POR MAURÍCIO THUSWOHL
"Não aceitaremos qualquer
resposta. Essa investiga-
ção não será encerrada a
toque de caixa e a qual-
quer custo”, afirma Moni-
ca Benicio, viúva de Marielle Franco. A in-
dignação é compartilhada não apenas por
familiares da vereadora do PSOL execu-
tada a tiros no centro do Rio de Janeiro,
mas também por amplos segmentos da so-
ciedade, que veem o caso inconcluso após
três anos e quatro meses de investigações.
Um surpreendente acordo de dela-
ção premiada firmado por Júlia Lotufo,
viúva do matador de aluguel e ex-capitão
da PM Adriano da Nóbrega, assassinado
no ano passado na Bahia, fez renascer a
versão de que Marielle e o motorista An-
derson Gomes foram mortos por ordem
de milicianos que atuam na Zona Oeste
do Rio. Colhida à revelia das promotoras
Simone Sibílio e Leticia Emile, a delação
fez com que as duas pedissem afastamen-
to da força-tarefa que comandavam des-
de o início do inquérito. A reviravolta pro-
vocou também o repúdio das famílias das
vítimas e de parlamentares que acompa-
nham o caso.
Em depoimento ao promotor Luís
Augusto de Andrade, intermediado
pelo secretário de Polícia Civil do Rio,
Alan Turnowski, a mulher revelou, se-
gundo reportagem publicada pela revis-
ta Veja, que milicianos da favela Gardê-
nia Azul teriam procurado Adriano com
a proposta de executar Marielle. Após a
recusa do então chefe do Escritório do
Crime, a milícia teria procurado o ex-po-
licial Ronnie Lessa, que já está preso e
identificado como o executor de Mariel-
le, para fazer o serviço.
Então chefe da milícia em Gardênia
Azul, o ex-vereador Cristiano Girão já ha-
via sido apontado como suspeito de ser o
mandante do crime logo no início das in-
vestigações, mas a possibilidade foi des-
cartada. Recentemente, no entanto, a for-
ça-tarefa comprovou que Lessa já havia
sido contratado por Girão para execu-
tar outro policial em 2014. As semelhan-
ças entre o modus operandi nos dois ca-
sos faz com que o Ministério Público vol-
te a apontar o ex-vereador como principal
suspeito, uma possibilidade inverossímil
para pessoas próximas a Marielle.
“A Marielle não tinha qualquer traba-
lho na Gardênia Azul”, garante o depu-
tado federal Marcelo Freixo, do PSB, pa-
drinho político da vereadora assassinada.
“Não tenho dúvidas de que ela morreu por
ser quem era, pelo que representava, por
sua força política. É muito importante sa-
bermos que grupo político mandou ma-
tar Marielle e por qual razão, para que is-
so não aconteça novamente. Se nós não
descobrirmos o mandante, não sabere-
mos que grupo é esse, capaz de matar co-
mo forma de fazer política.”
“A delação mais tumultua do que aju-
da”, avalia Monica Benicio, vereadora pelo
PSOL carioca desde o início do ano. “Uma
mulher que foi casada dez anos com um
dos maiores criminosos deste país de re-
pente diz que tem informações e se ofere-
ce para a delação. As promotoras que esta-
vam à frente do caso não viram consistên-
cia, por que então tornou-se uma pauta?”
A viúva também contesta a versão
apresentada por Lotufo. “Temos nova-
mente a história, lá no início refutada, de
que a Marielle afrontava a milícia ou ti-
nha disputa de terra em área de milícia.
Eu posso garantir, como companheira
da Marielle e alguém que acompanhou
seu mandato de perto, que ela não tinha
atuação na Zona Oeste”, diz Benicio.
“Eu desafio qualquer um a provar que
a Marielle tenha afrontado a milícia de
maneira que explicasse por que ela foi
executada como foi. Isso já foi descarta-
do na primeira fase das investigações.”
Única sobrevivente do atentado, a jor-
nalista Fernanda Chaves afirma que a de-
lação não trouxe novidades relevantes,
mas sim uma deturpação sobre as moti-
vações do crime. “Aí está uma disputa de
narrativa que mais tem relação com o pe-
ríodo pré-eleitoral. Voltaram a bater na
tecla fantasiosa de que Marielle incomo-
dava as milícias da Gardênia e por isso te-
ria sido assassinada. Isso nunca existiu. E
falo com toda a tranquilidade e legitimi-
dade de quem era uma das coordenado-
ras políticas do mandato.”
Chaves afirma que “disputar terri-
tório nunca foi política da Marielle” e
que a vereadora jamais pôs os pés em
Gardênia. “Combater milícias como ve-
readora é bem limitado, institucional-
mente falando. As pautas de frente de
Marielle eram outras”, afirma a ex-asses-
sora. “Claro que ela se posicionava con-
tra as milícias, o que qualquer pessoa sã,
correta, com o mínimo senso de justiça e
direito, faz. Mas atuar, ainda mais in loco,
não mesmo. Ela participava de debates
sobre a regulação fundiária da Zona Oes-
te. Mas isso era protocolar e abrangente,
com outros parlamentares.”
Herdeira dos negócios legais de Adria-
no – a incluir fazendas, automóveis e ca-
valos - e também sua auxiliar na gestão
dos negócios do submundo, como grila-
gem de terra, jogos clandestinos e assas-
sinatos, Lotufo está em prisão domiciliar
com tornozeleira eletrônica, mas obterá
a suspensão das restrições se sua delação
for oficialmente homologada pela Promo-
toria. Segundo ela, o marido teria ficado
indignado ao saber da morte de Marielle
e chegou a tirar satisfações com o grupo
de Gardênia Azul por considerar que exe-
cutar a parlamentar teria sido um erro.
Freixo diz, porém, que as relações en-
tre os dois matadores e os milicianos de
Gardênia devem ser relativizadas. “A pri-
meira coisa que temos que entender nes-
sa história do Escritório do Crime é que
se trata de um grupo de criminosos que
atuam no mesmo lugar, mas não necessa-
riamente juntos. Ronnie Lessa está pre-
so acusado de ser o atirador no caso da
Marielle, mas responde por outros homi-
cídios. O Adriano era também um mata-
dor de aluguel e foi expulso da PM por ter
relações com o jogo do bicho. Se conhe-
ciam, mas não há registro de terem tra-
balhado juntos. Ao contrário, o Adriano
era de um grupo e o Lessa de outro”.
As promotoras afastadas não estão fa-
lando com a imprensa, mas, extraoficial-
mente, se comenta no Ministério Público
que o pedido de afastamento vinha sendo
amadurecido há ao menos um ano, des-
de que a força-tarefa começou a inves-
tigar as relações de Lessa no tempo em
que ele, na época sargento da PM, foi ce-
dido à Polícia Civil. Desde então, Sibílio e
Emile vinham se queixando da crescente
interferência sobre seu trabalho, e o caso
da delação teria sido a gota d’água. Logo
após o afastamento das duas, veio à tona
que o delegado Maurício Demétrio, preso
desde o fim de junho, havia vazado dados
sigilosos do inquérito para um dos poli-
ciais civis investigados por envolvimen-
to na morte de Marielle.
“Nossa polícia é profundamente con-
taminada pela corrupção em todas as es-
feras. Como ter a garantia de que
as investigações estejam ocor-
rendo com integridade e im-
parcialidade?”, questiona Mo-
nica Benicio, para quem a saída
das promotoras é muito grave.
“Elas acompanham o caso des-
de o início com responsabilida-
de e seriedade e sempre man-
tiveram diálogo com a família,
coisa que o atual promotor não
faz. Isso dificulta a nossa cren-
ça de que as coisas estejam cami-
nhando de forma correta. O afas-
tamento das duas não faz senti-
do, a não ser que a gente enten-
da que houve, sim, interferência
sobre o trabalho. O procurador-
-geral Luciano Mattos tem que
explicar isso de forma séria, sem
respostas ensaboadas”.
A delação foi
colhida à revelia
das promotoras
que lideravam
a força-tarefa
A viúva de Marielle também critica os
vazamentos de informação. “Desde o iní-
cio nós, familiares, tentamos ter acesso
ao inquérito que sempre correu de forma
sigilosa. Mas parece que o sigilo só acon-
tece para a família, porque tudo é vaza-
do e a gente só sabe das coisas através da
mídia”, queixa-se Benício. “O acesso às
informações havia sido pactuado entre
a família e o Ministério Público. Nossos
advogados não conseguem ter acesso aos
autos de forma integral, porque sempre
se preservou o sigilo das investigações
sobre os autores intelectuais do crime.”
Chaves acredita que Sibilio e Emile
“mexeram num vespeiro” e questiona a
polícia quanto a uma possível interferên-
cia: “Elas fizeram um trabalho que teve
reflexo enorme no combate ao crime or-
ganizado no Rio. Ao mergulharem fun-
do nessa investigação, prenderam figu-
ras poderosas. Comprovaram a existên-
cia do Escritório do Crime, que até en-
tão era tido como lenda urbana. Ousa-
ram muito, correram muitos riscos, fo-
ram ameaçadas. E se mantiveram firmes
até há pouco. O que seriam essas interfe-
rências que as levaram agora a deixar o
caso? Isso precisa ser esclarecido em no-
me do Estado democrático de Direito”.
Anielle Franco descreve o sentimento da
família com a reviravolta nas investiga-
ções. “Quando vemos que estamos ainda
sem respostas e que novas perguntas sur-
gem pelo caminho, a sensação de frustra-
ção e desesperança aparece”, diz. O cla-
mor por justiça vai além da questão fami-
liar. “Acreditamos que a resolução desse
caso é necessária para que possamos se-
guir em frente com qualquer projeto de
democracia que tivermos para este país.
Temos fé principalmente na pressão que
a sociedade brasileira seguirá fa-
zendo para cobrar respostas.”
Trata-se de um duplo lu-
to, como irmã e cidadã. “É uma
dor muito difícil de descrever. É
muito revoltante ver o que está
acontecendo no País e pensar
que minha irmã representava
uma forma de fazer política
diferente, com transparência,
ética, lutando pelos direitos de
quem mais precisa”, afirma. “E é
ainda mais doloroso saber que ela
não está aqui para ver a filha e as
sobrinhas crescerem. O que me
faz seguir em frente é pensar nas
minhas filhas e na Luyara, pen-
sar que temos a missão de seguir
lutando por um mundo menos
injusto para que elas possam vi-
ver e ser quem elas quiserem.” •
CARTA CAPITAL
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