Como o PT enfrentou a milícia digital bolsonarista
BRENO PIRES
Quando tomou o voo de Por-
tugal para o Brasil, o casal
Fernanda Sarkis e Marcus No-
gueira trazia uma bagagem
preciosa. Brasileiros, ela mestre
em comunicação política pela Universi-
dade do Porto e ele sociólogo, Sarkis e
Nogueira haviam feito um mapeamento
da extrema direita portuguesa no univer-
so digital que ajudou o Partido Socialista
a conquistar uma inesperada maioria
nas eleições legislativas do início do ano.
Enquanto cruzavam o Atlântico, no mês
de fevereiro, a campanha no Brasil esta-
va longe de começar, mas o PT já andava
às tontas com um desafio enorme:
como enfrentar a milícia digital de Jair
Bolsonaro, que se provou tão eficaz na
eleição de 2018? Baseados na experiência
em Portugal, Sarkis e Nogueira achavam
que tinham a resposta.
Em Brasília, o casal começou a partici-
par de discussões sobre o funcionamento
da extrema direita. Trocaram ideias com
líderes de alguns partidos, mas estavam
mais interessados no PT por achar que a
candidatura de Lula era a única capaz de
enfrentar Bolsonaro com sucesso. De iní-
cio, o núcleo político petista ficou na dú-
vida sobre como a abordagem do casal
poderia ser útil na comunicação do par-
tido e na ação política. Mas as conversas
prosseguiram até que houve uma reunião
com o advogado Angelo Ferraro, ex-asses-
sor jurídico do governo de Dilma Rous-
seff e sócio de Eugênio Aragão, que
ocupou o cargo de ministro da Justiça nas
vésperas do impeachment da petista. Fer-
raro e Aragão operaram a área jurídica
da campanha presidencial de Fernando
Haddad em 2018 e estavam escalados
para exercer a mesma função na campa-
nha de Lula. Associados ao escritório de
Cristiano Zanin, o advogado que tomou
conta dos processos de Lula na Lava Jato,
eles queriam abrir uma trincheira jurídi-
ca contra a milícia digital bolsonarista.
No encontro, realizado no escritório de
Ferraro e Aragão, os advogados logo cap-
taram o potencial do trabalho de Sarkis e
Nogueira. Perceberam que a pesquisa di-
gital poderia ser um elemento central nas
ações jurídicas, capaz de deter o avanço
do bolsonarismo nas redes sociais. Sarkis
e Nogueira explicaram que adotam o con-
ceito de “cartografia da controvérsia”, cuja
base está na Teoria Ator-Rede, do pensa-
dor francês Bruno Latour, recentemente
falecido. Na pesquisa em Portugal, o ca-
sal incorporou a ideia de que, para com-
preender bem um ator, é preciso analisar
seu comportamento em rede. A partir
dessa premissa, construíram extensos
mapas de interação de atores da extrema
direita portuguesa, decodificando como,
por meio das redes, eles amplificavam
seu discurso e suas mensagens.
Em termos mais técnicos, investiga-
ram como uma rede transnacional, sob
uma coordenação central, opera na ocu-
pação do espaço digital, de modo a fazer
muito mais do que disseminar fake news:
construir toda uma realidade paralela.
Nesse mundo à parte, as premissas são
falsas e a desinformação se multiplica
em diversas camadas. Não se trata, ape-
nas, de inventar uma mentira e martelá-
la diante de uma plateia politicamente
disponível. São desinformações, basea-
das em interpretações subjetivas, mani-
puladas de modo que pareçam objetivas.
Apesar do linguajar algo obscuro, os
advogados entenderam a importância
da proposta para a atuação jurídica e
contrataram o casal por conta própria.
Assim começou um trabalho que, fun-
dindo pesquisa digital com argumento
jurídico, pela primeira vez conseguiu
neutralizar parcialmente a milícia digi-
tal bolsonarista.
Corria o feriado de 1º de maio quan-
do os pesquisadores começaram a
mapear e monitorar a rede de inte-
ração de um único ator numa única pla-
taforma: o Twitter do vereador Carlos
Bolsonaro (Republicanos-RJ). Nessa pri-
meira etapa, o trabalho durou até 21 de
maio. (Na segunda etapa, estendeu-se
de 15 de agosto a 30 de setembro.) Os pes-
quisadores constataram que Carlos Bol-
sonaro comentava posts de outros atores,
mas a grande maioria de suas interven-
ções – 78% – era sempre sobre postagens
de um universo de quarenta perfis.
Esses quarenta perfis foram classifi-
cados em três categorias. A primeira
era o “promotor de conteúdo”, assim
chamados os perfis que enquadravam
notícias e manchetes – atuais e antigas
– numa linha narrativa pró-Bolsonaro.
O segundo era o “produtor de conteú-
do”, que criava novas histórias para
pautar o debate no âmbito daquilo que
os pesquisadores chamam de “ecossis-
tema de desinformação”. O terceiro
tipo, talvez o mais importante, era o
spin doctor. São perfis com alta credibi-
lidade no tal ecossistema, capazes de
agendar o debate com grande velocida-
de e, como têm milhões de seguidores,
enquadram um acontecimento à feição
bolsonarista com facilidade.
Ao mapear a rede de Carlos Bolso-
naro, que hoje tem 3,2 milhões de se-
guidores no Twitter, os pesquisadores
começaram a descrever a estrutura e a
forma de atuação da milícia da desin-
formação do presidente. Os dados cole-
tados eram remetidos à área jurídica da
campanha do PT, que acionava o Tribu-
nal Superior Eleitoral (TSE), pedindo a
remoção das postagens de fake news. Em
toda a campanha, a equipe petista con-
seguiu 75 decisões judiciais para remo-
ver postagens, sempre por desinformação.
Aos poucos, os pesquisadores foram
documentando o caráter reiterado na pu-
blicação de desinformação dos atores que
se relacionavam com Carlos Bolsonaro
no Twitter. Em outras palavras, a pesqui-
sa estava, paulatinamente, demonstrando
a existência e o funcionamento do “ecos-
sistema de desinformação”, que, ao todo,
reunia 81 perfis nas redes sociais. Entre
eles, estavam os três filhos de Bolsonaro e
um punhado de parlamentares, como
Carla Zambelli (PL-SP), Bia Kicis (PL-DF)
e Ricardo Salles (PL-SP), o ex- ministro
que vai estrear uma cadeira na Câmara
dos Deputados, além de apoiadores do
presidente. O levantamento do PT mos-
trou que a milícia não atuou de forma
espontânea – ou “orgânica”, como se diz
no jargão digital – mas sim de maneira
coordenada com o objetivo de produzir
e espalhar desinformação para influen-
ciar o resultado da eleição de 2022.
“As múltiplas decisões judiciais que
mandam remover desinformação ates-
tam que há um comportamento reiterado
e padronizado entre os atores do ‘ecossis-
tema’”, afirmou Fernanda Sarkis à piauí.
“Isso mostra como eles ocupam o espaço
público, em especial no debate político
eleitoral, com uma estratégia coordena-
da, com o objetivo de validar como verda-
de um conjunto de mentiras”.
O estudo do PT mostra que o “ecossis-
tema da desinformação” de Bolso-
naro operava em quatro eixos
temáticos: “violência e criminalidade”,
“religião e costumes”, “descredibilização
do sistema eleitoral” e, por fim, “agenda
socioeconômica”. Nenhum deles estava
voltado à formulação de propostas, mas
em organizar acusações – frequente-
mente mentirosas – contra os adversá-
rios, sobretudo Lula. Cada perfil podia
tratar de qualquer eixo temático a qual-
quer tempo, impulsionando nas redes a
fake news do dia que, em alguns casos,
podia durar semanas ou mais.
A lorota de que Lula perseguiria cris-
tãos, imitando o que se passa na Nica-
rágua do seu aliado político Daniel
Ortega, foi um desses casos duradouros.
Entre julho e setembro, 42 perfis da
rede de interação de Carlos Bolsonaro
publicaram 238 conteúdos sobre o as-
sunto. Foi num crescendo: 5 em julho,
76 em agosto e 162 em setembro. O de-
putado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) en-
trou na roda em 12 de julho. De início,
com insinuações indiretas. Em 19 de
agosto, subiu o tom. “Lula e o PT apoiam
invasões de igrejas e perseguição de
cristãos.” Como o assunto crescia, Jair
Bolsonaro apareceu na entrevista que
deu ao Jornal Nacional em 22 de agosto
com uma palavra escrita a caneta na
palma da mão: “Nicarágua.” Era uma
senha para impulsionar o assunto.
Um dos melhores exemplos da atua-
ção da milícia digital bolsonarista par-
tiu do eixo “violência e criminalidade”,
que tentou vincular Lula ao PCC, a
maior organização criminosa em ativi-
dade no Brasil, e ao assassinato do pre-
feito petista de Santo André, Celso
Daniel, ocorrido em 2002. Na rede de
interação de Carlos Bolsonaro no Twit-
ter, 47 perfis publicaram 763 tuítes so-
bre os dois assuntos, entre 3 de maio e
10 de outubro, com destaque para três
perfis: @ViLiMiGu_Tex e @ruirapi-
na3, cujos autores não se identificam, e
@kimpaim, que pertence a Kim Paim,
influente youtuber que apresenta pro-
gramas com dossiês sobre temas de in-
teresse da agenda bolsonarista, quase
sempre repletos de desinformação. Fi-
gura central na rede de Carlos Bolsona-
ro, Paim publicou uma sequência de
quatro vídeos, de uma hora cada um,
entre os dias 2 e 5 de julho, estabelecen-
do a tal ligação Lula- PCC. Uma de suas
fontes era o perfil @ViLiMiGu_Tex.
Carlos Bolsonaro recomendou tanto o
vídeo de Paim quanto os tuítes de ViLi-
MiGu: “Vale a pena conferir a thread!”
A sequência é didática sobre o fun-
cionamento do “ecossistema da desin-
formação”: perfis anônimos lançam a
fake news, que é amplificada por in-
fluenciadores e endossada pela família
Bolsonaro. Mas foi justamente as lo-
rotas sobre Lula-PCC e a morte de Cel-
so Daniel que marcaram o início dos
problemas para a milícia bolsonarista.
A ação jurídica do PT acusa o esquema de cometer quatro violações – crime eleitoral, abuso de poder econômico, abuso de meios de comunicação e abuso de poder político
Com as mentiras bombando nas redes
– só em julho, a milícia bolsonarista
postou 434 tuítes sobre o assunto –, o PT
entrou com a representação eleitoral
0600543-76.2022. Foi o começo de uma
mudança importante
Na representação, o partido pediu a
remoção de publicações mentirosas so-
bre quatro temas: a suposta ligação de
Lula com o PCC e a morte de Celso Da-
niel, a associação do petista ao fascismo
e ao nazismo e, por último, uma decla-
ração manipulada de Lula, de modo a
parecer que ele dissera que usava “pobre
como se fosse papel higiênico”. Na noite
de domingo, 17 de julho, durante o plan-
tão de recesso do Judiciário, o ministro
Alexandre de Moraes acatou o pedido e
mandou remover as publicações de seis
redes – Twitter, TikTok, YouTube, Insta-
gram, Facebook e Kwai. A decisão atin-
giu posts do senador Flávio Bolsonaro
(PL-RJ) e dos deputados bolsonaristas
Otoni de Paula (MDB-RJ), Hélio Lopes
(PL-RJ) e Carla Zambelli, bem como de
outros apoiadores e até administradores
de sites e canais no YouTube.
Em sua decisão, o ministro Alexandre
de Moraes aceitou um critério proposto
pelo jurídico do PT: derrubar conteúdos
que já tivessem sido apontados como fal-
sos ou enganosos pelas agências de che-
cagem. As publicações atingidas pela
decisão daquele 17 de julho ou eram
mentiras evidentes já descartadas pela
própria Justiça, ou já haviam sido des-
mentidas pelas agências. Em sua decisão,
Moraes, então vice-presidente do TSE,
recorreu a uma retórica inflamada, criva-
da de pontos de exclamação:
Liberdade de expressão não é Liber-
dade de agressão
Liberdade de expressão não é Liberdade
de destruição da Democracia, das Insti-
tuições e da dignidade e honra alheias!
Liberdade de expressão não é Liberdade
de propagação de discursos mentirosos,
agressivos, de ódio e preconceituosos!
Aparentemente, o ministro Moraes
enamorou-se do seu pronunciamento e
voltou a usá-lo, tal e qual, em outras
decisões no período eleitoral. Em outu-
bro, por exemplo, mandou excluir pu-
blicações segundo as quais Lula iria
instituir o uso de banheiro unissex para
as crianças nas escolas – uma das men-
tiras que mais impressionaram um seg-
mento dos eleitores evangélicos. Um
dos tuítes com a fake news era do presi-
dente Bolsonaro. E, na ordem para sus-
pender o conteúdo falso, lá foi Moraes
com seus pontos de exclamação:
Liberdade de expressão não é Liber-
dade de agressão!
Liberdade de expressão não é Liberdade
de destruição da Democracia, das Insti-
tuições e da dignidade e honra alheias!
Liberdade de expressão não é Liberdade
de propagação de discursos mentirosos,
agressivos, de ódio e preconceituosos!
Consolidada a tendência de seguir as
agências de checagem para definir con-
teúdos falsos, a coligação liderada pelo PT
passou a concentrar seus pedidos em te-
mas já analisados pelos checadores pro-
fissionais. A decisão de Moraes teve um
impacto imediato. O volume geral de
postagens no Twitter caiu cerca de 30%,
segundo levantamento da Pública, uma
agência de jornalismo investigativo sem
fins lucrativos. Até no Telegram, rede
que não fora atingida pela remoção de
conteúdos porque não constava da repre-
sentação, a quantidade de mensagens
relacionando PT e PCC desabou 56,8%.
Para quem desconhece o funciona-
mento da milícia digital bolsonarista,
uma decisão da Justiça Eleitoral carim-
bando um conteúdo como falso pode
parecer apenas isso: um conteúdo falso
suspenso do perfil de determinado
usuário. Na prática, é muito mais. A Jus-
tiça derruba um capítulo (ou um con-
junto de capítulos) que compõe a
grande narrativa da rede de desinforma-
ção, desarticulando parcialmente o dis-
curso digital. No mundo analógico, é
como se uma publicação, que normal-
mente é distribuída de graça nos pontos
de ônibus e estações de metrô, deixas-
se de ser entregue aos passageiros por
seu conteúdo mentiroso. Só que essa
publicação – eis aí a diferença brutal –
era distribuída em milhares de pontos
de ônibus e metrô para milhões de pes-
soas em questão de segundos
.
Essa é a rede que uma decisão judi-
cial derruba.
O PT criou uma estrutura para a
guerra digital. Em São Paulo,
conforme contou a repórter Con-
suelo Dieguez em reportagem no site da
piauí, instalou-se uma sala com cin-
quenta monitores cobrindo uma parede
inteira – ali se acompanhava, minuto a
minuto, o que a milícia bolsonarista es-
tava disseminando. Em agosto, por
meio do advogado Cristiano Zanin, a
equipe paulista ganhou a adesão de
Marcos Aurélio Carvalho, estrategista
em marketing digital que trabalhara na
campanha digital de Bolsonaro em 2018
– da qual foi defenestrado em razão do
ciúme de Carlos Bolsonaro. Carvalho
conhecia o adversário por dentro.
Em Brasília, onde ficavam Sarkis e
Nogueira, monitorava-se o “ecossiste-
ma de desinformação” como um todo,
que passou a ser jocosamente chamado
de “o show de Jair”, numa alusão ao fil-
me O Show de Truman, de 1998, em
que o personagem principal vive – sem
saber – numa redoma em que, na apa-
rência, tudo transcorre com espontânea
naturalidade, mas, na verdade, todas as
interações são programadas. Quando
publicações com fake news começavam
a ser impulsionadas na rede de Carlos
Bolsonaro, os pesquisadores alertavam:
“Começou a rodar o show de Jair.”
A vantagem de analisar o “ecossiste-
ma” como um todo era viabilizar um
contra-ataque estratégico. Na campa-
nha, o PT recebia centenas, às vezes mi-
lhares, de mensagens de militantes
denunciando fake news. Era impossível
trabalhar caso a caso. Com a abordagem
estratégica, que identificava cirurgica-
mente os pontos nevrálgicos, a equipe
digital ajudou a qualificar as ações dos
advogados da campanha – “nossos obu-
ses judiciais”, nas palavras de Eugênio
Aragão. Afinal, tal como no filme de
1998, o show de Jair de 2022 também
contava com uma equipe encarregada
de produzir e promover o espetáculo.
Kim Paim, o youtuber dos dossiês, é
um dos nomes de destaque. Paim é en-
genheiro, vive na Austrália e tem 700 mil
inscritos em seu canal no YouTube, no
qual apresenta programas diários de
uma hora de duração. O presidente
Bolsonaro já promoveu conteúdos de
Paim. Seus vídeos costumam reprodu-
zir conteúdos de perfis do “ecossistema
de desinformação”, como “Família Di-
reita Brasil” e “Demagogia do Oprimi-
do”, além de pessoas físicas como Carlos
Bolsonaro e outros militantes bolsona-
ristas, como Elisa Brom, Iara GB, Rafael
Balboa e Luiz Paulo (LP).
Outro megafone no show de Jair é o
empresário Leandro Ruschel, membro
do conselho da Brasil Paralelo, a mais
ativa plataforma de streaming da extre-
ma direita. Ruschel é um dos princi-
pais spin doctors. Sua especialidade é
tentar vincular a esquerda ao crime,
qualquer crime – do narcotráfico ao
terrorismo. “TODOS os movimentos liga-
dos à esquerda apresentam uma estreita
ligação com o crime”, escreveu no dia
2 de julho em seu Twitter, onde tem
900 mil seguidores. (A postagem foi ex-
cluída.) Na campanha, Ruschel foi alvo
de cinco decisões judiciais, todas sus-
pendendo a veiculação de conteúdo
falso ou distorcido.
Uma terceira fonte de referência é Ber-
nardo Küster, que se apresenta como di-
retor de opinião do Brasil Sem Medo, um
blog bastante ativo da direita extremis-
ta. Küster tem também um canal no
YouTube, que beira 1 milhão de inscritos.
O Brasil Sem Medo – ou BSM, para os ínti-
mos – foi fonte inaugural de um dos exem-
plos mais completos da atuação da milícia
digital do bolsonarismo. Tudo aconteceu
no dia 16 de setembro, uma sexta-feira.
* Às 9h57 da manhã, o BSM noticiou
que acabara de confirmar a autenticida-
de um áudio antigo de Lula, no qual o
petista teria dito que “ninguém teve a
competência e a coragem de acabar com
esse cara”, supostamente reclamando
que o ex-ministro Antonio Palocci ainda
não tinha sido assassinado.
* Às 10h10, o diretor executivo do
Brasil sem Medo, Silvio Grimaldo, fez
um tuíte afirmando: “O BSM recebeu o
laudo de uma perita criminal aposenta-
da da PF com vinte anos de experiên-
cia. A análise técnica é enfática: a voz é
do Lula.” Sua postagem – que está no
ar até hoje – já rendeu 2 230 retuítes.
* Às 10h28, Küster entrou no show
com o seguinte tuíte: “Exclusivo: Perí-
cia confirma autenticidade de gravação
de 2017 em que o ex-presidente comen-
ta acusações de Antonio Palocci.”
* Às 11h41, o youtuber Gustavo Gayer,
outro membro ativo do “ecossistema da
desinformação”, correu para Telegram e
o YouTube, onde postou um vídeo: “UR-
GENTE – ACABOU PRO LULA! Áudio analisa-
do por perita confirma ser a voz do LULA.”
Era, segundo ele, a prova de “que não só
Lula é corrupto, mas também, aparente-
mente, de acordo com a análise do áudio,
é também mandante de crimes”.
* Às 12h11, Gayer compartilhou o
link do Twitter, repetindo, mais uma
vez em maiúsculas: “ACABOU PRO LULA!”
* Às 12h35, o Terra Brasil Notícias,
site cujo mote noticioso é “Deus acima
de tudo e de todos”, reproduziu a notí-
cia do BSM no seu Twitter.
* Às 16h36, Eduardo Bolsonaro, que
já tinha entrado no assunto, tuitou: “O PT
não é um partido, é uma máfia. O ex-
presidiário é o gângster da facção.”
* Às 18h21, a deputada Bia Kicis, pu-
blicou: “Bomba! Perícia da polícia ga-
rante que áudio de conversa de Lula é
autêntico. [...] Esse criminoso não pode
concorrer à Presidência.”
* Às 20h56, Carlos Bolsonaro endos-
sou a história em seu Twitter: “É fato e
o áudio mais que sacramenta: o único
objetivo do descondenado é fazer todos
pagarem e isto inclui você!”
* Às 21h46, “Embaixada Resistên-
cia”, outro perfil da extrema direita,
postou um trecho do laudo técnico
pericial e fez um desafio: “Refutem a pe-
rícia, militantes de redação!”
O vídeo de Gayer viralizou. Em 24
horas no ar, já tinha quase 600 mil visua-
lizações. O tal laudo da perita da Polícia
Federal era uma enganação. Sabe-se que
o áudio é falso desde 2017, quando as
agências de checagem constataram que
a voz era de um imitador. A coligação do
PT pediu a remoção do conteúdo no dia
seguinte, em 17 de setembro, demons-
trando que os checadores já haviam de-
clarado a falsidade do áudio havia pelo
menos cinco anos. Nove dias depois, em
26 de setembro, o ministro Paulo de
Tarso Sanseverino, relator do caso no
TSE, mandou derrubar os links mentiro-
sos. Em 3 de outubro, um dia depois do
primeiro turno, o TSE referendou em
plenário a decisão de Sanseverino. Mas,
até o fechamento desta reportagem, a
decisão ainda era descumprida pelo
BSM, em cujo site estavam disponíveis a
reportagem e o áudio mentirosos.
Com todos os dados reunidos, o PT
bateu na porta do TSE em pleno
domingo, 16 de outubro. Doze ad-
vogados, todos vinculados aos escritórios
de Cristiano Zanin e Eugênio Aragão,
assinavam uma peça jurídica com 245
páginas. Denunciavam – com dados, fa-
tos, evidências – que a rede bolsonarista
tinha uma coordenação na disseminação
de fake news contra o processo eleitoral.
O instrumento jurídico chama-se Ação
de Investigação Judicial Eleitoral (Aije).
A Aije acusa os integrantes do “ecos-
sistema de desinformação” de quatro
violações: crime eleitoral, abuso de po-
der econômico, abuso de meios de co-
municação e abuso de poder político.
Neste último caso, a ação foca na condu-
ta dos investigados que, com mandato
eletivo, atuam para “plantar uma ruptu-
ra de poderes, numa escalada autocrata
de eliminação do instrumento mais es-
sencial do estado democrático de direito:
o sistema eleitoral e o voto direto”. Neste
ponto, o alvo é Bolsonaro. Se condena-
do, ficará inelegível por oito anos.
No caso do abuso de poder econômico,
a ação pede que o TSE investigue o finan-
ciamento das produções audiovisuais e o
impulsionamento dos conteúdos da rede
bolsonarista. O alvo, aqui, são onze pes-
soas, entre elas os donos da Brasil Paralelo
e dos canais Folha Política (Ernani Fernan-
des e Thais Raposo do Amaral) e Foco do
Brasil (Anderson Rossi), além dos youtu-
bers do esquema (como Kim Paim e
Gustavo Gayer) e dos empresários Otávio
Oscar Fakhoury, um bolsonarista já inves-
tigado no Supremo Tribunal Federal (STF)
por financiar milícias digitais, e José Pi-
nheiro Tolentino Filho, dono do Jornal da
Cidade OnLine, um site de opinião e no-
tícias pró-Bolsonaro. O julgamento da
Aije não tem data para acontecer. Pode
levar seis meses ou três anos, mas, en-
quanto não for julgada, ficará pairando
como uma ameaça sobre a cabeça dos
envolvidos, incluindo Bolsonaro.
Quais as chances de sucesso da Aije?
A advogada Marilda Silveira, doutora em
direito administrativo pela Universidade
Federal de Minas Gerais e ex-assessora
jurídica de ministro do TSE, diz que é
cedo para avaliar a consistência da ação,
pois ainda não se encerraram as etapas de
instrução e contraditório. Ela lembrou,
no entanto, que o TSE passou a admitir
que as mídias digitais sejam consideradas
nos mesmos termos que a mídia tradicio-
nal, o que aumenta a chance de sucesso
da ação no quesito “uso indevido de
meios de comunicação”.
O advogado Marcelo Weick, professor
da Universidade Federal da Paraíba, leu
a íntegra da ação. “É uma das ações mais
bem-postas na questão do enfrentamen-
to desse ecossistema massivo de desinfor-
mação.” Ele diz que as Aijes anteriores
– nos casos Dilma-Temer, por caixa dois,
e Bolsonaro-Mourão, pelo disparo em
massa de mensagens via WhatsApp – ca-
reciam de um conjunto robusto de evi-
dências, mas acha que, no caso atual, é
possível entregar provas ampliadas. “Mes-
mo depois das eleições, você está tendo
atos antidemocráticos, suspensão de per-
fis, bloqueio de contas. Então, se o TSE
entender que tem uma concatenação,
que é um ecossistema interligado, com
financiamento oculto, estará caracteriza-
do o uso indevido dos meios de comuni-
cação e o abuso de poder econômico.”
Samara Castro, advogada com atua-
ção em direito digital e eleitoral, também
avalia que a Aije está bem calçada. “Ela
pode ser totalmente comprovada..Seja
pedindo que as plataformas confirmem
as informações alegadas na inicial, seja
pela própria confirmação de prova que a
inicial traz”, disse. Castro acha que a ação
de agora é superior à de 2018, movida
contra a chapa Bolsonaro-Mourão. “Na
época, você não conseguia fazer provas
porque nem mesmo o WhatsApp conse-
guia nos ajudar por conta da criptografia.”
A advogada observa que, ao denunciar
uma rede composta por 81 perfis, a ação
pode ter tramitação lenta, mas entende
que, desta vez, o próprio tribunal estará
sob escrutínio. “Seria uma desmoraliza-
ção para a Justiça Eleitoral não punir a
desinformação”, diz. Sua opinião está
baseada no fato de que o TSE criou reso-
luções específicas para atacar as menti-
ras nas redes sociais e fez todo um
trabalho baseado nessa diretriz. “É pre-
ciso que os candidatos de 2024 tenham
medo. E isso só é possível se houver pu-
nição, uma cassação ou inelegibilidade.”
De fato, o TSE se empenhou nesse com-
bate. Ainda durante a presidência do mi-
nistro Edson Fachin, o tribunal marcou
reuniões com todos os partidos represen-
tados no Congresso. Nesses encontros,
que contaram com a presença de presiden-
tes e vices das siglas e de seus advogados,
Fachin anunciava que o combate à desin-
formação era prioridade. Alexandre de
Moraes, então vice-presidente do tribunal,
alertava os dirigentes partidários de que as
ações judiciais que eventualmente vies-
sem a ser apresentadas precisavam estar
bem embasadas. Numa ocasião, segundo
uma fonte que testemunhou a reunião,
Moraes disse que os partidos deveriam
“contratar meia dúzia de moleques que
sabem mexer com computador” para co-
letar dados capazes de dar estofo às ações.
O tempo dirá se a Aije do PT chegou
lá. Mas a empreitada jurídica pode ga-
nhar um aliado importante. O grupo
Sleeping Giants, que atua contra desin-
formação e discurso de ódio nas redes
sociais, vai pedir para participar da ação
na condição de “amigo da corte”. Se o
pedido for aceito pelo TSE, o grupo pre-
tende apresentar monitoramentos deta-
lhados do debate nas redes sociais que
demonstram a capilaridade e o impacto
dos ataques ao sistema eleitoral, às ur-
nas e à integridade das eleições.
A principal preocupação do Sleeping
Giants, segundo consta na minuta da pe-
tição a ser apresentada ao TSE, é com o
impacto da “ampla rede de desinformação
que se profissionalizou em criar discursos
diretos e indiretos capazes de despertar a
animosidade da população com relação
à legitimidade dos resultados obtidos da
apuração das urnas eletrônicas”. O grupo
monitorou a disseminação do discurso de
ódio e de desinformação entre candidatos
a deputado federal. Concluiu que tais dis-
cursos se intensificaram no segundo turno
da campanha presidencial. Entre seus
expoentes, há bolsonaristas eleitos neste
ano, como Carla Zambelli, Eduardo Bol-
sonaro, Nikolas Ferreira, Gustavo Gayer,
Bia Kicis e Ricardo Salles.
Além da Aije, o PT planeja apresentar
outras duas ações. Quer uma investiga-
ção sobre “compra institucionalizada de
votos”, uma referência à inclusão de mais
de 500 mil novos beneficiários do Auxí-
lio Brasil em pleno período eleitoral,
bem como a distribuição de auxílio a
taxistas e caminhoneiros, além da aber-
tura de crédito excepcional pela Caixa.
A outra ação diz respeito aos ataques de
Bolsonaro contra as instituições demo-
cráticas e o sistema eleitoral, que aten-
tam contra o regime democrático.
Ainda que o “ecossistema de desin-
formação” tenha continuado ativo
na campanha, a milícia digital bol-
sonarista sentiu o golpe antes e durante
a campanha. Com a estratégia digital e
jurídica, o PT incomodou algumas das
vozes mais influentes do show do Jair.
“Stálin apagava pessoas de fotos e rees-
crevia a história. Hoje, tribunais apagam
posts”, postou Eduardo Bolsonaro no
Twitter, quando o TSE mandou as redes
sociais apagarem posts sobre o “kit gay”,
fake news que marcou a eleição de 2018.
“Essa campanha percesecutória [sic]
do PT contra influenciadores de direita
não tem como objetivo apenas nos cen-
surar, mas também produzir um am-
biente de medo, evitando a manifestação
das pessoas sobre o ex-presidiário. É as-
sim que seus ditadores amigos na Vene-
zuela e Nicarágua operam”, tuitou
Leandro Ruschel em 11 de outubro, en-
tre o primeiro o segundo turno. O co-
mentário foi apagado mais tarde.
Bernardo Küster, num tuíte do início
de setembro, deixou claro que a estratégia
do PT acertara na mosca e relacionou os
temas com os quais o bolsonarismo que-
ria trabalhar: “TSE faz de tudo para dimi-
nuir os feitos de Bolsonaro e evitar que
brasileiros associem Lula/PT à corrupção,
PCC, ditadura na Nicarágua, perseguição
aos cristãos, comunismo, aborto, inva-
são de terra, aumento de impostos e do
poder estatal, narcotráfico, desarmamen-
to e censura.” O post apareceu em sua
conta alternativa no Twitter porque a con-
ta principal estava – e assim continua –
bloqueada por decisão judicial.
Um tuiteiro contumaz da direita, Geo-
vane Moraes, que se identifica como pro-
fessor de direito penal, fez um tuíte no
início de setembro em que já mostrava o
resultado do trabalho jurídico dos petistas.
“Os parlamentares de direita preferiram
investir em # e mitar nas redes. O PT mon-
tou uma força-tarefa de advogados nunca
antes vista. Resultado: os candidatos da
direita estão desprotegidos juridicamen-
te e apanhando todo dia”, escreveu, em
tom de reclamação. “Pessoas como a Dra.
@flferronato cansaram de avisar”, con-
cluiu, referindo-se à advogada bolsonarista
Flavia Ferronato, uma spin doctor da rede.
Em um relatório sobre o mapeamento
do “ecossistema da desinformação” da
extrema direita, os pesquisadores Fernan-
da Sarkis e Marcus Nogueira comentam
a reação dos bolsonaristas ao trabalho ju-
rídico do PT. “Esse papel não passa des-
percebido pela rede bolsonarista, que
compreende que há duas formas de dis-
putar a ocupação de espaço de uma nar-
rativa, nas ‘hashtags’ e nos ‘tribunais’”.
A disputa nos tribunais explica por que
o ministro Alexandre de Moraes, na con-
dição de presidente do TSE, tornou-se alvo
predileto dos bolsonaristas. Em uma de
suas ações mais drásticas para combater as
fake news, Moraes fez uma resolução que
ampliava bastante os poderes do tribunal.
Com a resolução, editada em 20 de outu-
bro, os ministros passaram a poder barrar
a divulgação de conteúdo falso por conta
própria, sem a necessidade de serem acio-
nados por alguém que se sinta prejudica-
do. A Procuradoria-Geral da República
moveu uma ação contra a resolução por
considerá-la inconstitucional. O STF re-
jeitou-a por 9 votos a 2, mas não afastou
por completo as acusações de que Mo-
raes e o próprio tribunal estavam indo
longe demais, aproximando-se perigosa-
mente da censura.
Agora, com grupos bolsonaristas se
insurgindo contra o resultado das eleições
e adotando a pregação golpista, a resolu-
ção está sendo útil. Até o fechamento
desta reportagem, foram derrubados os
perfis de seis deputados – quatro no exer-
cício do mandato e dois recém-eleitos.
Não se sabe a fundamentação exata, pois
as decisões de Alexandre de Moraes estão
sob sigilo. Um dos eleitos, Gustavo Gayer,
ignorou a decisão, abriu uma nova conta
no dia 7 de novembro e, duas semanas
depois, quando já reunia mais de 250 mil
seguidores, voltou a ser banido.
Alexandre de Moraes não se intimida
com as críticas. No dia 14 de novembro,
em evento empresarial em Nova York,
fez um discurso claro sobre esse sistema
de desinformação nas redes sociais e não
se furtou a mencionar indiretamente as
acusações de censura. “Sob o falso man-
to de liberdade sem limites, o que se pre-
tende é corroer a democracia”, disse.
Também afirmou que “a democracia foi
atacada no Brasil, mas sobreviveu”. Para
ele, a atuação do Judiciário no processo
eleitoral representou “barreira para qual-
quer ataque à democracia e à liberdade”.
Tudo considerado, a professora Rose
Marie Santini, da Escola de Comunica-
ção da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, acha que acionar a via judicial
para combater a desinformação bolso-
narista foi “fundamental para dar um
limite”. Em 2018, não houve nada pare-
cido. Santini, que é também diretora do
NetLab, organização que colaborou com
o TSE nesta eleição, destaca que, agora,
havia duas máquinas para enfrentar: a do
Estado, sob o comando de Bolsonaro, e a
das fake news de sua milícia digital. “A do
Estado não tinha como enfrentar. Mas
conseguiram enfrentar a da desinforma-
ção. Acho que a oposição foi bem-suce-
dida, e a prova disso é que ganhou a
eleição”, diz ela, ao advertir: “Eles foram
derrotados, mas estão muito vivos.” J
PIAUI