July 27, 2021

Churrasquinho de Borba Gato

 

Imagem 1627290842.jpg

 RAFAEL CARDOSO  

Esta é uma coluna incendiária, escrita no calor da hora. Ainda é quente a notícia do ataque ao monumento a Borba Gato, em São Paulo, hoje, 24 de julho de 2021. Um restinho de fumaça deve estar subindo da argamassa chamuscada, defumando a tarde de inverno em Santo Amaro. O palavreado pode dar a impressão que estou me divertindo com o ocorrido. Pois, não é que estou? Bem feito! Estátua feia de um sujeito que, reza a lenda, começou a vida como assassino e a terminou como juiz ordinário, aproveitando o intervalo para extrair minério e escravizar gente, é boa mesmo para ser depredada. Meu único lamento é que ela deve vir a ser restaurada, certamente a um custo elevado para os contribuintes de São Paulo.

Mas, que horror, senhor colunista! Logo o senhor, historiador da arte, professor doutor, defensor e amigo do patrimônio histórico, dando aval para o vandalismo! Ora, é justamente por conhecer um pouco a História da Arte que posso asseverar que o iconoclasmo esteve sempre conosco. Desde a Antiguidade até a presente onda de monumentos derrubados, passando pelo declínio e queda do império romano, pela expansão do Islã, por uma reforma protestante, duas ou três revoluções francesas e uma russa, guerras mundiais, guerra fria, talibãs e mais uma penca de ditaduras derrubadas. Melhor dizendo: os iconoclasmos, já que são vários e de variado teor. O terrorismo de um é a guerra santa do outro. O vandalismo de um é a manifestação política do outro. Ou você que me censura nunca vibrou com uma queda de estátua de Stalin ou Ceauşescu ou Saddam Hussein?

Para quem ama a arte da estatuária, esse monumento nunca devia é ter sido erguido. Nem tanto por sua temática, que provocou o ataque de hoje. No início da década de 1960, quando foi construído, poucos se opunham ao mito dos bandeirantes como fundadores e heróis. Não havia clima de opinião que impedisse erguer uma estátua a Borba Gato. Havia, contudo, excelentes razões para não construir um monumento tão tosco. Numa época em que os exemplos de Victor Brecheret, Celso Antônio, Alfredo Ceschiatti e Bruno Giorgi, entre outros, ainda estavam fresquinhos na memória coletiva, aquele boneco gigantesco, duro e mal-ajambrado, é um acinte à arte escultórica. No disputadíssimo páreo de monumento mais pavoroso do Brasil – categoria na qual ele concorre com pérolas como a estátua ao laçador em Porto Alegre, a do Padre Cícero em Juazeiro do Norte e o cabeção de Getúlio Vargas no Rio de Janeiro – o Borba Gato de Santo Amaro merece fácil ser distinguido como hors concours.

Vamos deixar de lado, portanto, as lágrimas de crocodilo pela perda de uma grande obra de arte. Que nunca foi. Até porque não se perdeu. Interessante reparar que os políticos que mais enchem a boca para condenar o vandalismo a monumentos costumam ser os mesmos que cortam verbas para a preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural. Derrubar estátua, não pode. Mas pode demitir funcionários, achatar orçamentos, fechar órgãos de fiscalização e relaxar regras de tombamento, fazendo com que o patrimônio seja arruinado ou incendiado por negligência. Isso se chama lei do mercado e responsabilidade fiscal. Nem vem que não tem, senhores bolsodórias, sabemos o que vocês fizeram no verão passado.

Quanto aos defensores da propriedade privada, da moral e dos bons costumes, os que temem que o próximo alvo seja seu clube ou sua igreja, queria saber onde vossas senhorias guardam sua ira santa quando o alvo é um terreiro depredado. Sem esquecer das viúvas do patrimônio cultural, aquelas que se indignam quando o monumento às Bandeiras é aspergido com tinta vermelha, mas não dão um pio quando o monumento a Zumbi dos Palmares amanhece com uma suástica na testa. Num país onde monumentos são depredados todos os dias, mesmo que seja apenas para roubar uma placa de bronze, o clamor por ordem e justiça é curiosamente seletivo.

Precisamos rediscutir com urgência o processo de monumentalização. Para quem são erguidos os monumentos? Em nome de quem? Com dinheiro de quem? Para qual finalidade e com que prioridade? Foi consultada a comunidade? Foram ouvidos especialistas? Houve um mínimo de abertura para o debate artístico ou histórico? Quase sempre no Brasil, a resposta para essas perguntas é que foram feitos para poucos, malversando o dinheiro de muitos, geralmente com intuito eleitoreiro e sem transparência alguma no processo decisório. Está aí a proliferação de bonecos fundidos em bronze que virou praga nas cidades brasileiras. Só na orla da Zona Sul do Rio de Janeiro, temos Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Tom Jobim e Zózimo Barroso do Amaral imortalizados em caricaturas tridimensionais que não servem outra função senão figurarem de selfie... e serem depredadas.

Como exemplo contrário, vale citar um episódio tirado das disputas políticas e culturais do século retrasado. Em 1866, em plena efervescência da Guerra do Paraguai, um dos mais destacados escultores da época, Francisco Manuel Chaves Pinheiro, concebeu a Estátua equestre do imperador na batalha de Uruguaiana, obra de tamanho monumental que participou da Exposição Universal de 1867, em Paris (e cuja versão em gesso está preservada no Museu Histórico Nacional). Após o final da Guerra, em 1870, foi feita uma subscrição pública para custear a transformação dessa estátua em monumento a D. Pedro II. A campanha foi insuflada por notáveis do comércio, da política e da imprensa, gente que se atropelava para bajular o imperador. A surpresa veio quando o homenageado pediu que se revertesse o dinheiro arrecadado para a construção de escolas públicas. Assim foi feito, e no mesmo ano de 1870 o imperador lançou as pedras fundamentais das primeiras escolas públicas do Rio de Janeiro.

Essa história, um dos testemunhos mais eloquentes do espírito público do período imperial, foi resgatada por Paulo Knauss em artigo publicado em 2005 nos Anais do Museu Histórico Nacional. Será demais pedir aos políticos, aos jornalistas e aos comentaristas de plantão nas redes sociais que leiam artigos sobre nossa história? Que estudem o iconoclasmo e busquem compreender o contexto e os debates em torno da questão antes de sentenciarem que isso ou aquilo é vandalismo ou barbárie ou terrorismo? É crime atear fogo a um objeto na via pública? Então que a polícia investigue, o Ministério Público emita parecer e os juizes julguem. Mas, não vamos erigir subitamente a estátua do Borba Gato em emblema da civilização e da arte. É o cúmulo do ridículo.

Estátuas não são intocáveis e invioláveis, simplesmente pelo fato de terem virado monumento. (Aliás, a arte não é sagrada. A quem serve esse mito? Certamente não aos artistas.) Ao contrário, justamente por ocuparem o espaço público, os monumentos são fruto de um pacto social e, portanto, sujeitos às mudanças de maré política. São propriedade coletiva, e a coletividade deve decidir o destino que se dará a eles. No Brasil, onde o que é de todos costuma ser de ninguém, esse destino é o abandono, no mais das vezes. Uma sociedade que se preza tem a responsabilidade de incluir também as vozes marginalizadas na discussão sobre os bens coletivos. Caso contrário, aos que se sentem excluídos, restará a violência.

Querem saber mesmo o que eu, como estudioso do tema, gostaria de ver agora? Que a prefeitura de São Paulo iniciasse um debate amplo a partir da estátua de Borba Gato. Que se ouvisse a população de Santo Amaro, desde as associações de comércio até os que cuidam dos moradores de rua. Afinal, a comunidade é o melhor guardião do patrimônio, como já ensinava Aloísio Magalhães. Que fossem consultados especialistas em arte e patrimônio, para propor alternativas e encaminhamentos. Restauração? Remoção? Ressignificar a obra por meio de intervenções? Que se promovesse uma campanha de educação pública, esclarecendo a história e o sentido desse e de outros monumentos. O que o povo precisa é de educação, não de símbolos de opressão impostos em nome da arte, do patriotismo ou mesmo da gratidão. Quem deu esse recado, há 150 anos, foi aquele comunista do D. Pedro II. Talvez esteja mesmo na hora de erguer mais um monumento a ele – de preferência na forma de mais verbas para as escolas públicas.

revista PESSOA 

 

July 25, 2021

CONTA DE PADARIA

 



ALÉM DE INCORPORAR O HISTRIONISMO BOLSONARISTA,

GUEDES É ACUSADO DE MANIPULAR DADOS

OFICIAIS PARA MAQUIAR A REALIDADE ECONÔMICA


p or C A R L OS DRUMMON D 

Paulo Guedes virou piada no
mercado e na política. As
previsões tanto otimistas
quanto infundadas lhe va-
leram o apelido de “minis-
tro da semana que vem”,
sempre a projetar um futu-
ro radiante nunca alcança-
do. À predisposição de vender miragem o
Posto Ipiranga agregou, como se diz nas
melhores palestras de autoajuda, um lin-
guajar cada vez mais agressivo e histri-
ônico, ao gosto dos devotos soldados de
Jair Bolsonaro. Em um curto intervalo
de tempo, Guedes repetiu a versão de que
a Covid-19 foi inventada em laboratório
na China, desdenhou da vacina produzi-
da pelo mais importante parceiro comer-
cial do País, reclamou da longevidade dos
brasileiros, segundo ele um estorvo para
as contas públicas, e espargiu o que pro-
vavelmente é uma fake news a respeito do
ingresso imerecido do filho do porteiro
na universidade, modo canhestro de cri-
ticar o Fies, programa de financiamento
estudantil. De modo geral, o ministro foi

reduzido ao papel de animador de audi-
tório, enquanto o “Centrão” define os ru-
mos da economia, mas seu poder de des-
truição não pode ser desprezado. Acumu-
lam-se evidências de que Guedes e sua
equipe têm manipulado dados oficiais
para suavizar o péssimo trabalho. Segun-
do especialistas, há razões de sobra para
se desconfiar das estatísticas de geração
de emprego, arrecadação e peso da car-
ga tributária, entre outros indicadores.

AS MUDANÇAS
DE METODOLOGIA
NO REGISTRO
DE CRIAÇÃO DE
EMPREGOS E AS
CONTAS SOBRE
A ARRECADAÇÃO
NÃO CONVENCEM


“O vigor e a resiliência da economia
brasileira surpreenderam novamente.

Temos que admitir que a economia, do
ponto de vista do mercado formal, está se
recuperando em altíssima velocidade. O
resultado do Caged, recorde para o mês,
mostra que o Brasil está no caminho cer-
to da recuperação da atividade econômi-
ca”, declarou a propósito da abertura de
401.639 vagas com carteira assinada em
fevereiro, segundo o Cadastro Geral de
Empregados e Desempregados. Em mar-
ço, com 184 mil novos empregos formais,
Guedes comemorou eufórico: “A econo-
mia está de pé novamente, o último setor
que estava no chão se levantou”.


A realidade é, entretanto, muito di-
ferente. A economia opera 30% abai-
xo do patamar de sete anos atrás, des-
taca o economista Paulo Gala, profes-
sor da Fundação Getulio Vargas. Quan-
to ao mercado de trabalho, importantes
alterações em indicadores geraram ba-
ses frágeis para soerguer o otimismo do
ministro. Segundo o economista Mar-
celo Manzano, professor e pesquisador
do Centro de Estudos Sindicais e Econo-
mia do Trabalho da Unicamp, “Guedes

tem aproveitado os números positivos de
aparente crescimento do emprego for-
mal medido pelo Caged para fazer pro-
paganda da política econômica do gover-
no. Mas se trata de propaganda engano-
sa e o ministro, se não sabe disso, teria
a obrigação de se informar e considerar
que os dados do Caged para o contexto da
pandemia têm pouca serventia, na ver-
dade mais atrapalham do que ajudam a
compreender o que de fato ocorre no nos-
so mercado de trabalho”.


A propaganda do ministro sobre o au-
mento do número de empregos formais
como evidência do êxito da sua política
econômica seria enganosa por dois mo-
tivos. Em primeiro lugar, explica Man-
zano, os desligamentos de trabalhadores
formais não têm sido devidamente infor-
mados ao Caged, principalmente porque
muitas empresas de pequeno porte fali-
ram e simplesmente deixaram de atua-
lizar o sistema oficial (eSocial).



Além disso, diz o acadêmico, co-
mo o governo alterou a meto-
dologia da pesquisa em janeiro
de 2020, dois meses antes da
pandemia, e passou a conside-
rar outras modalidades de em-
prego formal que não eram computadas
antes, a exemplo de trabalhadores com
contrato por tempo determinado e os in-
termitentes, quando a economia voltou
lentamente a se recuperar do tombo do
segundo trimestre, foram justamente es-
sas modalidades de contrato de trabalho
que pareciam mais adequadas às empre-
sas. Logo, na medida em que informavam
ao Caged essas novas contratações e o nú-
mero mensal era comparado com aque-
le do mesmo mês do ano anterior, 2019,
época em que não se contabilizavam es-
ses tipos de empregos, o diferencial dos

números parecia indicar um crescimen-
to extraordinário do emprego formal que,
na realidade, é em grande medida ape-
nas um efeito estatístico. “Somados, es-
ses dois problemas fizeram os resultados
do Caged descolarem da dinâmica con-
creta do mercado de trabalho, razão pe-
la qual é recomendável muita parcimônia
na utilização de seus dados. Entretanto,
a parcimônia não é o forte do ministro”,
dispara Manzano.

O MINISTRO
INVENTOU UM
NOVO CONCEITO
PARA ESTIMAR A
CARGA TRIBUTÁRIA
NO BRASIL
TRAPALHADA OU ENGANAÇÃO?

Dois dias depois da comemoração de
Guedes, o IBGE informou que o total de
desempregados atingiu 14,4 milhões no
acumulado de dezembro a fevereiro, re-
corde para o mês na série histórica inicia-
da em 2012. Os recortes, metodologias e
períodos são distintos daqueles do Caged,
mas a escalada ininterrupta do desempre-
go torna ainda mais chocante o malaba-
rismo oficial para superdimensionar o
significado da criação de vagas formais.


A maquiagem inclui escolhas
que superestimam o desem-
penho da arrecadação tri-
butária federal, um impor-
tante indicador de dinamis-
mo da economia. “O gover-
no comemorou a arrecadação de impos-
tos de março, de cerca de 134 bilhões de
reais, o que, na comparação com mar-
ço de um ano atrás, é uma alta de qua-
se 26%. Como a arrecadação tem rela-
ção com a atividade econômica, o gover-
no atribui esse resultado à melhora da
economia, ao menos em parte”, destaca
o economista-chefe do Banco Fator, José
Francisco Lima Gonçalves. Para mostrar
a relação, aponta Gonçalves, o governo
deflacionou o valor pelo IPCA de mar-
ço a março, o que resulta em alta real de
18,5%. “Ocorre, no entanto, que a arreca-
dação de impostos envolve um conjunto
de preços bastante diferente do conjunto
de preços ao consumidor que o IPCA me-
de”, ressalta o economista. O Índice de
Preços por Atacado, ao contrário, é mais
próximo de relações empresariais, por-
tanto, de toda parte de impostos que en-
volvem empresas, tanto que é usado em
contratos, exceto naqueles relacionados
ao trabalho. “Todo mundo sabe”, subli-
nha o especialista, “que no ano passado
houve um choque de câmbio que desvalo-
rizou a nossa moeda em 26%. Isso, com a
alta de preços das commodities, fez o IPA
subir 42%. Qual foi, portanto, a variação
da arrecadação que se deveu à atividade
econômica e a que se deveu meramente à
inflação, como quer que ela seja medida?

É muito difícil dizer. Entretanto, se vo-
cê pegar a mesma arrecadação e defla-
cionar não pelo IPCA, mas pelo IPA, te-
rá tido uma queda real da arrecadação de
mais de 10%, ou seja, é difícil comemorar
uma coisa que não existe.”


Neste caso não houve, é importante
acrescentar, uma manipulação explícita.
“Não dá para dizer que é errado, sempre
usaram o IPCA, mas é para isso que exis-
tem economistas e imprensa. Sempre foi
usado. Desta vez, o IPCA foi, no entanto,
um quinto do IPA, e um quarto do câmbio.
Nessa situação, manter o deflator IPCA
significa considerar como aumento real
da riqueza aquilo que é, de fato, apenas
um inchaço de preços”, resume Gonçalves.


Uma das manipulações mais toscas e
que mais geraram discussão e perplexi-
dade ocorreu na apresentação feita por
Guedes em 22 de junho do ano passado,
que continha, no slide 8, uma distorção
de dados de carga tributária que impe-
liu, em um passe de mágica, o País da 24ª
colocação para a 8ª posição na compara-
ção com os integrantes da OCDE. Segun-
do o economista David Deccache, asses-
sor técnico da Câmara dos Deputados,
em sua exposição Guedes inventou um
novo conceito de carga tributária, ao so-
mar o déficit fiscal com a carga. “Isso é
terraplanismo econômico. Pior, o novo
conceito só vale para o Brasil, no cote-
jamento feito. Esse tipo de coisa deveria
ser crime de responsabilidade”, dispara.


Quando se utiliza o dado correto in-
formado pela própria OCDE, o País si-
tua-se abaixo da média do grupo, por-
tanto, dos países desenvolvidos, e bem
longe de ter uma das cargas tributárias
mais altas do mundo. “Trata-se de um er-
ro técnico grosseiro e, provavelmente, in-
tencional. Digo isso porque, de um lado,
eles inventaram um conceito, no míni-
mo, curioso para a definição de carga tri-
butária, somaram o déficit fiscal à car-
ga tributária do Brasil e, de outro, aplica-
ram a “inovação metodológica” apenas à
economia brasileira em uma comparação
com os países da OCDE. Se utilizassem
o dado correto, descobririam que há 23
países da OCDE com carga tributária su-
perior ao Brasil”, destrincha Deccache. A

intenção do erro, diz, seria reforçar a tese
de que, supostamente, não haveria espa-
ço para aumento de impostos, ignoran-
do que, nas mesmas comparações com a
OCDE, o Brasil é o 34º, último do ranking,
em termos de tributação sobre renda, lu-
cro e ganho de capital. Com isso preten-
diam defender que a única saída para o
ajuste fiscal seriam mais cortes de gastos.

 

Além de se prestarem ao em-
belezamento dos resultados e
ao discurso da austeridade, os
malabarismos econômicos são
usados para forçar a aprova-
ção de reformas impopulares,
mostra reportagem desta revista publica-
da em 2019 sobre a falsificação completa
dos cálculos da reforma da Previdência,
denúncia que o governo jamais demons-
trou estar errada. Uma análise técni-
ca do Centro de Estudos de Conjuntura
e Política Econômica do Instituto de
Economia da Unicamp apontou que a
proposta governamental era “um edifí-
cio de planilhas sem consistência, cons-
truído com dados manipulados para atin-
gir os objetivos austericidas e privatistas
do Ministério da Economia”.

Nas últimas semanas, diante da per-
da de poder para o Centrão no comando
das privatizações, do fiasco do ministé-
rio na definição do Orçamento e do declí-
nio lento, mas persistente, da aprovação
de Bolsonaro, Guedes intensificou o alar-
de quanto ao êxito imaginário da políti-
ca econômica. Além disso, acusou a Chi-
na de ter inventado o vírus da Covid-19 e
disse que a vacina do país, da qual o Brasil

depende, é “menos efetiva” que aquela
dos EUA. Ao atacar o maior parceiro co-
mercial do País e fornecedor de 80% das
vacinas em aplicação, o ministro talvez
tenha tomado atitude inédita no mundo,
entre ministros da área. Parece assumir,
em alguma medida, um papel antes de-
sempenhado pelo ex-ministro das Rela-
ções Exteriores Ernesto Araújo.


O Paulo Guedes que parece em fim de
linha não se descuida, entretanto, do pon-
to da política econômica, que é o seu prin-
cipal elo com o presidente da Câmara dos
Deputados, Arthur Lira, e o sistema finan-
ceiro: manter o joelho no pescoço dos fun-
cionários públicos e travar os gastos so-
ciais do governo, ou seja, defender de mo-
do implacável a política fiscal aberrante
do teto de gastos petrificado na Constitui-
ção por 20 anos, ainda que tanto o minis-
tro quanto o deputado tenham sido obri-
gados a aceitar, nos orçamentos de 2020 e
2021, emendas da oposição para garantir
recursos mínimos à saúde e à sobrevivên-
cia dos desvalidos, enquanto o teto é man-
tido na condição de apêndice econômico.



Dias antes de atacar a China,
Guedes cometeu sua enésima
manifestação de forte precon-
ceito social ao criticar, em reu-
nião no Ministério da Saúde, o
Fies, importante programa de
financiamento de bolsas universitárias,
acusando-o de aceitar candidatos ineptos
como o filho do porteiro do prédio onde
reside, declaração seguida de forte reação
negativa nas redes sociais e na mídia con-
vencional. É mais uma incontinência na
longa lista de manifestações de desprezo
aos mais pobres, que inclui críticas a em-
pregadas domésticas que supostamente
aproveitaram momentos de dólar barato
para viajar ao exterior e a professores e ou-
tros funcionários públicos, para quem te-
ria reservado granadas a serem colocadas
nos respectivos bolsos.


O titular da pasta ocupada no passado
por economistas do porte de Celso Fur-
tado e Roberto Campos parece viver nos
últimos tempos picos mais frequentes de
megalomania. Em entrevista ao jornal
O Globo, elogiou suas supostas qualida-
des de “velocidade de resposta à crise”,
“senso de responsabilidade e compro-
misso com os brasileiros”, e disse que
pegou o País com 12 milhões de desem-
pregados e o entregará com 10 milhões,
em mais uma promessa de concretiza-
ção improvável, por implicar redução,
em um ano e meio, do atual contingente
de 14,4 milhões de desocupados em 4,4
milhões. Uma missão dificílima, para di-
zer o mínimo, sob a sua política de auste-
ridade fiscal e compressão de renda que
deprime o poder de compra e os investi-
mentos geradores de empregos. “Sem fal-
sa modéstia, sei que fui crucial em mo-
mentos decisivos”, resumiu o ministro,
que só aceitou pagar o auxílio emergen-
cial por ter sido obrigado por uma deci-
são do Congresso. Só faltou encarnar o 

astrólogo Walter Mercado e proclamar
o bordão la garantia soy yo.

O ministro aproveitou a oportuni-
dade para lançar outra ideia esdrúxu-
la, a criação de um voucher ou vale que
permitiria aos pobres optar por uma fi-
la no SUS ou internar-se em um hospi-
tal como o Albert Einstein. O irrealis-
mo fica evidente quando se sabe que
hospitais do mesmo nível chegam a co-
brar 3 mil reais por 24 horas de oxigênio.
Segundo disse o ex-ministro da Saúde
Luiz Henrique Mandetta, em depoimen-
to à CPI da Covid-19, Guedes é “desones-
to intelectualmente, um homem peque-
no para o lugar onde está”. Mandetta re-
clamava da cobrança pública feita pelo
ex-colega de não ter utilizado 5 bilhões
de reais disponibilizados para a com-
pra de vacinas, pois, segundo afirmou,
no momento da liberação não havia es-
toques à venda no mundo.

O Posto Ipiranga busca disfarçar o fa-
to de que a cada dia cede nacos enormes
de poder na área econômica para o Cen-
trão, atual condutor das privatizações,
e para o STF, que ordenou a realização
do Censo do IBGE, descartado no Orça-
mento que o ministro havia encaminha-
do ao Congresso segundo os limites do
inviável teto de gastos, que ele defende de
modo intransigente. Alegou ter feito pro-
visão para a pesquisa por saber da impor-
tância das políticas públicas, declaração
incompatível com suas decisões no car-
go, quase sempre com graves prejuízos
para as políticas que diz defender.

Procurado por esta revista, o
Ministério da Economia afir-
mou, quanto à comparação
de dados do Caged e do Novo
Caged feita por Paulo Guedes,
que o trabalhador intermiten-
te constava nos números do Caged anti-
go, contestou a existência de números
inflados no Novo Caged, visto que a in-
clusão do trabalhador temporário pas-
sou de opcional a obrigatória, perfazen-
do 4,5% das admissões e 4,2% das demis-
sões no Novo Caged, com série histórica
iniciada em janeiro de 2020 e com o mes-
mo universo do antigo, acrescido dos tra-
balhadores temporários. No que se refe-
re à correlação feita por Guedes entre o
aumento da arrecadação em março e o
suposto vigor da economia apesar de o
IPCA, utilizado como deflator, ter sido
um quinto do IPA, o ministério discor-
reu sobre a forma de deflacionar, se isso
inviabiliza a comparação dos indicadores
em valores constantes e mencionou que
grande parte do deflator do PIB se dá pe-
lo deflator do consumo das famílias, mas
não respondeu à questão apresentada. A
respeito da criação, pelo ministro, de um
novo conceito de carga tributária, ao so-
mar o déficit fiscal com a carga e assim
impulsionar o Brasil à posição falsa de oi-
tava maior carga tributária na compara-
ção com países da OCDE, não houve res-
posta até o fechamento desta edição.


July 24, 2021

Delação de fachada?

 


POR MAURÍCIO THUSWOHL

"Não aceitaremos qualquer
resposta. Essa investiga-
ção não será encerrada a
toque de caixa e a qual-
quer custo”, afirma Moni-
ca Benicio, viúva de Marielle Franco. A in-
dignação é compartilhada não apenas por
familiares da vereadora do PSOL execu-
tada a tiros no centro do Rio de Janeiro,
mas também por amplos segmentos da so-
ciedade, que veem o caso inconcluso após
três anos e quatro meses de investigações.


Um surpreendente acordo de dela-
ção premiada firmado por Júlia Lotufo,
viúva do matador de aluguel e ex-capitão
da PM Adriano da Nóbrega, assassinado
no ano passado na Bahia, fez renascer a
versão de que Marielle e o motorista An-
derson Gomes foram mortos por ordem
de milicianos que atuam na Zona Oeste
do Rio. Colhida à revelia das promotoras
Simone Sibílio e Leticia Emile, a delação
fez com que as duas pedissem afastamen-
to da força-tarefa que comandavam des-
de o início do inquérito. A reviravolta pro-
vocou também o repúdio das famílias das
vítimas e de parlamentares que acompa-
nham o caso.


Em depoimento ao promotor Luís
Augusto de Andrade, intermediado

pelo secretário de Polícia Civil do Rio,
Alan Turnowski, a mulher revelou, se-
gundo reportagem publicada pela revis-
ta Veja, que milicianos da favela Gardê-
nia Azul teriam procurado Adriano com
a proposta de executar Marielle. Após a
recusa do então chefe do Escritório do
Crime, a milícia teria procurado o ex-po-
licial Ronnie Lessa, que já está preso e
identificado como o executor de Mariel-
le, para fazer o serviço.


 

Então chefe da milícia em Gardênia
Azul, o ex-vereador Cristiano Girão já ha-
via sido apontado como suspeito de ser o
mandante do crime logo no início das in-
vestigações, mas a possibilidade foi des-
cartada. Recentemente, no entanto, a for-
ça-tarefa comprovou que Lessa já havia 

sido contratado por Girão para execu-
tar outro policial em 2014. As semelhan-
ças entre o modus operandi nos dois ca-
sos faz com que o Ministério Público vol-
te a apontar o ex-vereador como principal
suspeito, uma possibilidade inverossímil
para pessoas próximas a Marielle.


“A Marielle não tinha qualquer traba-
lho na Gardênia Azul”, garante o depu-
tado federal Marcelo Freixo, do PSB, pa-
drinho político da vereadora assassinada.
“Não tenho dúvidas de que ela morreu por
ser quem era, pelo que representava, por
sua força política. É muito importante sa-
bermos que grupo político mandou ma-
tar Marielle e por qual razão, para que is-
so não aconteça novamente. Se nós não
descobrirmos o mandante, não sabere-
mos que grupo é esse, capaz de matar co-
mo forma de fazer política.”


“A delação mais tumultua do que aju-
da”, avalia Monica Benicio, vereadora pelo
PSOL carioca desde o início do ano. “Uma
mulher que foi casada dez anos com um

dos maiores criminosos deste país de re-
pente diz que tem informações e se ofere-
ce para a delação. As promotoras que esta-
vam à frente do caso não viram consistên-
cia, por que então tornou-se uma pauta?”


A viúva também contesta a versão
apresentada por Lotufo. “Temos nova-
mente a história, lá no início refutada, de
que a Marielle afrontava a milícia ou ti-
nha disputa de terra em área de milícia.
Eu posso garantir, como companheira
da Marielle e alguém que acompanhou
seu mandato de perto, que ela não tinha
atuação na Zona Oeste”, diz Benicio.


“Eu desafio qualquer um a provar que
a Marielle tenha afrontado a milícia de
maneira que explicasse por que ela foi
executada como foi. Isso já foi descarta-
do na primeira fase das investigações.”


 

Única sobrevivente do atentado, a jor-
nalista Fernanda Chaves afirma que a de-
lação não trouxe novidades relevantes,
mas sim uma deturpação sobre as moti-
vações do crime. “Aí está uma disputa de
narrativa que mais tem relação com o pe-
ríodo pré-eleitoral. Voltaram a bater na
tecla fantasiosa de que Marielle incomo-
dava as milícias da Gardênia e por isso te-
ria sido assassinada. Isso nunca existiu. E 

falo com toda a tranquilidade e legitimi-
dade de quem era uma das coordenado-
ras políticas do mandato.”


Chaves afirma que “disputar terri-
tório nunca foi política da Marielle” e
que a vereadora jamais pôs os pés em
Gardênia. “Combater milícias como ve-
readora é bem limitado, institucional-
mente falando. As pautas de frente de
Marielle eram outras”, afirma a ex-asses-
sora. “Claro que ela se posicionava con-
tra as milícias, o que qualquer pessoa sã,
correta, com o mínimo senso de justiça e
direito, faz. Mas atuar, ainda mais in loco,
não mesmo. Ela participava de debates
sobre a regulação fundiária da Zona Oes-
te. Mas isso era protocolar e abrangente,
com outros parlamentares.”


Herdeira dos negócios legais de Adria-
no – a incluir fazendas, automóveis e ca-
valos - e também sua auxiliar na gestão
dos negócios do submundo, como grila-
gem de terra, jogos clandestinos e assas-
sinatos, Lotufo está em prisão domiciliar
com tornozeleira eletrônica, mas obterá
a suspensão das restrições se sua delação
for oficialmente homologada pela Promo-
toria. Segundo ela, o marido teria ficado
indignado ao saber da morte de Marielle
e chegou a tirar satisfações com o grupo
de Gardênia Azul por considerar que exe-
cutar a parlamentar teria sido um erro.
Freixo diz, porém, que as relações en-
tre os dois matadores e os milicianos de
Gardênia devem ser relativizadas. “A pri-
meira coisa que temos que entender nes-
sa história do Escritório do Crime é que
se trata de um grupo de criminosos que
atuam no mesmo lugar, mas não necessa-
riamente juntos. Ronnie Lessa está pre-
so acusado de ser o atirador no caso da 

Marielle, mas responde por outros homi-
cídios. O Adriano era também um mata-
dor de aluguel e foi expulso da PM por ter
relações com o jogo do bicho. Se conhe-
ciam, mas não há registro de terem tra-
balhado juntos. Ao contrário, o Adriano
era de um grupo e o Lessa de outro”.


As promotoras afastadas não estão fa-
lando com a imprensa, mas, extraoficial-
mente, se comenta no Ministério Público
que o pedido de afastamento vinha sendo
amadurecido há ao menos um ano, des-
de que a força-tarefa começou a inves-
tigar as relações de Lessa no tempo em
que ele, na época sargento da PM, foi ce-
dido à Polícia Civil. Desde então, Sibílio e
Emile vinham se queixando da crescente
interferência sobre seu trabalho, e o caso
da delação teria sido a gota d’água. Logo
após o afastamento das duas, veio à tona
que o delegado Maurício Demétrio, preso
desde o fim de junho, havia vazado dados
sigilosos do inquérito para um dos poli-
ciais civis investigados por envolvimen-
to na morte de Marielle.


“Nossa polícia é profundamente con-
taminada pela corrupção em todas as es-
feras. Como ter a garantia de que
as investigações estejam ocor-
rendo com integridade e im-
parcialidade?”, questiona Mo-
nica Benicio, para quem a saída
das promotoras é muito grave.
“Elas acompanham o caso des-
de o início com responsabilida-
de e seriedade e sempre man-
tiveram diálogo com a família,
coisa que o atual promotor não
faz. Isso dificulta a nossa cren-
ça de que as coisas estejam cami-
nhando de forma correta. O afas-
tamento das duas não faz senti-
do, a não ser que a gente enten-
da que houve, sim, interferência
sobre o trabalho. O procurador-
-geral Luciano Mattos tem que
explicar isso de forma séria, sem
respostas ensaboadas”.


A delação foi
colhida à revelia
das promotoras
que lideravam
a força-tarefa


A viúva de Marielle também critica os
vazamentos de informação. “Desde o iní-
cio nós, familiares, tentamos ter acesso
ao inquérito que sempre correu de forma
sigilosa. Mas parece que o sigilo só acon-
tece para a família, porque tudo é vaza-
do e a gente só sabe das coisas através da
mídia”, queixa-se Benício. “O acesso às
informações havia sido pactuado entre
a família e o Ministério Público. Nossos
advogados não conseguem ter acesso aos
autos de forma integral, porque sempre
se preservou o sigilo das investigações
sobre os autores intelectuais do crime.”


Chaves acredita que Sibilio e Emile
“mexeram num vespeiro” e questiona a
polícia quanto a uma possível interferên-
cia: “Elas fizeram um trabalho que teve
reflexo enorme no combate ao crime or-
ganizado no Rio. Ao mergulharem fun-
do nessa investigação, prenderam figu-
ras poderosas. Comprovaram a existên-
cia do Escritório do Crime, que até en-
tão era tido como lenda urbana. Ousa-
ram muito, correram muitos riscos, fo-
ram ameaçadas. E se mantiveram firmes
até há pouco. O que seriam essas interfe-
rências que as levaram agora a deixar o
caso? Isso precisa ser esclarecido em no-
me do Estado democrático de Direito”.


 

Anielle Franco descreve o sentimento da
família com a reviravolta nas investiga-
ções. “Quando vemos que estamos ainda
sem respostas e que novas perguntas sur-
gem pelo caminho, a sensação de frustra-
ção e desesperança aparece”, diz. O cla-
mor por justiça vai além da questão fami-
liar. “Acreditamos que a resolução desse
caso é necessária para que possamos se-
guir em frente com qualquer projeto de
democracia que tivermos para este país.
Temos fé principalmente na pressão que
a sociedade brasileira seguirá fa-
zendo para cobrar respostas.”
 

Trata-se de um duplo lu-

to, como irmã e cidadã. “É uma
dor muito difícil de descrever. É
muito revoltante ver o que está
acontecendo no País e pensar
que minha irmã representava
uma forma de fazer política
diferente, com transparência,
ética, lutando pelos direitos de
quem mais precisa”, afirma. “E é
ainda mais doloroso saber que ela
não está aqui para ver a filha e as
sobrinhas crescerem. O que me
faz seguir em frente é pensar nas
minhas filhas e na Luyara, pen-
sar que temos a missão de seguir
lutando por um mundo menos
injusto para que elas possam vi-
ver e ser quem elas quiserem.” • 

CARTA CAPITAL  

Centrão: Junto e Misturado

 

 

 


POR ANDRÉ BARROCAL

Quando o deputado Ricar-
do Barros, do PP, líder do
governo Bolsonaro, co-
mandava o Ministério da
Saúde, de 2016 a 2018, a
pasta fechou seis contra-
tos emergenciais, sem licitação, inco-
muns por ali. Quatro eram de transpor-
te de insumos, remédios, vacinas e dois,
de armazenagem. Todos seguiam a mes-
ma lógica: valiam por alguns meses e
eram renovados perto do vencimento. Os
de transporte foram assinados em de-
zembro de 2016 (30 milhões de reais), fe-
vereiro de 2017 (60 milhões), junho de
2017 (80 milhões) e dezembro de 2017
(80 milhões). Os de armazenagem, em
abril e em outubro de 2017, no valor de 1,7
milhão cada. Tudo somado, 254 milhões.
Depois de Barros passar o bastão de mi-
nistro a um colega de PP, Gilberto Occhi,
a pasta renovaria mais uma vez o acordo
de transporte (80 milhões de reais) e o
de armazenagem (1,7 milhão).


A firma contratada nos oito acordos
era a VTC Operador Logístico. Pertence a
um empresário do setor turístico, Carlos
Alberto de Sá, dono da Voetur e ex-presi-
dente da seção brasiliense da Associação
Brasileira de Viagens. Sá não tem do que
reclamar da gestão de Barros na Saúde,
época em que faria outro belíssimo ne-
gócio, de 500 milhões de reais em cinco
anos, hoje alvo da CPI da Covid, como se
verá. Recorde-se como o deputado che-
gou àquele cargo: quando da cassação de
Dilma Rousseff, o presidente do PP, sena-
dor Ciro Nogueira, do Piauí, pediu o Mi-
nistério para o correligionário. A petista
não topou, Michel Temer sim, e os pepis-
tas votaram pelo impeachment.

Quem deve virar ministro agora, e uma
das razões é evitar outro impeachment, é
o próprio Nogueira. Com a impopulari-
dade alta, a CPI no encalço, a necessida-
de de melhorar relações com o Senado, de
salvar o mandato e se fortalecer para a re-
eleição, Jair Bolsonaro decidiu mexer na
equipe. Resolveu “a princípio”, disse na
quinta-feira 22, botar o senador na Casa
Civil, coordenadora das ações governa-
mentais. Um gesto, digamos, desprendi-
do. “O Bolsonaro eu tenho muita restri-
ção porque é um fascista. Ele tem um ca-
ráter fascista, preconceituoso... É muito
fácil você ir para a televisão dizer que vai
matar bandido”, dizia Nogueira sobre o
ex-capitão em 2017, a uma TV piauiense.
Águas passadas, para alegria do dito
“centrão”, cada vez mais entranhado no
Palácio do Planalto (a chefe das negocia-
ções políticas já é do time, ministra Flá-
via Arruda, do PL). Nogueira reelegeu-se
senador em 2018 em aliança com o petis-
ta Wellington Dias, governador do Piauí,

e na cola do lulismo. Agora sonha em con-
correr ao governo do estado de mãos da-
das com o bolsonarismo. Em entrevis-
tas recentes, o milionário Nogueira (pa-
trimônio declarado de 23,5 milhões de
reais, incluído um jatinho de 2,8 milhões)
comentou que Bolsonaro atravessa a pior
fase e hoje não se reelegeria. Acha, porém,
que a situação irá melhorar para o ex-ca-
pitão até 2022, no embalo de vacinas e de
um PIB de bom tamanho. É o diagnóstico
feito também pelo presidente da Câma-
ra, Arthur Lira, outro do PP.


Será esse o destino partidário de Bol-
sonaro? Seria uma volta ao ninho. No DNA
do PP está a Arena, a sigla do regime mi-
litar do qual o presidente sente saudades.
Bolsonaro foi pepista por anos. Saiu em
abril de 2015, após a convenção que man-
teve Nogueira à frente da agremiação,
função que o senador ocupa desde 2013.
Planejava disputar o Planalto, mas o PP
não tinha intenção de bancar o que pare-
cia uma aventura. Eram tempos de avanço
da Operação Lava Jato, do qual nasceram
inquéritos e denúncias contra o piauiense
no Supremo Tribunal Federal. “O senador
Ciro Nogueira foi colocado sob foco de in-
vestigação num momento no qual havia,
claramente, uma tendência de criminali-
zação da política”, disse na quarta-feira 21
um comunicado de sua assessoria.


Fosse só a Lava Jato, enquadrada pelo
Supremo, e a nomeação de Nogueira pa-
ra a Casa Civil não seria uma temeridade
por parte do presidente. O risco é a CPI
da Covid, da qual o senador integra (sem
o governismo que Bolsonaro esperava).
Nos bastidores da comissão, há rumores
de que a era Ricardo Barros no Ministé-
rio da Saúde gerou negócios que se rever-
teriam até hoje em grana para o deputado,
para Nogueira e para Arthur Lira.


A firma que faria a alegria da turma é
a VTC, aquela dos 254 milhões de reais
em contratos inusuais. “Esse tipo de con-
trato costuma ser de longo prazo e com
concorrência. Essa história é estranha”,
afirma o senador Humberto Costa, do PT,
membro da CPI e ex-ministro da Saúde.
Em 2004, quando Costa era ministro, a
Voetur, do mesmo dono da VTC, Carlos
Alberto de Sá, foi investigada pelo Minis-
tério Público Federal, por superfaturar a
cobrança de passagens vendidas à Saúde.
A diretora-executiva da VTCLog, An-
dreia Lima, foi convocada a depor pela
CPI, falta marcar a data. A VTCLog é a
VTC com outro CNPJ. A Comissão Par-
lamentar de Inquérito já requisitou ao
Ministério da Saúde informações sobre
contratos com a empresa. Quando rece-
bê-las, encontrará os acordos citados no
início desta reportagem. Na volta do re-
cesso, em 3 de agosto, a CPI votará a con-
vocação de Sá e a quebra dos sigilos ban-
cário, fiscal e comunicacional dele, de
suas firmas e de Andreia.


A história que botou a VTCLog na mi-
ra da CPI começa com Barros ministro

da Saúde. Ele privatizou a distribuição de
vacinas, serviço que era prestado havia
mais de 20 anos pela Central Nacional de
Armazenagem e Distribuição de Imuno-
biológicos, a Cenadi. No lugar desta, en-
trou a VTCLog. Na época, um deputado
estadual do Rio, Milton Rangel, do DEM,
foi ao Tribunal de Contas da União, ór-
gão auxiliar do Congresso, tentar barrar
o processo. A Cenadi ficava no Rio, daí o
interesse dele. Rangel alegava que o edi-
tal de licitação tinha sido elaborado com
a ajuda daqueles que participariam do lei-
lão. O TCU chegou a brecar tudo, mas no
fim deu sinal verde ao negócio.


 

A decisão de privatizar e todos os pre-
parativos foram feitos quando Barros era
ministro. Na assinatura do contrato, ele
não era mais. Já havia saído para concor-
rer de novo a deputado. O contrato é de
cerca de 500 milhões de reais por cinco
anos. No início de 2019, a VTCLog e o Mi-
nistério da Saúde se desentenderam so-
bre como calcular o valor de certos servi-
ços. A empresa queria cobrar 57 milhões.
Técnicos do Ministério defendiam 1 mi-
lhão. A briga se arrastou. Em março deste
ano, uma advogada da União integrante
da consultoria jurídica da Saúde, Adrie-
le Matos de Santana Santos, deu um
parecer a favor da posição dos téc-
nicos. Em vão.


Em maio, foi assinado um aditi-
vo ao contrato, a fixar o serviço em
questão em 18 milhões. Quem deu o
aval para o aditivo foi o então diretor
de Logística do Ministério, Roberto
Ferreira Dias, personagem do Vaci-
nogate. Dias é ligado a Barros, traba-
lhou no governo do Paraná quando o
estado era administrado pela espo-
sa do deputado, Cida Borghetti. Foi
demitido do Ministério em 29 de ju-
nho, em razão da acusação de cobrar
propina de 1 dólar por vacina em ne-
gociações obscuras de 400 milhões
de doses oferecidas por um PM mi-
neiro, Luiz Paulo Dominghetti, e
operação identificada pela comissão na
quebra de sigilo bancário da primeira?
Seria um duto para escoar grana ao PP?
A Precisa figura em outro rolo do tem-
um reverendo de Brasília, Amilton Go-
mes de Paula. A CPI quebrou o sigilo te-
lefônico de Dias e descobriu 135 ligações
dele com Andreia, da VTCLog. Daquelas
chamadas, 129 partiram da executiva.
A CPI fez outra descoberta curiosa. A
VTCLog pagou 250 mil à Precisa Medica-
mentos. Esta é a atravessadora da compra,
em fevereiro, de 20 milhões de doses de
vacinas indianas Covaxin pelo governo.


Essa compra é aquela eivada de indícios
de corrupção, segundo denúncia levada a
Bolsonaro por um servidor da Saúde, Luis
Ricardo Fernandes, e seu irmão deputa-
do, Luis Miranda. Foi suspensa pelo go-
verno logo após o depoimento de Fernan-
des à CPI, no fim de junho. Qual seria a ra-
zão do pagamento da Precisa à VTCLog,
po em que Barros era ministro da Saúde.
Seu dono, Francisco Maximiano, é o mes-
mo da Global Saúde. Barros é réu na Justi-
ça sob a acusação de improbidade em um
pagamento de 19,9 milhões de reais à Glo-
bal. Foi um pagamento antecipado por re-
médios que a Global não tinha para entre-
gar, embora prometesse arranjá-los. No-
te, leitor: no contrato da Covaxin, inter-
mediado pela Precisa, uma das estranhe-
zas é um pedido de pagamento antecipa-
do de 45 milhões de dólares em Cingapu-
ra. Maximiano foge da CPI. Convocado a
depor, primeiro invocou uma quarente-
na por suspeita de Covid-19, depois con-
seguiu no Supremo um habeas corpus que
lhe permitisse ficar em silêncio.


Com esse pano de fundo, Bolsonaro
acaba de propor a recondução de Au-
gusto Aras ao cargo de procurador-
-geral da República. Caberá ao Senado
aprovar a indicação, o que não deve ser
lá muito difícil. Muitos senadores gos-
tariam de ver Aras no Supremo, por ele
não ser do tipo que criminaliza a polí-
tica. O senador Flávio Bolsonaro
pediu ao “xerife” que processe o
relator da CPI, Renan Calheiros,
por abuso de autoridade. O “zero
um” de Jair diz que, durante uma
das sessões da comissão, o relator
divulgou parte de um depoimen-
to sigiloso do presidente. “No Bra-
sil, até a milícia denuncia”, reagiu
Calheiros, ironicamente.


Irônica é a a escolha de Ciro No-

gueira para chefe da Casa Civil. “Se
gritar pega ‘centrão’, não fica um
meu irmão”, cantarolava na elei-
ção o general de pijama Augusto
Heleno, hoje chefe do GSI, o órgão
de inteligência do Planalto. Bolso-
naro é cada vez mais refém dessa
turma que corre se alguém grita.

CARTA CAPÍTAL

July 22, 2021

El dilema de los militares brasileños: apoyar a Bolsonaro o a la democracia

 Jair Bolsonaro, el presidente de Brasil, el 12 de julio en Brasilia


El presidente de Brasil, Jair Bolsonaro, está estimulando una ruptura institucional en la segunda democracia más grande del continente americano, de manera similar a la que intentó Donald Trump en Estados Unidos.

Bolsonaro no solamente promueve la quiebra de disciplina en el ejército sino que amenaza con impedir la organización de las elecciones del próximo año. Todos estos hechos dan muestra de una democracia amenazada cada vez con mayor intensidad. Y el problema es que en Brasil, a diferencia de Estados Unidos, la cúpula de las fuerzas armadas ha jugado un papel central en este objetivo, muchas veces respaldando las embestidas autoritarias del capitán retirado.

Han sido tantas las líneas rojas cruzadas por el gobierno de extrema derecha en Brasil que es difícil percibir en qué momento se está frente a lo inaceptable. Pero este es ese momento.

Brasil vive un proceso acelerado de degradación institucional. En asuntos tan relevantes como el medioambiente, la justicia, las relaciones exteriores, la educación o la cultura, el Estado brasileño ha sido progresivamente carcomido por el bolsonarismo. Sin embargo, pocos sectores han sido tan duramente impactados como el del ejército y la defensa nacional. De modo que si las fuerzas armadas quieren mantener su apego a las leyes y la Constitución, tienen que decidir si están con Bolsonaro o con la democracia.

Tras la llegada de Bolsonaro al poder, en 2019, según reportes periodísticos, no menos de 6000 oficiales han ocupado cargos gubernamentales que deberían ser desempeñados por civiles. Durante su mandato, las fuerzas castrenses han salido de los cuarteles para ocupar cada vez más poder. Y para algunos de ellos también ha sido la ocasión de enriquecerse. El sector salud es un buen ejemplo.

Ahora que la prioridad debería ser la atención de la pandemia, los especialistas de salud pública han sido reemplazados en los puestos directivos del Ministerio de Salud (que dispone del segundo mayor presupuesto del gobierno) por generales o miembros del ejército. Estos últimos, junto con oficiales apadrinados por los políticos del centrão, la alianza de derecha y centro derecha que apoya a Bolsonaro en el Congreso, han socavado las políticas sanitarias que funcionaron durante décadas. Algunas de ellas, como el Programa Nacional de Inmunización, fueron creadas durante la dictadura militar. Otras, como el Sistema Único de Salud, lo fueron por la Constitución democrática de 1988. Ambas han permitido a Brasil ser uno de los líderes mundiales en vacunación masiva, como en 2009 cuando logró vacunar a 88 millones de personas en tres meses contra el virus H1N1.

Gracias a una Comisión Parlamentaria de Investigación (CPI) y al trabajo de la prensa, se está conociendo la naturaleza corrupta de estas nuevas políticas: desvío de recursos destinados a la compra de vacunas en favor del presupuesto de mantenimiento de aviones del ejército, así como fuertes indicios de participación de militares activos y en retiro en la compra de vacunas a sobreprecio, incluyendo al ex ministro de Salud de Bolsonaro, el general Eduardo Pazuello. Las altas autoridades castrenses han exigido públicamente la impunidad para los suyos. Al hacerlo, el ejército dobla su apuesta a favor de los anhelos golpistas de Bolsonaro, y en contra de la democracia brasileña.

Antes de adherirse a una aventura antidemocrática, los militares deben ponderar que Bolsonaro es cada día más impopular.

Por primera vez en su presidencia, más de la mitad de los brasileños rechaza su gobierno, según una encuesta de Datafolha, y el 62 por ciento de ellos se opone a la participación de militares en manifestaciones políticas. Pero los militares le han tomado gusto a pronunciarse políticamente (así sea ilegal), como cuando en 2018 un alto comando castrense presionó por Twitter al Supremo Tribunal Federal para encarcelar al expresidente Luiz Inácio Lula da Silva. El respaldo público de diversos integrantes del ejército a un líder que, ante un escenario electoral cada vez más adverso, sueña con eternizarse en la presidencia, podría ayudar a ponerle fin a la democracia.

Evitar este trágico desenlace debe ser la tarea de todos los demócratas. Los congresistas brasileños deberían aprobar el proyecto de ley que prohíbe la contratación de militares activos para cargos civiles y que recibió el apoyo de numerosos ex ministros de Defensa, y no ceder a los chantajes de Bolsonaro y de sus operadores castrenses. Cualquier iniciativa que intente poner en duda la realización de las elecciones presidenciales de 2022, la modificación del sistema electoral o el régimen político (como la adopción del voto impreso o del régimen semipresidencial) debería ser repudiada por el Congreso, el Poder Judicial y la sociedad civil.

Al respaldar ciegamente a un gobierno que lleva a cabo uno de los procesos más extremos de destrucción de la democracia en el mundo, las fuerzas armadas corren el riesgo de quedar asociadas a él de manera indeleble. Y, al ponerse al servicio de una familia en vez de trabajar para el Estado brasileño, podrían propiciar una ruptura generalizada de la cadena de mando estimulada por el propio Bolsonaro, en particular si es derrotado en las urnas el próximo año.

Contrariamente a los años sesenta, cuando Washington apoyó un golpe militar que derivó en una dictadura de veintiún años en Brasil, el gobierno Bolsonaro ahora está aislado políticamente en el hemisferio y en el mundo.

Los altos mandos militares, por su lado, tendrían que entender que es la hora de defender la democracia. La experiencia traumática de la dictadura militar es un recordatorio de lo que nunca más debe suceder. Las fuerzas armadas, en particular, no deberían olvidarlo.

Gaspard Estrada (@Gaspard_Estrada) es director ejecutivo del Observatorio Político de América Latina y el Caribe (OPALC) de Sciences Po, en París.

NEW YORK TIMES

July 18, 2021

O “REVERENDO”

 

 


O CAPÍTULO BÍBLICO DO VACINOGATE É MAIS DO QUE UMA
HISTÓRIA DE LOBBY NO GOVERNO. AMILTON DE PAULA FAZ
NEGÓCIOS TRAVESTIDOS DE AJUDA HUMANITÁRIA


p or A N DRÉ BA R RO C A L 

Jair Bolsonaro foi ao Supremo
Tribunal Federal na segun-
da-feira 12, chamado pelo
comandante da Corte, Luiz
Fux. Marco Aurélio Mello
pendurava a toga naquele
dia, e para a vaga o ex-capi-
tão indicou o “terrivelmente
evangélico” André Mendonça, advogado-
-geral da União. Não era disso, porém, que
Fux queria tratar. Diante dos últimos dis-
parates presidenciais sobre fraude eleito-
ral, o juiz desejava reunir os chefes dos Po-
deres. Seria dali a dois dias. A reunião aca-
bou cancelada, devido à obstrução intes-
tinal que levou Bolsonaro ao hospital. Na
saída do encontro com Fux, o ex-capitão
foi perguntado por jornalistas sobre cer-
to evangélico, e não era Mendonça. “Se eu
vir a cara dele, pode ser que eu lembre de
algum lugar, mas num tô lembrado no mo-
mento aqui, num tô lembrado.”


Em 16 de março, o evan-
gélico em questão, reveren-
do Amilton Gomes de Pau-
la, havia escrito cedo no
Whats App: “Ontem falei
com quem manda! Tudo cer-
to! Estão fazendo uma cor-
rida compliance da infor-
mação da grande quantida-
de de vacinas!” A mensagem
do fundador da Igreja Batis-
ta Ministério Vida Nova di-
rigia-se ao PM mineiro Luiz
Paulo Dominguetti, cujo ce-
lular foi apreendido pela CPI
da Covid. Uma interlocutora
do pastor, a misteriosa Ma-
ria Helena, deu a informa-
ção igual ao policial: “On-
tem o rev esteve com o pre-
sidente”. Idem um empresá-
rio de Santa Catarina, Re-
nato Gabbi, parceiro do re-
ligioso na tentativa de ven-
der imunizantes a estados e
prefeituras: “Ontem o Amil-
ton falou com Bolsonaro, ele
falou que vai comprar tudo”.


“MICHELE ESTÁ NO
CIRCUITO AGORA.
JUNTO AO
REVERENDO.
MISERICÓRDIA”,
ESCREVEU O PM
DOMINGUETTI


Na véspera das três mensagens, o pre-
sidente sentara-se das 16 às 18 horas com
nove pastores, no Palácio do Planalto.
Uma conversa sobre a proibição paulis-
ta de abrir templos na pandemia e a de-
volução dos direitos políticos, na semana
anterior, a Lula. Uma pesquisa Datafolha
do início de julho mostrou Bolsonaro com
38% de intenção de voto entre os crentes e
o petista com 37%. Na lista divulgada pe-
lo Planalto dos presentes à reunião, Go-
mes não aparecia. Às 17h02 de 15 de mar-
ço, outro colaborador dele, “Amauri”, di-
zia a Dominguetti, no WhatsApp: “O re-
verendo nesse momento está com o 01”.


Gomes havia jogado alto para ir ao “01”.
“Michele está no circuito agora. Junto
ao reverendo. Misericórdia”, escrevera
Dominguetti em 3 de março a um inter-
locutor apresentado em sua agenda telefô-
nica como “Rafael Compra Deskartpak”.
Provavelmente, a Descarpack, com sede
em São Paulo e filial catarinense, investi-
gada pelo Ministério Público Federal por
vender máscaras médicas superfaturadas
ao governo. “Quem é? Michele Bolsona-
ro?”, pergunta Rafael. Resposta: “Esposa
sim”. E o PM reforça em seguida, através
de uma mensagem de áudio: “O reveren-
do chegou na Presidência da República”.


Por ter chegado, protagoniza o capítu-
lo bíblico do “vacinogate”.
Ao lado de Dominguetti, fi-
gurou em uma tentativa mi-
rabolante de vender 400 mi-
lhões de doses ao governo.
Foi nessa negociação que,
segundo o PM, houve co-
brança de propina por um
sujeito ligado ao líder do go-
verno na Câmara, Ricardo
Barros. O cobrador, que ne-
ga, seria Roberto Dias, dire-
tor de Logística do Ministé-
rio da Saúde até 29 de junho.
O reverendo foi convocado a
depor pela CPI e deveria tê-
-lo feito na quarta-feira 14.
Seus advogados mandaram
para lá um atestado médico,
a apontar problemas renais
do cliente e a necessidade de
15 dias de cuidados. O pre-
sidente da comissão, Omar
Aziz, requereu uma perícia
e confirmou a alegação. Os
advogados pediram ainda
um habeas corpus ao Supre-
mo, para Gomes poder ficar

quieto e não ser preso na CPI. Fux permi-
tiu o silêncio em hipótese de autoincrimi-
nação, mas sem impedir a prisão.


O depoimento ficou para agosto e no Se-
nado há quem ache bom. Até lá, a comissão
deverá quebrar os sigilos bancário, fiscal e
comunicacional do reverendo e ouvir ou-
tras testemunhas, a fim de juntar dados e
aí tentar elucidar a ligação do pastor com
Jair e Michele. Na quinta-feira 15, dia da
conclusão desta reportagem, depôs à co-
missão um empresário, Cristiano Alberto
Hossri Carvalho, parceiro do reverendo na
representação da empresa texana Davati,
a ofertadora de 400 milhões de vacinas.
Carvalho é dono de uma firma aberta em
2017, a 2C Overseas Comércio e Represen-
tação, cujo nome de fantasia tem ar religio-
so, Graça Divina, inapta, segundo a Recei-
ta Federal, por “omissão de documentos”.
Dois anos antes de montar o negócio, Car-
valho fora demitido por justa causa de uma
empresa, a BTS Butler, por pedir reembol-
so duplicado, informou a Folha.


 

Em 13 de março, em meio a tra-
tativas do reverendo para falar
com o “01”, Carvalho escrevera a
Dominguetti: “Verifica pra mim
se o presidente vai atender hoje
ou amanhã ou até na terça, por-
que aí eu preciso mudar o voo e preciso re-
servar o hotel, tá bom?” O PM, via áudio:
“Para falar com ele em agenda, eles conse-
guem marcar segunda, terça, quarta, que
aí entra na agenda oficial. O que eles estão
tentando é que o presidente te receba de
forma extraoficial, entendeu?” E o empre-
sário, via áudio: “O reverendo está falan-
do que está marcando um café da manhã
com o presidente amanhã, às 10h, 9h, sei
lá, que vai ter um café com os líderes re-
ligiosos e a gente vai entrar no vácuo, tá?
Agora tem que fazê-lo confirmar isso aí
para a gente colocar uma pulguinha atrás
da orelha do presidente, tá?”


Pulga é pouco diante da trajetória e das
conexões do reverendo Gomes. Uma pulga
gigantesca. E não se trata apenas das sus-
peitas quanto a tráfico de influência den-
tro do Planalto. O pastor parece peça de
um submundo, de um porão que (acredite,
leitor) usa a fachada bíblica e humanitá-
ria para atingir objetivos políticos conser-
vadores e prestar serviços à inteligência
de Israel e dos Estados Unidos. Uma fa-
chada que o bilionário bolsonarista Car-
los Wizard, outro na mira da CPI, parece
ter usado também.


Gomes foi do Ministério do Exército
nos anos 1990. Em 17 de julho de 2002,
registrou na Receita Federal a Secretaria
Nacional de Assuntos Religiosos, entida-
de nada governamental, apesar do nome
e da sede em Brasília. Informava que sua
atividade principal era “ensino médio”.
Naquele dia nascia com um CNPJ igual
uma faculdade de filosofia em Uberlân-
dia, aberta por José Marcelino da Silva,
sujeito que pesquisas na web mostram ter
alguma relação com a Escola Superior de
Guerra. O reverendo fez e ministra cur-

sos de psicologia e psicanálise. Em um
site de divulgação profissional, o Contact
Out, diz sobre si: “A maior conquista foi
minha adesão ao programa da Polícia Fe-
deral também como Psicólogo”. Em 23 de
setembro de 2020, seu nome e CPF apa-
reciam em uma lista de “Agentes de Se-
gurança Ferroviária” publicada no Diário
Oficial da União pelo Sindicato dos Poli-
ciais Ferroviários Federais de Goiás.

O SENHOR COHEN
É UM TENENTE-
-CORONEL DE
ISRAEL, TAMBÉM
MÉDICO, QUE
MOROU (E TALVEZ
AINDA MORE) EM
LAURO DE FREITAS

No início da pandemia, a entidade de
Gomes foi rebatizada de Secretaria Nacio-
nal de Assuntos Humanitários. Essa Se-
nah tem um nome de fantasia, Embaixada
Humanitária Mundial pela Paz, cuja sede
em Brasília foi inaugurada em outubro de
2019 com a presença do então embaixador
de Israel aqui, Yossi Shelley. Um mês an-
tes da inauguração, nascera a Frente Par-
lamentar Mista Humanitária em Defesa
da Paz Mundial, articulada por Gomes
com deputados. O objetivo da Frente, in-
forma seu estatuto, é intensificar o con-
tato “político, econômico, comercial, cul-
tural e técnico-científico”, oferecer ajuda
humanitária a áreas em guerra e com re-
fugiados e, através da secretaria, “fomen-
tar e financiar cursos de proteção à liber-

dade religiosa e a refugiados”, com inter-
câmbio nacional e internacional.


Foi com a credencial de líder da Senah
que o reverendo entrou na negociação de
vacinas com o governo. Em 23 de feverei-
ro passado, o então diretor de Imunização
e Doenças Transmissíveis do Ministério
da Saúde, Lauricio Monteiro Cruz, en-
viou-lhe um e-mail, revelado pelo Jornal
Nacional, no qual agradecia à Secretaria
pela proposta de 400 milhões de doses e
dizia que o assunto era com o então secre-
tário-executivo da pasta, o coronel da re-
serva Élcio Franco. Cruz é desde 2017 fi-
liado ao PL, partido chegado aos evangé-
licos, e, com Gomes, discutiu vacinas no
ministério em 4 de março. O diretor foi
demitido em 8 de julho, por razões pouco
claras, exceto por seus contatos com o re-
verendo e a Davati, que prometia conse-
guir imunizantes da AstraZeneca. Em 9
de março, Cruz tinha escrito diretamen-
te ao chefe da Davati no Texas, Herman
Cárdenas, que a CPI quer convocar.


 

No dia seguinte, Gomes tam-
bém mandou um e-mail a
Cárdenas. Requisitava o
“SGS” das doses, documen-
to que atesta a conformida-
de de produtos, e a FCO, sigla
em inglês que significa oferta completa
de venda. Os papéis (e, portanto, as vaci-
nas) existiam? A AstraZeneca esclarece
só vender a governos. A expectativa, di-
zia o reverendo, era fechar o negócio com
o Brasil em 12 de março. Nesse dia, reu-
niu-se com Élcio Franco, mas este escon-
deu o encontro. Fez constar na agenda que
receberia Helcio Bruno de Almeida, presi-
dente do Instituto Força Brasil. Almeida
é coronel, colega de turma de Franco nas
forças especiais. Seu instituto surgiu em 6
de outubro de 2020, para, entre outras ta-
refas, “oferecer subsídios para o fortaleci-
mento dos movimentos ativistas conser-
vadores” e ser um “celeiro de inteligência”.
O vice-presidente é o empresário bolsona-
rista Otávio Fakhoury. O reverendo par-
ticipou da reunião com os coronéis, três
dias antes do papo com o “01”.


Um coronel da Aeronáutica foi a pon-
te de Cárdenas, da Davati, com o Institu-
to Força Brasil. Trata-se de Glaucio Octa-
viano Guerra, citado por Dominguetti na
CPI. Guerra, conforme a Agência Pública,
abriu uma empresa nos Estados Unidos
em novembro de 2020, a Guerra Interna-
tional Consultants. Sua família prima pe-
la presença de militares bolsonaristas. O
irmão mais velho, Cláudio, é um policial
federal acusado de integrar milícias do
Rio. À CPI Carvalho contou ter conhecido
Guerra em 2020 e que o militar tinha sido

da embaixada brasileira em Washington.
“Ele que me apresentou o Cárdenas”, afir-
mou. Contou mais: que o reverendo Go-
mes informou a Cárdenas que negociava
a venda de vacinas ao Paraguai e à Ará-
bia Saudita. Ao que consta, o pastor que-
ria em troca, inclusive no caso brasileiro,
doações no exterior.


No e-mail enviado a Cárdenas em 10 de
março, o reverendo dizia que o preço em
negociação com o governo era de 17,5 dó-
lares por vacina. Um contrato potencial de
7 bilhões de dólares, 35 bilhões de reais,
quase o dobro dos 20 bilhões de reais re-
servados pelo governo para comprar va-
cinas. Compare-se: o Ministério da Saú-
de fez dois contratos com a Pfizer, ambos
de 100 milhões de doses. No primeiro, de
março, o preço era de 10 dólares por uni-
dade. No segundo, de maio, de 12 dólares.

PARA A CPI DA
COVID, OS 90 DIAS
DE PRORROGAÇÃO
DOS TRABALHOS
NÃO SERÃO
SUFICIENTES PARA
DESVENDAR
TANTOS ROLOS


Após passar meses a ignorar
ofertas da Pfizer, que não ti-
nha atravessadores como o re-
verendo, Bolsonaro fez uma
videoconferência com o che-
fe mundial do laboratório,
Albert Bourla, em 8 de março. Nesse
dia, o pastor Gomes mandou uma car-
ta a Cárdenas, da Davati, obtida pela
CPI no celular de Dominguetti. O docu-
mento tinha um logotipo no alto à direi-
ta de uma entidade chamada American
Diplomatic Mission of International
Relations – Intergovernmental
Organization, a Admir. Em tradução li-
teral, é a Missão Diplomática Americana
de Relações Internacionais – Organização
Intergovernamental. E aqui nossa história
começa a juntar bíblia, política, causas hu-
manitárias, militares, PMs, órgãos de in-
teligência, Brasil, EUA, Israel.


A Admir diz defender causas huma-
nitárias, democracia e segurança. Foi
criada em 2013 por um sujeito que ora
se apresenta como Roberto Cohen, ora
como Zigmund Ziegler Cohen. É um te-
nente-coronel de Israel, médico tam-
bém, que morou, talvez ainda more, em
Lauro de Freitas, na Bahia. Um poliglo-
ta (fala português) com estudos de psico-
logia e psicanálise iguais aos de Amilton
Gomes. Quando do registro da Admir na
Flórida, apurou CartaCapital, os ende-
reços comercial e para cartas informa-
dos eram em Jerusalém. No ano seguin-
te, Cohen registrou na Flórida a Missão
Diplomática Americana de Relações In-
ternacionais, em português. Os endere-
ços também eram em Jerusalém. Em ja-
neiro de 2016, a Admir original informa-
va no Facebook: para usar o logotipo da
organização, só com autorização. O pri-
meiro post dessa página é de novembro de
2015. No mês seguinte, críticas pesadas ao

então governo Dilma Rousseff, em razão
das posições brasileiras a favor dos árabes.


Em fevereiro de 2016, Cohen, na quali-
dade de presidente, alterou o registro da
Admir original (a de nome em inglês) pa-
ra acrescentar “organização intergover-
namental”. No mês seguinte, modificou os
registros da Admir Brasil, para incluir co-
mo endereço dele, Cohen, uma avenida em
Goiânia. É a cidade, recorde-se, do sindica-
to que apontou o reverendo Gomes como
“agente de segurança ferroviária”. Uma
postagem de maio de 2017 da Admir no Fa-
cebook indicava outro endereço de Goiâ-
nia como sede da Admir Brasil: o prédio do

Sindicato dos Policiais Federais de Goiás.
Em 2018, Donald Trump, então na Ca-
sa Branca, tornou-se presidente de honra
da Admir. Em 2019, um brasileiro é no-
meado vice-presidente, Flavio Borotti.
Trata-se de um PM paulista, médico,
com cursos na Swat americana e de pa-
ramédico no Texas, o estado da firma
Davati. Borotti entrara na organização
em fevereiro de 2016, época de avanço do
impeachment de Dilma. Outra recorda-
ção: em maio de 2016, Bolsonaro estava
em Israel, para ser batizado no Rio Jor-
dão, no dia que o Senado afastou a petista
provisoriamente. No último dia 5 de ju-
lho, Cohen mudou novamente os regis-
tros da Admir original (nome em inglês).
O endereço comercial passou a ser no Te-
xas e o de cartas, em Lauro de Freitas.


Admir tem uma divisão de inte-
ligência, o International Center
for Criminal Intelligence (Cen-
tro Internacional para Inteli-
gência Criminal), que se pro-
põe a combater terrorismo,
corrupção e tráfico de pessoas, drogas e
armas. Sua página na web diz que o centro
abastece o Mossad, o serviço secreto isra-
elense. O centro foi registrado na Flórida
em fevereiro de 2015 por Cohen, seu pre-
sidente. Outros três dirigentes registra-
dos eram brasileiros. Entre os atuais re-
presentantes oficiais do centro está o che-
fe do Mossad de 2016 a 2021, Yossi Cohen.
E estão dois brasileiros. Alexandre Apare-
cido dos Santos, instrutor do Bope, o bata-
lhão especial da PM no Rio, denunciado e
preso por organização criminosa no Para-
ná no passado. E Gilmar Matias de Souza,
ex-oficial de inteligência da PM de Goiás
e ex-membro do SNI, o serviço secreto da
ditadura brasileira.


Roberto Cohen é também coordena-
dor de uma “Missão Brasileira das For-
ças Internacionais de Paz da ONU”. As
missões lideradas pelo Brasil no Haiti e
na República Democrática do Congo, nos
governos petistas, aproximaram milita-
res daqui do Exército e serviços de inteli-
gência de outros países (hoje há ainda 80
militares brasileiros nesse tipo de mis-
são). São contatos que reforçaram laços
político-ideológicos.


Em fevereiro de 2018, o Exército bra-
sileiro promoveu a Operação Acolhida,
em Roraima, para refugiados venezuela-
nos. Era no governo Temer, que resistia à
intenção de Trump de derrubar Nicolás
Maduro. O chefe da operação era o gene-
ral Eduardo Pazuello, ministro da Saúde
de Bolsonaro até março deste ano. Em de-
zembro de 2018, Temer decretou interven-
ção em Roraima. Pazuello comandou as fi-
nanças estaduais. O coronel Élcio Franco,
vice de Pazuello na Saúde, foi da Casa Civil
e da secretaria de Saúde de Roraima. Em
fevereiro de 2019, EUA, Brasil e Colômbia
levaram adiante uma ajuda humanitária
que era fachada para criar distúrbios que
conduzissem à queda de Maduro. Rorai-
ma era a base brasileira da trama.


Em agosto de 2018, seis meses após o
início da Acolhida, Carlos Wizard mudou-
-se para Roraima. Na CPI da Covid, o em-
presário silenciou na maior parte do tem-
po, graças a um habeas corpus do Supre-
mo, mas uma das coisas que falou foi so-
bre sua ida a Roraima. Uma ida “missioná-
ria”, em apoio a venezuelanos. Lá estrei-
tou vínculos com Pazuello e Franco. O ge-
neral, quando se tornou ministro da Saú-
de, queria Wizard no time. O bilionário
preferiu agir através de um “gabinete pa-
ralelo” que promovia cloroquina e sabo-
tava vacinas. Quando Bolsonaro rendeu-
-se às injeções e separou 20 bilhões pa-
ra comprá-las, Wizard articulou o aval
legislativo para o setor privado comprar
doses. Segundo a CPI, meteu-se com um
atravessador de vacinas, a Belcher, empre-
sa de amigos do deputado Ricardo Barros,
líder bolsonarista. Atravessador como era
a Precisa, no caso Covaxin, e o reveren-
do Gomes. Personagens que abriam por-
tas no governo por pertencerem ao sub-
mundo das bíblias e dos fuzis.


É tanto rolo, que a prorrogação da CPI
da Covid por mais 90 dias, até outubro, é
pouco para esclarecer tudo. •

carta capital 








July 4, 2021

Morte de Ecko fortaleceu a expansão política miliciana

 

WALLACE SILVA/FOTOARENA/FOLHAPRESS  

Por trás da morte midiática do homem mais procurado pela polícia do Brasil está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento

José Cláudio Souza Alves*

O assassinato de Wellington da Silva Braga, o Ecko, em uma operação da Polícia Civil, no dia 12 de junho de 2021, representa mais um capítulo de uma guinada política da atuação policial pelo governo do estado do Rio de Janeiro em direção ao fortalecimento da estrutura miliciana que vem se expandindo de forma acelerada nos últimos anos. Por trás da morte midiática daquele que seria o homem mais procurado pela polícia do Brasil, e o líder da maior milícia do estado, está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento, como afirmado pelas autoridades policiais e pela mídia. Para entender isso, é preciso relacionar essa morte a uma sequência de eventos que se iniciaram em outubro de 2020.

Naquele momento, a um mês das eleições municipais, uma operação conjunta da Polícia Civil e Polícia Rodoviária Federal assassinou 17 pessoas, sob a justificativa de serem “narcomilicianos”. Esse termo passava a dar a tônica da atuação policial. Com ele, desvincula-se a atuação miliciana da ligação com os agentes de segurança pública, dentro do Estado, atribuindo-a às práticas de traficantes. A consequência seria a liberação para matar tais indivíduos, já que não passavam de bandidos. O marketing da ação policial “antimilícia”, ocultando o engajamento crescente dos policiais ao empreendimento miliciano, soma-se à lógica do “bandido bom é bandido morto”, tão cara à extrema direita, naquele momento, em plena campanha eleitoral.

O segundo evento foi a implantação de um destacamento do 39º Batalhão da Polícia Militar no Complexo do Roseiral, na cidade de Belford Roxo, em janeiro de 2021, a partir das articulações entre o prefeito reeleito, Wagner dos Santos Carneiro, e o governador Cláudio Castro. As mais de 20 mortes produzidas por operações policiais nessa área vitimando membros do Comando Vermelho (CV) se incluem na geopolítica de expansão das milícias, que há décadas dominam os bairros do São Bento e Pilar, na cidade vizinha de Duque de Caxias, seguindo o eixo da Avenida Leonel Brizola.

O terceiro momento surge na operação da Polícia Civil que assassinou 28 pessoas em uma operação na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Tal desproporcionalidade de mortes, quando comparadas ao histórico mais recente das operações na capital, relaciona-se tanto ao confronto com o STF e a ADPF que restringe operações policiais nas favelas, em decorrência dos efeitos da pandemia de Covid-19, como à disputa geopolítica miliciana que vem isolando o Jacarezinho a partir dos conflitos com o CV em três favelas próximas: Arará, Mandela 2 e Bandeira 2, as duas últimas, do Complexo de Manguinhos.

A morte de Ecko, a aproximadamente um mês da chacina do Jacarezinho, dá prosseguimento ao projeto em curso. A aliança entre milícia e Terceiro Comando Puro (TCP), tendo o aparato policial como fiador, perpetua-se, a despeito dos assassinatos de “narcomilicianos”, ligados ao TCP, presentes na Liga da Justiça ou ex-bonde do Ecko, numa espécie de “preço a ser pago” pela manutenção dos negócios e marketing “antimilícia” que tenta ocultar a expansão miliciana.

Há, igualmente, uma intensificação do controle territorial, econômico e político eleitoral feito pela milícia em cima das áreas do CV. Projeta-se um alinhamento midiático com o discurso do extermínio, praticado pela política de segurança pública, com destaque para as redes de televisão, notadamente o SBT, com sua penetração popular. Essa correlação de acontecimentos deixa nítida a estratégia política voltada para as eleições de 2022, nas quais os candidatos ao governo do estado, Câmara estadual e federal, Senado e Presidência da República, com projetos de extrema direita, visam aprofundar seus ganhos a partir das disputas entre si, engalfinhados para ocupar o palanque bolsonarista.

O cenário de aprofundamento do fosso social e crescimento do mundo do crime, como alternativa real frente à crise multidimensional que se estabelece, projeta a área de segurança pública como grande palco de operações psicológicas, sociais, midiáticas e assassinas cujo objetivo é consolidar uma hegemonia inconteste da extrema direita sob a batuta bolsonarista. A morte de Ecko, apenas mais um soldado transformado em chefão para justificar a lógica do extermínio como solução, tem, igualmente, uma outra dimensão, que não se pode desprezar. Ela abre um cenário de disputas, internas e externas à milícia, quanto à liderança e condução do legado miliciano na Zona Oeste e Baixada Fluminense que juntas congregam quase 50% do eleitorado do estado.

Danilo Dias Lima, o Tandera, emerge como novo “Lampião” a ser degolado, mas provoca instabilidade na disputa interna à milícia ao ser alçado, pela morte de Ecko, à categoria de novo “chefão” que enfrenta a resistência dos herdeiros familiares de Ecko, como é o caso de Luís Antônio da Silva Braga, seu irmão. Essa instabilidade da disputa interna miliciana se junta, por sua vez, ao risco da retomada, pelo CV, de áreas perdidas para a milícia, produzindo uma intensificação do terror nas comunidades em disputa, que são muitas. Esse agigantamento da onda de instabilidade e medo reforça o pano de fundo para a manutenção do extermínio como prática da segurança pública, retroalimentando mais operações e chacinas enquanto cortina de fumaça que oculta a expansão miliciana como projeto de controle de amplo espectro e, principalmente, político eleitoral.

Todos esses eventos projetam a milícia como grande palanque para 2022. Quem tiver mais milicianos ao seu lado, com controle territorial, econômico e político de áreas, sai na vantagem. Quem mais matar os “narcomilicianos”, troféus criados para as prateleiras da extrema direita, também ganha pontos. Quem soma as duas estratégias tem mais pontos ainda. Desse modo, o a região metropolitana do Rio de Janeiro mantém o seu papel de grande laboratório, repercutindo para o resto do país, dentro do projeto bolsonarista hegemônico, as novas etapas da “milicialização” da segurança pública.

 

*Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro “Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”.

FACES DA VIOLENCIA