do pro-
grama. “Na ocasião, um representante da
prefeitura discursou: ‘Se esses 11 agen-
tes resolverem a vida deles, já está ótimo’.


Então chegou a vez do padre Júlio falar.
‘Eles não vão resolver só a vida deles, vão
transformar a realidade de São Paulo’.
Aquelas palavras me pegaram tão forte
que, se eu ainda tivesse alguma intenção
de voltar às drogas, ela se dissipou. Ele le-
vantou a autoestima de um preto, nor-
destino e gay que estava pesando 68 qui-
los, só tinha cabeça e pescoço, e enxer-
gou um futuro”, relembra. “Hoje, quan-
do o padre Júlio telefona e me pede al-
go, não tenho como dizer não para ele,
não importa a hora”, acrescenta Santos,
que depois se graduou em Serviço Social
e fez especialização em Saúde Mental e
Dependência Química na Universidade
Federal da Bahia.

 

 Agora, as autoridades mu-
nicipais parecem conven-
cidas de que a solução pa-
ra o problema das drogas
é intensificar a repressão.
A Operação Caronte é nitidamente inspi-
rada na fracassada Operação Sufoco, le-
vada a cabo por Gilberto Kassab em 2012.
Para forçar os usuários da Cracolândia a
se internarem em comunidades terapêuti-
cas, era necessário impor “dor e sofrimen-
to”, dizia o então prefeito, seduzido com
a ideia de “revitalizar” o bairro da Luz. À
época, a Cracolândia estava circunscri-
ta ao quarteirão compreendido entre a
Rua Helvétia e as alamedas Dino Bueno
e Cleveland. Somente a primeira parte
da promessa foi cumprida. A Defensoria
Pública colecionou denúncias de abusos
cometidos pelas forças policiais, enquan-
to as violentas operações só espalharam o
“fluxo” pela região central da cidade.


Ao assumir a prefeitura dois anos de-
pois, o petista Fernando Haddad lan-
çou o programa De Braços Abertos, com
uma perspectiva radicalmente distinta.
Inspirada em exitosas experiências inter-
nacionais do Housing First, política públi-
ca que prevê a oferta de moradia em pri-
meiro lugar, sem condicionantes, a inicia-
tiva alocou os dependentes químicos em
quartos de hotéis e pensões no Centro,
além de ofertar vagas de trabalho em ser-
viços de zeladoria, como varrição de ruas.
Os inscritos não eram forçados a aderir
a um tratamento, mas estudos divulga-
dos pela Secretaria Municipal de Saúde

indicam que, logo no primeiro ano, hou-
ve redução de 80% do fluxo de usuários
na região da Cracolândia, acompanhado
de queda de 33% nos furtos.


“Recordo-me do depoimento de um
usuário que chegou a consumir 30 pe-
dras de crack por dia e havia reduzido o
consumo para uma única. Ele fazia pla-
nos de concluir o Ensino Médio e pres-
tar o vestibular”, afirmou o vereador
Eduardo Suplicy, secretário de Direitos
Humanos de Haddad, em um recente de-
bate com ativistas e moradores do bairro
da Luz. “Então, o tucano João Doria as-
sumiu a prefeitura, retomou a política de
dispersão e ordenou a demolição das an-
tigas pensões. Foi assim que ele anunciou
o ‘fim da Cracolândia’, embora o fluxo só
tenha mudado de lugar.”


Em recente artigo publicado
na Folha de S.Paulo, Alexis
Vargas, secretário-executi-
vo de Projetos Estratégicos
da prefeitura, afirma que
diversas cidades, como Frankfurt, Viena
e Nova York, usaram técnicas de disper-
são. “O primeiro passo para dar efetivi-
dade ao tratamento dos usuários é redu-
zir o tráfico e dispersar a concentração.”
O governo do estado, por sua vez, garante
que a procura por tratamento na região da
Cracolândia aumentou 23% após as pri-
meiras intervenções policiais.


A argumentação não convence
Lancellotti. “São Paulo é igualzinho a
Frankfurt, né? O secretário Alexis é o so-
fista-mor da prefeitura. Para cada barba-
ridade feita, ele apresenta dez razões fi-
losóficas, pedagógicas e sociológicas pa-
ra justificar”, ironiza o padre. “Na raiz do
problema está a especulação imobiliária.
A região da Luz abriga o maior entronca-
mento metroviário e têm acesso privile-
giado às principais rodovias do estado,
está ao lado da Marginal Tietê. Em um
certo momento, a Cracolândia foi con-
veniente para reduzir o preço dos imó-
veis. Aí vieram as incorporadoras, com-
praram tudo e iniciou-se o processo de
expulsão dos usuários.”


Na tentativa de afastar os dependen-
tes químicos da Luz, a prefeitura chegou
a transferir para outros bairros os ser-
viços que ofereciam banhos, refeições e
pernoites aos usuários da Cracolândia,
afirma o advogado Rildo Marques
de Oliveira, da Comissão de Direitos
Humanos da OAB paulista. “Em vez de
diminuir, o fluxo só aumentou”, observa.
“A prefeitura insiste em despachar os de-
pendentes químicos para comunidades
terapêuticas, mas, segundo especialistas,
a taxa de sucesso dos tratamentos gira
em torno de 10%. Há casos de dependen-
tes que passaram por oito internações.”
Oliveira lamenta, ainda, a crimina-
lização dos ativistas que defendem os
direitos dos dependentes químicos. “O
próprio padre Júlio é alvo recorrente de

ataques. O ex-deputado Arthur do Val, o
Mamãe Falei do MBL, chegou a chamá-
-lo de ‘cafetão da miséria’, instigando ata-
ques contra o religioso”, recorda. “Há ca-
sos ainda mais graves, como o do psiquia-
tra-palhaço Flávio Falcone, que chegou a
responder um inquérito criminal por ter
distribuído cachimbos no fluxo, como se
estivesse associado ao tráfico.”


A distribuição de cachimbos e seringas
a dependentes químicos é uma clássica
política de redução de danos, que visa pre-
servar os usuários do contágio de doen-
ças pelo compartilhamento de utensílios,
empregada no consumo de drogas. Ainda
assim, após uma “denúncia” apresentada
pelo vereador Rubens Nunes, outra cria
do MBL, o Departamento de Repressão
ao Narcotráfico da Polícia Civil abriu uma
representação criminal contra Falcone e
o coletivo Craco Resiste por “apologia do
crime”. A pedido do Ministério Público, o
inquérito foi arquivado pela Justiça. “Foi
mais uma tentativa de intimidação”, diz
o pesquisador da Unifesp, que estuda o
uso de canabidiol, substância extraída
da maconha, para atenuar os efeitos da
abstinência de crack. “À exceção do bre-
ve período do Braços Abertos, o Poder
Público sempre focou na repressão, e is-
so nunca deu resultado. Agora mesmo, a
Operação Caronte só transferiu o fluxo
de um bairro para outro.”


Ardoroso defensor do Housing First,
ele conseguiu convencer uma empresa a
custear o aluguel de um apartamento e
dois quartos de pensão para oito usuá-
rios de crack que querem abandonar o ví-
cio. Paralelamente, desenvolve ativida-
des culturais para gerar uma alternati-
va de renda aos dependentes. Um dos be-
neficiados é Vanilson Santos Conceição,
o Jamaica, que está em situação de rua
há 12 anos e frequenta o fluxo há nove.
Ou melhor, frequentava. “Cheguei a fu-
mar 20 pedras por dia, estou limpo há
três meses”, celebra. Ele estava inscrito
no Braços Abertos, mas foi desalojado da
pensão em que vivia com a interrupção
do programa na gestão Doria. 

As operações policiais empurraram o fluxo
de usuários para outros bairros. Jamaica só
conseguiu ficar sem o crack após ser acolhido
em um apartamento com outros colegas

dependentes químicos e suas famílias.”
À falta de articulação entre as
O PADRE DEFENDE
A EQUIPARAÇÃO
DA APAROFOBIA,
O ÓDIO AOS
POBRES, AO CRIME
DE RACISMO
“Um dos maiores problemas é a falta
de continuidade das políticas públicas.
Muda o governo e tudo vira de cabeça para
baixo”, lamenta Lucélia da Silva Ferreira,
coordenadora do curso de Serviço Social
da Universidade Metodista de São Paulo.
“Enquanto o Estado optar por ações hi-
gienistas, fragmentadas, e transferir pa-
ra o terceiro setor a responsabilidade pelo
enfrentamento desse sério problema, não
teremos resultados exitosos. Há a neces-
sidade de uma atuação intersecretarial,
por meio de um plano de ação que envol-
va gente capacitada e servidores públicos
que possam efetivamente acompanhar os

dependentes químicos e suas familias".

À falta de articulação entre as 

secretarias Lancellotti acrescenta a
crítica ao amadorismo da atual gestão.
“Agora, a Soninha (secretária de Direitos
Humanos) quer criar um camping. Desde
quando as pessoas em situação de rua pre-
cisam de auxílio da prefeitura para acam-
par? Elas já têm barracas, elas estão espa-
lhadas pela cidade inteira. O que se pre-
tende, na verdade, é criar um gueto, segre-
gar. É uma proposta aporofóbica.” 


O conceito de aparofo-
bia não sai da mente do
padre Júlio. Significa pre-
conceito, aversão ou ódio
aos pobres. Atualmente,
Lancellotti mobiliza-se pela aprovação
de projetos de lei que vetam a chamada
“arquitetura hostil”, como a instalação
de pedras e lanças para impedir que os
sem-teto possam dormir na calçada. Um
deles, de autoria de Fábio Contarato, do
PT, foi aprovado no Senado e tramita na
Câmara. Na Assembleia Legislativa de
São Paulo, outro projeto com o mesmo
teor está pronto para ser votado em ple-
nário. O objetivo de longo prazo é, no en-
tanto, outro: “Devemos lutar para equi-
parar a aparofobia ao crime de racismo”.
Em campanha, o religioso tem visi-
tado estabelecimentos comerciais com
pessoas em situação de rua, registrando
Marivaldo Santos recebeu o voto de confiança
de Lancellotti, e desde então luta ao seu lado
em vídeo a reação dos demais clientes.


“Um dia, fomos para a Rua Oscar Freire
e entramos em uma sorveteria. Os clien-
tes saíram da loja e foram para as mesi-
nhas do lado de fora. Em um restauran-
te no Tatuapé, uma cliente da mesa ao la-
do foi embora, deixou para trás o prato
cheio de comida. Na igreja mesmo já fui
chamado de ‘o padre dos maloqueiros’”,
relata. Com uma saúde de ferro, “embo-
ra ligeiramente enferrujado”, como gos-
ta de brincar, ele tem pedido para artis-
tas se engajarem na causa. “Você podia
fazer o rapSe Liga noQue É Aparofobia”,
sugere a Emicida. “É que estou ficando
velho para isso.” •

CARTA CAPITAL






May 27, 2022

Outro 7 x 1

 Entregaram o ouro. Sachsida e Guedes ganharam um prêmio de consolação. Cedraz e os demais colegas do TCU ignoraram os alertas de Vital do Rêgo - Imagem: Leopoldo Silva/Ag.Senado, Arquivo TCU e Edu Andrade/ME


O TCU libera a venda da Eletrobras. Voto solitário contra o negócio, Vital do Rêgo aponta os dolos da operação


Por André Barrocal

Adolfo Sachsida, novo ministro de Minas e Energia, foi à casa oficial do presidente da Câmara, Arthur Lira, na manhã da quarta-feira 18. O ambiente era hostil. Deputados do Nordeste cobraram a revogação da paulada na conta de luz autorizada em abril pela Agência Nacional de Energia Elétrica. Na Bahia, em Pernambuco e no Rio Grande do Norte, a alta foi de cerca de 20%. No Ceará, de 24%. Para pressioná-lo, foi dito ao ministro que está pronta para ser votada em plenário a anulação do reajuste no Ceará. Quer dizer: ou ­Sachsida arranja uma saída, e logo, ou o decreto passa, pois a eleição está na esquina. Um ultimato que põe à prova as convicções ultraliberais do economista, ex-integrante do time de Paulo Guedes. Neoliberal, como se sabe, odeia ação governamental.


Na tarde da mesma quarta-feira 18, as ideias de Sachsida triunfaram, porém, no Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Congresso. Foi no último julgamento antes de Jair Bolsonaro poder realizar um sonho acalentado por Guedes há 30 anos, desde a era Collor: entregar ao setor privado a Eletrobras, maior companhia elétrica da América Latina, cujos lucros alcançaram 5,7 bilhões de reais em 2021 e 2,7 bilhões no primeiro trimestre de 2022. Por 7 votos a 1, o TCU deu sinal verde aos planos do governo para um leilão de ações da estatal e os parâmetros de preço dos papéis. Nessa capitalização, estimada em 30 bilhões de ­reais, o governo ficará de fora. Por consequência, sua fatia na estatal, hoje de 65%, cairá a 45%, e aí surgirá um controlador privado.

Só um milagre judicial, um im-
provável desinteresse de investidores
ou uma surpreendente decisão da CVM
e da SEC (“xerifes” do mercado de capi-
tais aqui e nos Estados Unidos, respecti-
vamente), atrapalhará a operação.


“Os homens do mercado estão em fes-
ta hoje, estão comprando uma égua pre-
nhe premiadíssima, tem tantos filhotes,
que nem se imagina”, disse no julgamento
Vital do Rêgo, solitário voto contra a priva-
tização. E acrescentou: “A conta (de luz) vai
aumentar, e muito. Por quê? Está claro: as
empresas internacionais cobram, em mé-
dia, 250 reais o quilowatt-hora, enquanto
a Eletrobras pratica o preço de 65 reais”.


Curioso: os deputados que agora pressio-
nam Sachsida para reverter a pancada da
Aneel são os mesmos que aprovaram com
folga a lei da privatização da Eletrobras,
que, segundo o ministro do TCU, provo-
cará um salto nas tarifas. Resultará ainda
na financeirização do setor, na especula-
ção com energia, como se vê na Europa, o
que explica a presença de bancos por to-
dos os lados no processo de capitalização.
Vital do Rêgo não estava entre os in-
tegrantes da Corte visitados por Sachsi-
da na terça-feira 17. Desde o ano passado,
o ministro se mostrara contra a privati-
zação. Conseguira adiar a primeira deci-
são, de fevereiro, quando o TCU exami-
nava os valores que o governo quer rece-
ber da futura Eletrobras privada pelo di-
reito de a empresa explorar 22 hidrelétri-
cas administradas pela estatal. Guedes
e Bento Albuquerque, o almirante subs-
tituído na pasta de Minas e Energia por
Sachsida, calcularam em 67 bilhões de
reais a chamada outorga. Ao esmiuçar o
assunto, Rêgo concluiu que a cobrança
deveria ser de 113 bilhões. Em vão. Seus
colegas de tribunal não deram bola.

“Os homens
do mercado estão
em festa. Estão
comprando uma égua
prenhe”, afirmou
o ministro vencido


No julgamento da quarta-feira 18, o

ministro apontou “seis ilegalidades” nas
premissas que o governo usou para esti-
mar o preço das novas ações. No mesmo
dia, um papel ordinário, que dá direito a
voto, era cotado a 42,50 reais, alta de 27%
no ano. Na comparação com o dia da de-
posição de Dilma Rousseff e a chegada de

Michel Temer ao poder, em 12 de maio de
2016, época em que a venda da estatal en-
trou nos planos de Brasília, valorização
foi de cinco vezes.


Ao listar as ilegalidades, o ministro
usou a palavra “dolo”. No Direito Civil,
significa ação de má-fé a fim de induzir a
erro. No Penal, é a violação deliberada da
lei, por ação ou omissão. Uma das ocasiões
em que o ministro sacou o termo foi ao
descrever a subavaliação de Itaipu. A par-
te brasileira da usina binacional foi reti-
rada da Eletrobras antes da privatização,
mas, enquanto esteve dentro, valorizou as
ações da companhia, pois é uma gigante
hidrelétrica. A avaliação pelo governo, de
1,2 bilhão de reais, foi uma mera atualiza-
ção do capital social, sem levar em conta
o fluxo de caixa. “É negócio de pai para
filho. Muito mais do que isso: é muitíssi-
mo abaixo do preço calculado para outras
empresas, não se sabe se por erro doloso.


A cada dia que leio esse processo, mais eu
sei que é um erro doloso”, afirmou.
A parte brasileira de Itaipu está aos
cuidados de uma estatal recém-cria-
da, a ENBpar, que assumiu ainda a
Eletronuclear, outra retirada da Ele-
trobras. Esta manteve 36% das ações
preferenciais, sem direito a voto, da
Eletronuclear, o que não muda com a
privatização. Ou seja, particulares te-
rão voz em negócios e na política nucle-
ar. 

Outras duas “ilegalidades” aponta-
das pelo revisor do processo, relatado
pelo colega Aroldo Cedraz, têm relação
justamente com a Eletronuclear, contro-
ladora das usinas de Angra 1 e Angra 2. A
Eletrobras deixou de receber 2,7 bilhões
de reais em dividendos da Eletronuclear
desde 2010. Pela Lei das Sociedades Anô-
nimas, calote no dividendo de acionista
preferencial converte-o, na prática, em
acionista com direito a voto. Apesar de
deter 36% da Eletronuclear, a Eletrobras
privada pode tornar-se a mandachuva na
companhia. Pelo artigo 21 da Constitui-
ção, política nuclear é monopólio estatal.


A Eletrobras, maior holding
de energia da América Latina,
lucrou 5,7 bilhões no ano passado
e 2,7 bilhões no primeiro trimestre


Outra “ilegalidade” citada pelo minis-
tro é a bolada separada pela Eletrobras
para pagar dívidas judiciais, cerca de 30
bilhões de reais. Uma semana antes, ele
pedira uma fiscalização especial na es-
tatal para averiguar essas provisões. Se a
quantia tiver sido exagerada, e se isso for
descoberto após a privatização, o Estado
brasileiro terá sido surrupiado. Dinheiro
terá deixado de ser computado como lu-
cro e, portanto, de ser distribuído aos só-
cios em dividendos. Não só: quanto maio-
res as perdas potenciais, menor o valor da
ação da empresa, e vice-versa, daí as pro-
visões terem impacto no preço dos papéis
a serem leiloados pela Eletrobras.

Os colegas de Vital do Rêgo preferiram
ignorar os apontamentos. Bruno Dantas,
um dos que se reuniram com Sachsida,
e Benjamin Zymler louvaram as virtu-
des do mercado e defenderam que este
sabe o que precisa saber sobre a privati-
zação e é eficiente para assumir a Eletro-
bras. Walton Alencar, outro a receber a

visita do ministro de Minas e Energia, e
Augusto Sherman pregaram que, se não
privatizar, não haverá como investir pa-
ra atender às necessidades nacionais de
energia. Ah, não? De 2012 ao primeiro
trimestre de 2022, a empresa acumulou
lucros de 10 bilhões de reais.


Diante da posição da maioria dos mi-
nistros do TCU, “os homens do mercado
estão em festa”, como havia anotado Vi-
tal do Rêgo. Os maiores ricaços brasileiros
têm interesse no negócio. Jorge Paulo Le-
mann (fortuna de 72 bilhões de reais em
2022), Marcel Telles (47 bilhões) e Carlos
Alberto Sicupira (40 bilhões) são acionis-
tas da Eletrobras por meio do fundo 3G
Capital. André Esteves (26 bilhões) é do
BTG, que em 2020 adquiriu a maior con-
sultoria privada do setor elétrico, a PSR.
O BTG integra o sindicato de cinco bancos
(os demais são Bank of America, Goldman
Sachs, Itaú e XP) montado pela estatal pa-
ra assessorar a privatização. Do quinteto,
três possuem comercializadoras de ener-
gia (BTG, Itaú e XP).


Tem mais bilionários em conflito de in-
teresses e com comercializadora de ener-
gia. Trata-se de Lirio Parisotto (11 bi-
lhões), do Banco Genial. A instituição pos-
sui uma corretora de valores que contro-
la um fundo detentor de 5% da Eletrobras.
Outra firma do grupo foi contratada para

gerir a escassez. “A discussão na Euro-
pa hoje é essa. A energia é cara para os po-
bres. Aqui vão gourmetizá-la.”

Há inúmeros
conflitos de interesse
no processo de
privatização. E uma
certeza: a energia
vai ficar mais cara


Por essa visão, consumada a privati-
BNDES para um pente-fino pré-privatiza-
ção. Um terceiro braço do grupo recomen-
da a clientes que comprem papéis da esta-
tal. E um quarto tem uma comercializado-
ra de energia. Um conflito gritante de in-
teresses, que não apenas a AEEL, associa-
ção dos empregados da Eletrobras, desnu-
dou em uma assembleia-geral em feverei-
ro, mas também João Antonio Lian, repre-
sentante de outro acionista minoritário.


O setor elétrico tem duas agendas atu-
almente, diz Ronaldo Bicalho, pesquisa-
dor do Grupo de Economia da Energia do
Instituto de Economia da UFRJ e dire-
tor do Instituto Ilumina. Uma é do setor
em si, sobre transição energética. A outra
é a da financeirização. “Todos os grandes
bancos têm hoje uma comercializadora
de energia.” Segundo ele, as instituições
financeiras não vão entrar no setor para
investir em produção de energia, mas pa-
zação, a financeirização será completa-
da com uma lei em tramitação na Câma-
ra que promove a liberalização do setor
elétrico. Das 22 usinas da Eletrobras, 17
estão no chamado regime de cotas, cria-
do em 2012. Usinas “cotizadas” vendem
energia barata, pois são antigas e amor-
tizadas, 65 reais o quilowatt-hora. Ele-
tricidade destinada a residências. Com
a privatização seguida da liberalização,
o controlador da Eletrobras poderá ven-
der pelo preço que quiser e a quem quiser,
inclusive a empresas, no chamado mer-
cado livre. Neste, a energia é mais cara.
No ano passado, o quilowatt-hora custou,
em média, 313 reais, diz uma ação civil
pública movida pelo PT, na Justiça Fe-
deral, contra a privatização.


A ação destaca a omissão da Aneel
diante da privatização. Em 2017, no go-
verno Temer, a agência dizia que encare-
ceria a energia em 16%. Agora se cala. Seu
presidente, André Pepitone, foi premia-
do com o cargo de diretor-financeiro de
Itaipu. O PT moveu ainda uma ação po-
pular na Justiça Federal e dois manda-
dos de segurança no Supremo Tribunal
Federal contra a venda. Um dos manda-
dos, de fevereiro, caiu com o juiz Kassio
Nunes Marques, indicado de Bolsona-
ro, e foi negado. O outro, mais recente,
deve cair também. Tentar revertê-la em
caso de vitória de Lula será difícil. O go-
verno bolou regras jurídicas que dificul-
tam acordos de acionistas e impõe pre-
ço muito alto para a recompra de ações.
“Identifiquei uma pesquisa recen-
te, do Poder Data, que mostra que 56%
dos brasileiros são contrários à venda
da Eletrobras”, disse Vital do Rêgo. “E é
que eles não conhecem o que nós esta-
mos descobrindo de ações dolosas come-
tidas contra a empresa.” Contra a empre-
sa só, não. Contra o País. •

CARTA CAPITAL
L

May 24, 2022

A mentira vence

 

Matrix. Na realidade criada pela equipe de Ferdinand Marcos Jr., o BongBong, o pai e a mãe, Imelda, não saquearam o país nem perseguiram os opositores. A riqueza da família vem de berço e será distribuída generosamente aos pobres - Imagem: Uniteam/BBM-SARA e Romeo Gacad/AFP
Matrix. Na realidade criada pela equipe de Ferdinand Marcos Jr., o BongBong, o pai e a mãe, Imelda, não saquearam o país nem perseguiram os opositores. A riqueza da família vem de berço e será distribuída generosamente aos pobres - Imagem: Uniteam/BBM-SARA e Romeo Gacad/AFP

Uma campanha de desinformação reescreve a história e leva a família Marcos de volta ao poder nas Filipinas

POR REBECCA RATCLIFFE

Ferdinand Marcos, o ditador que governou as Filipinas de 1965 a 1986, foi o herói mais condecorado do país na Segunda Guerra Mundial. Sob seu governo, as Forças Armadas eram as mais avançadas da Ásia. Ainda mais impressionante: sua família possui enormes quantidades de ouro, o suficiente para salvar o mundo (foi dado a Marcos por uma família real como pagamento por atuar como seu advogado). Será compartilhado com a população se eles recuperarem o poder.

As afirmações são todas falsas. Mas isso não impediu que repercutissem nas redes sociais e saturasse os feeds de notícias nas Filipinas. Ferdinand Marcos deixou o cargo em desgraça há 36 anos, deposto pela Revolução do Poder Popular, que atraiu milhões para as ruas e forçou a família a fugir do palácio presidencial de helicóptero. Mas, no último domingo 8, a família Marcos marcou sua volta ao poder. Cerca de 67,5 milhões de filipinos foram às urnas para decidir quem substituiria o presidente populista Rodrigo Duterte, que chegou ao fim de seu mandato de seis anos e não podia concorrer novamente.

O único filho de Marcos,

Ferdinand Marcos Jr., conhecido como

Bongbong, confirmou o favoritismo e ob-

teve mais do dobro dos votos da concor-

rente, Leni Robredo, ex-advogada de di-

reitos humanos e atual vice-presidente.

Analistas descreveram a corrida como

uma luta pela verdade e o ápice de uma

campanha de décadas para reescrever a

história e reabilitar o nome Marcos. A elei-

ção não foi disputada apenas com dados e

evidências, disse Ronald Mendoza, reitor

da Escola de Governança Ateneo, em Ma-

nila: “É uma batalha de desinformação”.

Os Marcos e seus apoiadores tentam re-

visar a história de sua época e da lei mar-

cial imposta em 1972, muitas vezes descri-

ta como um dos episódios mais dolorosos

do país. Eles negam ou descartam a tortu-

ra generalizada documentada por grupos

de direitos humanos, as execuções extra-

judiciais e o roubo de bilhões de dólares.


Em vez disso, o período é retratado como

uma era dourada de paz e prosperidade.

Para os sobreviventes do regime de

Marcos, a aceitação de tais relatos por

parcelas significativas do público é in-

compreensível. “Se ele vencer, será com

base em narrativas falsas e distorção his-

tórica”, disse Bonifácio Ilagan, coordena-

dor da Campanha Contra o Retorno dos

Marcos e da Lei Marcial, antes do anún-

cio do resultado oficial. “Vivi a ditadura

militar. Fui preso duas vezes. Fui tortu-

rado. Minha irmã desapareceu e prova-

velmente foi morta, amigos sofreram o

mesmo. E agora o Marcos Jr. volta. É hor-

rível, parece um pesadelo.”


Parcerias foram formadas para com-

bater falsas afirmações online, entre elas

o #FactsFirstPH, formada por meios de

comunicação como Rappler, cofundado

pela ganhadora do Nobel Maria Ressa,

que se uniu a grupos religiosos, pesqui-

sadores e outros. O Tsek.ph, uma coali-

zão de universidades, jornalistas e gru-

pos da sociedade civil, também corrige

falsas teses nas redes sociais. “Todos os

dias vasculhamos esse tsunami de desin-

formação e decidimos quais checar. São

muitas”, diz Maria Diosa Labist, profes-

sora associada do Departamento de Jor-

nalismo da Universidade das Filipinas e

coordenadora da iniciativa.


O Tsek.ph tem uma linha de denúncias

na qual o público pode relatar postagens

questionáveis, enquanto os pesquisado-

res vasculham as redes sociais em busca

de desinformação viral. Sua análise mos-

tra que tanto Robredo quanto Marcos fo-

ram alvo de falsas afirmações. Mas a de-

sinformação sobre Robredo tem sido ex-

tremamente negativa, questionando sua

competência e seu caráter. Das falsas ale-

gações sobre Marcos, quase todas busca-

vam melhorar sua imagem ou aquela de

sua família. Muitas se relacionam à épo-

ca de seu pai: afirmavam erroneamente

que nenhum crítico de Marcos foi preso

durante a lei marcial, ou que todos os ca-

sos de riqueza ilícita contra a família fo-

ram arquivados.


No TikTok e no YouTube, contas ali-

nhadas a Marcos buscam glamourizar a

dinastia, com montagens de imagens de

arquivo e clipes de seus filhos adorados

por uma base de apoiadores mais jovens.

“O próprio Marcos Jr., sua carreira polí-

tica e suas realizações não são realmen-

te impressionantes”, disse Fátima Gaw,

professora assistente de pesquisa em co-

municação na Faculdade de Comunica-

ção de Massa da Universidade das Filipi-

nas. Seu apelo depende de sua promessa

de restaurar o legado do pai, que é o cen-

tro das campanhas online.


Em um recente show para Marcos em

Bulacan, o clima era nostálgico. A mul-

tidão, vestida de vermelho, cantou músi-

cas de rock dos anos 1970 e 80. Os partici-

pantes falaram com carinho do passado.

“O pai dele fez muitas coisas. Ele cons-

truiu estradas, pontes, hospitais”, dis-

se Zenaida Catindig, 59 anos. Catindig

não acredita que a família Marcos tenha

roubado dinheiro das Filipinas. “Se há

um caso, eles deveriam estar na cadeia

agora. Eles não estão na prisão. Por que

estão livres, se são corruptos?”


A família enfrentou várias denúncias. A

mãe de Marcos Jr., Imelda, famosa por sua

coleção de 3 mil pares de sapatos, apela de

uma condenação criminal de 2018 por se-

te acusações de corrupção.


John Agbayani, presidente da Comis-

são Presidencial de Bom Governo, criada

para investigar e recuperar os fundos da

família Marcos, disse à Reuters que ha-

via recuperado cerca de 5 bilhões de dó-

lares (em torno de 25 bilhões de reais) e

que outros 2,4 bilhões estavam presos em

litígios. Mais dinheiro continua sumido.


Apesar dessas evidências, os apoiadores

não estão convencidos. “A família Marcos

era rica antes de entrar na política”, dis-

se Catherine Dayao, estudante de 22 anos

que assistia ao show em Bulacan. Marcos

foi advogado de uma família real, disse.

Foi seu irmão, um professor de história,

quem lhe contou. “Vejo nele as qualida-

des de meu pai”, disse Dayao. “Bongbong

trará de volta a disciplina aos filipinos.”


Segundo analistas, grande número de

eleitores mais jovens nas Filipinas não se

lembra da lei marcial. “Há exposição à de-

sinformação mesmo em idades muito jo-

vens”, afirma Mendoza. “Eles parecem ter

plantado as sementes para o sucesso futu-

ro.” Garantir que haja informações factu-

almente precisas sobre a era Marcos deve

se tornar cada vez mais crucial mesmo pa-

ra futuras eleições, acrescenta.

Névoa. A revolução que derrubou

a família Marcos do poder resta

na lembrança de poucos filipinos.

Muitos acreditam que a dinastia

trouxe prosperidade ao país


Os filipinos estão no topo das pesqui-

sas globais de tempo gasto nas redes so-

ciais, o que aumenta a vulnerabilidade do

país à desinformação. As plataformas de

rede social foram manipuladas pelo presi-

dente Duterte enquanto fazia campanha

para as eleições de 2016 e usadas como ar-

ma para calar as críticas ao seu governo.

Um funcionário do Facebook descreveu o

país como “paciente zero” em uma crise

de notícias falsas que cresceu para amea-

çar democracias em todo o mundo.


Pesquisadores dizem, no entanto, que

o que aconteceu nas eleições é muito mais

organizado e insidioso do que as fazendas

de trolls de Duterte. Em 2016, as Filipi-

nas experimentavam apenas a infância

das campanhas de desinformação, disse

Gaw. “Seis anos depois, vemos que há to-

da uma cadeia de oferta que realiza esse

trabalho para os Marcos.” Se uma crítica

a Marcos Jr. for divulgada na mídia, uma

contranarrativa é rapidamente fornecida

por uma rede de influenciadores online,

disse Gaw, que descreve o sistema como

muito mais industrializado.


Provar que essas contas são financia-

das pela família Marcos ou determinar o

tamanho do negócio de desinformação é

um desafio. Mas está claro que espalhar

desinformação é um trabalho fácil e com-

pensa, acrescenta a especialista. “É tão

lucrativo que, mesmo que você não acre-

dite no Marcos Jr., você o promoveria.”

O presidente eleito negou a existência

de qualquer campanha de desinformação

organizada. Em janeiro, o Twitter sus-

pendeu, porém, centenas de contas que

promoviam sua campanha por violar su-

as regras sobre spams e manipulação. 


Pesquisadores nas Filipinas há muito

acusam as empresas de rede social de não

levarem a sério a desinformação online e

permitirem que suas plataformas sejam

exploradas. Embora os filipinos estejam

entre os usuários mais dedicados no mun-

do, as plataformas têm políticas de mode-

ração projetadas com uma perspectiva oci-

dental, priorizando áreas como conteúdo

de alt-right (direita alternativa), disse Gaw.

“Nas Filipinas não há uma versão alt-right

das coisas. São apenas diferentes famílias

políticas a lutar pelo poder.”


O Tsek.ph não tem um acordo especial

com plataformas para remover conteúdo

falso, embora alguns integrantes sejam

credenciados como checadores de fatos

terceirizados para o Facebook. Das posta-

gens que a coalizão Tsek.ph denuncia, não

sabe quantas são removidas. As histórias

geralmente reaparecem e se movem en-

tre diferentes sites de rede social. Muitas

vezes, as reivindicações circulam há anos

e se enraízam em algumas comunidades

online. Tentar contrariar tais crenças, em

um país onde a mídia foi difamada, amea-

çada e assediada, é uma batalha ingrata.

Ilagan teme que a eleição de Marcos

Jr. cerceie as liberdades e arruíne os es-

forços para recuperar a riqueza ilícita da

família. Também distorcerá ainda mais a

democracia. “Acho que os Marcos plane-

jaram tudo desde que foram expulsos do

palácio presidencial. Eles tiveram todo o

tempo e o dinheiro para elaborar um re-

torno. Como a democracia pode ser ver-

dadeira quando um punhado decide o

destino da maioria?”, indagou. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


CARTA CAPITAL 


May 8, 2022

Neal Adams, Who Gave Batman a Darker Look, Dies at 80

 

 

Neal Adams in 1979. “He was a master at every facet of art,” the publisher of DC Comics said.

Credit...Jones/Evening Standard/Hulton Archive/Getty Images
 
 

Neal Adams, a leading comic book artist who brought a visceral realism to his depictions of superheroes, notably helping to revitalize Batman by giving him a darker image and new adversaries, while also championing the rights of comic book creators, died on Thursday in Manhattan. He was 80.

His daughter Kristine Stone Adams attributed his death, in a hospital, to complications of sepsis.

Characters drawn by Mr. Adams were more grounded in reality than his predecessors’. The anguish of Deadman, the ghost of a trapeze artist trying to solve his own murder, was evident in his facial expressions. Mr. Adams’s Superman could burst the chains binding him simply by expanding his chest. And Batman, as drawn by Mr. Adams, was lithe and menacing, a return to the hero’s shadowy roots after a boom and bust in his popularity following the campy 1960s “Batman” television show.

“He was a master at every facet of art — his range of expressions, the dramatic use of lighting and shadowing, the seemingly facile command of anatomy and, of course, the trademark finger-pointed-in-your-face foreshortening was all just unbelievably next level,” Jim Lee, the chief creative officer and publisher of DC Comics, wrote in an Instagram post remembering Mr. Adams.

Mr. Adams both wrote and drew “Batman: Odyssey” (2011), a lavish seven-part series that his daughter said was the project he was most proud of.
Credit...DC Comics

Some of Mr. Adams’s most well-regarded work resulted from his partnership with the writer Denny O’Neil. In 1969, the two began to restore Batman to a brooding vigilante, as he was originally conceived, and in 1971 they created a new foe for him, the eco-terrorist Ra’s Al Ghul, whose goal of saving the planet usually involved eliminating much of its population. Ra’s Al Ghul became the central protagonist in the 2005 film “Batman Begins.” Mr. Adams would draw Batman stories through 1973.

The two also collaborated from 1970 to 1972 on the Green Lantern/Green Arrow series, in which the title heroes, who were friends out of costume, traveled across the country in stories about drug abuse, racism, corporate greed and poverty.

During this period Mr. Adams and Mr. O’Neil introduced John Stewart, the first Black Green Lantern.

Mr. Adams made his way back to Batman in 2011 when he wrote and drew “Batman: Odyssey,” a lavish seven-part series that was met with mixed reviews (some critics found it hard to follow), though his daughter Ms. Adams said it was the project he was most proud of.

His pairing of Superman and Muhammad Ali in 1978 in a tabloid-size comic book, which he wrote and drew from a plot by Mr. O’Neil, initially drew a similarly tepid response. The boxing match at the center of the story takes place over six pages and ends with the Man of Steel, who had temporarily deactivated his powers, on a stretcher. But the two fighters shake hands at the end, Ali declares, “Superman, WE are the greatest.”

“He was always 10 to 20 years ahead of everybody,” Ms. Adams said in a phone interview. “When ‘Superman vs. Muhammad Ali’ came out, everyone hated it. Twenty years later, everyone was, like, ‘“Superman vs. Muhammad Ali” was the best thing he ever did.’” The story was reprinted in a hardcover edition in 2010.


Mr. Adams collaborated with the writer Denny O’Neil on the groundbreaking Green Lantern/Green Arrow series in the early 1970s.
Credit...DC Comics

Mr. Adams put Superman in the ring with Muhammad Ali in a tabloid-size comic book published in 1978 and reprinted in a hardcover edition in 2010.
Credit...DC COMICS
Mr. Adams put Superman in the ring with Muhammad Ali in a tabloid-size comic book published in 1978 and reprinted in a hardcover edition in 2010.
Mr. Adams was also on the front lines in challenging comic book publishers to safeguard the rights of creators. “Neal was an agitator,” Paul Levitz, a former president of DC Comics, said by phone. Mr. Adams, he said, “was the only star talent to stand up” when “the major talents were desperately afraid of the great power of the publishing houses.”

One of Mr. Adams’s achievements was to help make it standard practice for publishers to return original artwork to the artists, which created new revenue opportunities for them; they could then sell the pages to fans and collectors.

Mr. Adams also joined the decades-long cause of Jerry Siegel and Joe Shuster, the writer and artist who created Superman, in their quest for recognition and remuneration.

Mr. Siegel and Mr. Shuster sold their rights to Superman for $130 in 1938 and later fell into poverty. When they tried to claim a share of the enormous revenue Superman generated, DC stripped them of credit and denied them further work. Mr. Adams was a vocal supporter, joining a successful publicity campaign in the 1970s that brought them recognition for their work, as well as health benefits and, for each, a substantial annuity.

“Neal was the loud voice of justice,” Mr. Levitz, the former DC president, said.

Neal Adams was born on June 15, 1941, on Governors Island in New York City. His mother, Lillian, ran a boardinghouse. His father, Frank, who was largely absent, was a writer for the military.

Mr. Adams graduated from the School of Industrial Art in Manhattan in 1959. He did some work for Archie Comic Publications but found more continual employment in the advertising industry. In 1962, he landed an assignment drawing “Ben Casey,” a newspaper strip based on the television medical drama of the same name.

He began working for DC Comics as a freelancer in 1967, when he drew a short story for the long-running comic books series Our Army at War. He ended the ’60s and started the next decade with some memorable freelance work drawing the X-Men and the Avengers for Marvel.

In 1971, he and Dick Giordano founded Continuity Studios, a graphics arts concern that worked in advertising and film. It also had a publishing arm, Continuity Comics, an early attempt to allow creators to reap more profits from their characters. One of the company’s successes was Bucky O’Hare, a comic book about a green rabbit who has adventures in space; the character inspired toys, cartoons and video games.

Mr. Adams enjoyed nurturing talent.

“He was the teacher who encouraged more than a handful of people who became the leading lights of the next generation of the field, including Frank Miller, Bill Sienkiewicz and Denys Cowan,” Mr. Levitz said. But it was a tough-love encouragement.

“Kids would bring them his portfolio, and he would rip it to shreds,” Mr. Levitz said. However, after two or three times, if they improved, Mr. Adams would call DC or Marvel on their behalf.

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Mr. Adams in his Manhattan studio in 2008. He was a mentor to a new generation of comic book artists.
Credit...Richard Perry/The New York Times

One of his protégés was Denys Cowan, who had a high school internship at Mr. Adams’s studio in 1977.

“I was a 16-year-old Black kid from Queens,” Mr. Cowan said in an interview. “He was letting me come to the studio every day and paying me.” Mr. Cowan became a founder of Milestone Comics, a groundbreaking imprint that flourished in the 1990s with stories centered on Black, Asian, Hispanic and gay superheroes.

In addition to his daughter Kristine, Mr. Adams is survived by his wife, Marilyn Adams; another daughter, Zeea Adams; his sons, Joel, Jason and Josh; five grandchildren; and one great-grandson. He lived in Manhattan.

Mr. Adams’s fight for what was right continued for decades. In 2008 he teamed with the comic book veterans Stan Lee and Joe Kubert, and with Rafael Medoff, director of the David S. Wyman Institute for Holocaust Studies in Washington, to bring attention to the plight of the artist Dina Gottliebova Babbitt. They told her story in comic book form:

Mrs. Babbitt survived imprisonment at the Auschwitz concentration camp during World War II by painting watercolor portraits for Josef Mengele, the infamous Nazi physician known as the Angel of Death. She later wanted her artwork back, but the Auschwitz-Birkenau Memorial and Museum in Poland has continued to refuse to return them, citing the historical and educational value of the work. (Ms. Babbitt died in 2009.)

Mr. Adams and Mr. Medoff also produced animated shorts, released in 2013, about Americans who spoke out against the Holocaust. In 2018, with Craig Yoe, Mr. Adams published the book “We Spoke Out: Comic Books and the Holocaust,” a look at how comics depicted the Nazi genocide.

“He told me many times that he felt that the Dina Babbitt campaign and our book, ‘We Spoke Out’, were the most meaningful projects of his career,” Mr. Medoff said, “which was saying a lot.”

NEW YORK TIMES